Associo-me a Reinaldo Azevedo, em seu artigo Bolsonaro está para democracia como Marcola para liberdade. E Hitler em 33. Sigamos no texto.
Se o direito à opinião é um bem universal, então já passou da hora de dar a palavra a Marcola, coitado! Chega de apanhar calado, não é mesmo? Se um dia alguém o fizesse — ou o fizer (estamos num tempo em que tudo parece possível), certamente seríamos (ainda seremos?) brindados com uma catilinária contra o sistema judicial brasileiro; contra o modo como se opera a repressão ao crime; contra as desigualdades sociais e as elites políticas que dão de ombros para as mazelas brasileiras; contra a falta de assistência às famílias dos presos… E é bem possível que alguns dos apontamentos que o chefão do PCC fizesse (ou fizer?) até poderiam (poderão?) encontrar amparo na realidade.
Neste domingo, Jair Bolsonaro assinou — seria um exagero dizer que escreveu — um artigo na Folha. O texto apela ao modo imperativo no título: “Aceitem a democracia”. Deve-se entender que o alvo de sua ordem ou exortação não são seus seguidores, uns democratas congênitos!, como sabemos, mas aqueles que resistem à sua peculiar maneira de exercitar o regime das liberdades públicas, sob o império da lei.
Que momento notável este! O homem que passou quatro anos ameaçando o país com um golpe de Estado; que convocou diversas manifestações de seus seguidores contra o Supremo, nas quais se pregava abertamente o fechamento do tribunal e a decretação de um novo AI-5; que mobilizou suas bases contra o sistema eleitoral, embora não tivesse uma miserável evidência de fraude; que ignorou saberes básicos da ciência durante uma pandemia que matou quase 700 mil brasileiros e os convidava abertamente a arriscar a vida — e quantos não terão seguido a sua palavra, entrando na fila das milhares de covas que se abriam por dia; que estimulou, quando menos por silêncios eloquentes e palavras ambíguas (e ainda veremos que houve mais do que isso), o assalto às respectivas sedes dos Três Poderes; que reuniu a sua equipe no dia 5 de julho de 2022 para impedir a realização de eleições; que se enredou com duas minutas golpistas, uma delas apresentada à cúpula militar, para impedir a posse do presidente eleito; que mobilizou fardados da ativa e de pijama para decretar estado de defesa apenas nas dependências do Tribunal Superior Eleitoral e TREs; cujos auxiliares — atendendo a emanações do chefe — chegaram a tomar providências para prender Alexandre de Moraes e o presidente da República; que chegou a dizer abertamente que ou se teria voto impresso ou não haveria eleição… Bem, esse cara apela ao imperativo: “Aceitem a democracia”. No artigo que Marcola talvez escreva um dia, pode ser que nos convide: “Aceitem a liberdade”.
Nota necessária: no sistema de Justiça da democracia, de que a imprensa não faz parte, todos têm direito de defesa — o que inclui um bandido como Marcola e um golpista como Bolsonaro, que praticou banditismo institucional.
Abaixo, segue em negrito o texto assinado pelo ex-presidente. Comento sempre em seguida.
Os ventos da democracia sopram com direção e sentido bem definidos. Na Argentina, no Brasil, nos Estados Unidos, a maioria dos eleitores escolhe candidatos, partidos e programas da direita. Alguns analistas e cientistas políticos, pouco confortáveis com as soberanas decisões populares, tentam apresentar muitos desses movimentos como se fossem uma guinada “ao centro”. Não é. Basta prestar atenção às propostas ultimamente aprovadas nas urnas.
Como fica claro, Bolsonaro está incomodado com a evidência de que, de fato, quem venceu as eleições municipais, para surpresa de ninguém, foi o centrão, que alguns chamam de “centro”. O desempenho da esquerda foi efetivamente modesto. Mas não me digam que ele está triste por isso e encerrou a semana na Folha, depois de uma entrevista publicada em três edições seguidas, só para celebrar o mau desempenho de seus adversários ideológicos.
Quanto aos ventos… Havia uma crença, durante um bom tempo na Idade Média, de que as fêmeas do urubu eram inseminadas pelo vento. Parece que o bolsonarismo acha que eles conduzem também o sêmen do reacionarismo.
A extrema-direita perdeu a eleição presidencial no Brasil há dois anos. Ainda que Javier Milei e Donald Trump pudessem se sentir confortáveis no mesmo balaio do proselitismo ideológico, circunstâncias locais marcaram a eleição de um e de outro. Seus respectivos credos em economia, por exemplo, não poderiam ser mais distintos. Um é o porra-louca que se quer libertário; o outro se elegeu, como se sabe, prometendo porra-louquices do intervencionismo estatal até no Banco Central.
Nos lugares onde o povo tem sido chamado a opinar, a maioria escolhe a ordem, o desenvolvimento, o progresso, a liberdade econômica, a liberdade de expressão, o respeito às famílias e à religião, o patriotismo. São as bandeiras que nós, da direita, vimos levantando há anos, mesmo sob graves ameaças autoritárias.
É acintoso à inteligência que a liderança de referência das hordas fascistoides das redes, que se dedicam ao linchamento de pessoas e de grupos avessos às suas prefigurações, ouse se apresentar como arauto da liberdade de expressão.
O que entende por “respeito às famílias, à religião e ao patriotismo” compreende uma reivindicação: a licença para espezinhar, discriminar e marginalizar, sem qualquer reprimenda ou punição, aqueles que dissentem de sua visão de mundo. Ele e seus sequazes abominam que a Constituição proteja os direitos fundamentais de pessoas cujos comportamento, escolha ou condição abominam.
Nada consegue conter a onda conservadora. Nem a censura, nem os cancelamentos, nem o boicote econômico, nem as perseguições policiais, nem as longas, arbitrárias e injustas prisões.
A resistência e a resiliência da direita têm uma razão muito simples: nossas bandeiras, mesmo sob ataque do grosso dos veículos de comunicação e de seus jornalistas, expressam os sentimentos e anseios mais profundos da maioria da sociedade. E nenhuma medida administrativa ou repressiva tem sido capaz de modificar essa tendência. Pois, quando uma ideia ganha a alma do povo, é inútil tentar matá-la simplesmente por meio da violência.
Pois é… Até parece que a entrevista fatiada em três edições seguidas e o artigo numa quarta foram publicados no éter, não em um dos veículos de comunicação, que dão ampla visibilidade a tudo o que ele pensa, diz, faz e conjectura. Abrigam até adivinhos e interpretes de arcanos do bolsonarismo. O ex-presidente tem garantido o espaço para excretar impropérios e aberrações sobre a democracia e a ordem legal como se estivesse apenas a anunciar: “Hoje é segunda-feira”. Já notaram que, fiel ao modo Trump, ele não reconheceu, até agora, nem a derrota de 2022 e, sempre que pode, ventila a hipótese de fraude?
Se alguém me dissesse no fim dos anos 1990 ou na primeira década dos 2000 que um golpista seria admitido num dos salões mais respeitáveis da democracia, eu teria respondido: “Parem de besteira!”. E teria errado, não é?
A repulsa à imprensa, ainda que esta o abrigue hoje como uma das vozes respeitáveis da democracia — coisa de que discordo, como sabem —, é parte do receituário da extrema-direita em todo o mundo. Veja lá como Trump organizou a campanha.
A moda é nos acusar de inimigos da democracia. Mas quem mostra dificuldade de aceitar a democracia é a esquerda, quando a maioria do povo decide por caminhos diferentes do que ela gostaria. Basta olhar a reação da esquerda às suas derrotas.
Quando pode, como na Venezuela, simplesmente frauda, na caradura, o resultado eleitoral. Quando não, como agora no vitorioso retorno do presidente Donald Trump à Casa Branca, lamenta-se por ter permitido que seus adversários da direita disputem as eleições.
Eis aí. Escreve (ou assina) o homem que não reconheceu o resultado de 2022 e tentou, primeiro, impedir as eleições e, depois, desfechar um golpe de estado.
O PT não deixou pacificamente o poder quando a presidente Dilma foi deposta por pelo impeachment? Lula não aceitou o veredicto da Justiça e passou 580 dias preso, ainda que condenado sem provas por um juiz incompetente e suspeito? O próprio Bolsonaro, vitorioso em 2018, não assumiu a Presidência no dia 1º de janeiro de 2019 sem o menor sinal de resistência? Não se considerava nem sequer plausível que alguém ousasse propor alguma forma de oposição pacífica ou armada à posse.
É estupefaciente que o admirador do Trump que incitou a invasão do Capitólio e artífice velado dos episódios do 8 de janeiro de 2023 aqui no Brasil diga que são seus adversários a ter “dificuldade de aceitar a democracia”.
Como é? A imprensa “lamenta-se por ter permitido que seus adversários da direita disputem as eleições (sic)”??? O troço está de tal sorte mal redigido que deve ter sido o único trecho realmente escrito pelo declarado autor. Mas dá para entender o que se pretendeu dizer. Qual imprensa?
Esse é um truque antigo. No dia 10 de fevereiro de 1933, 11 dias depois de tomar posse como chanceler da Alemanha, Hitler discursou no Sportpalast (Palácio dos Esportes) de Berlim. Foi precedido por Joseph Goebbels, que mirou justamente na imprensa: “Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos aos senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista] o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas.”
Esses são os que se apresentam como “democratas”, autonomeados “salvadores da democracia”, uma democracia que pisoteiam quando podem. Além do mais, vivem numa realidade paralela, ilhados dentro das suas bolhas, afastados do povo e dos trabalhadores que um dia disseram representar. São incapazes de compreender que não é possível, a não ser numa ditadura absoluta, impedir a manifestação da vontade popular, da qual os líderes são apenas portadores. Se suprimirem um líder, outro aparecerá.
E como têm aparecido líderes capazes de canalizar e expressar a vontade majoritária do povo!
Agora mesmo, nas nossas eleições para prefeitos e vereadores, os homens e as mulheres da direita invadiram democraticamente, pela força do voto, a arena política, num tsunami de afirmação poucas vezes visto. Nossos quadros, nos diversos partidos, surgem às dezenas, centenas. E onde estão os novos quadros da esquerda? Alguém sabe? Alguém viu? Não estão em lugar nenhum. O cenário da esquerda é de envelhecimento e desolação.
Até os seus porta-vozes menos alheios à realidade reconhecem.
Isso ocorre por uma razão muito simples: o jardim da política só floresce quando é irrigado pela vontade popular. Quando uma força política se desconecta do sentimento da maioria, é inevitável que definhe. Pode até resistir por um tempo à custa da repressão e do uso desavergonhado dos orçamentos públicos, mas seu destino está traçado. Está destinada à irrelevância, ou mesmo a desaparecer. Com quantas antigas potências do cenário político não vimos isso acontecer?
Bem, se a esquerda — ou, se quiserem, os progressistas — caminha para a autodestruição, Bolsonaro não tem do que reclamar, não é mesmo? Ele estaria com tudo e muito prosa. Está prosa, sim, mas está com tudo? Se seus adversários se encontram “ilhados em suas bolhas”, que suportem a irrelevância, ora bolas!
O notório defensor da ditadura e de seus torturadores, que tentou engendrar um golpe de estado, fala, sem constrangimento, em defesa da democracia — que, na verdade, despreza.
A verdade é que Bolsonaro tenta liderar, para ficar na expressão de seu texto, “um tsunami” que deve muito pouco a ele. A extrema-direita que ele representa obteve, sim, algumas vitórias, mas ele próprio, como expressão dessa bobajada a que chamam “polarização” — inexiste o polo da extrema-esquerda como força viável — saiu perdendo. Se há um consenso no terreno da direita hoje é o de que ela não pode ser fagocitada pelos delírios do “Mito”.
Sim, é fato, existem bolsonaristas em diversos partidos, mas eles não têm força, fora do PL, para impor decisões aos respectivos comandos das legendas. A propósito: o que quer dizer a expressão “nossos quadros”? Levou uma sova histórica no Rio, território em que nasceu como político.
Cada um que faça suas escolhas. Nós, da direita, tão injustamente acusados de “extremismo”, continuaremos perseverando no caminho que sempre defendemos, o da liberdade e da democracia, entendida como o governo do povo.
Continuaremos nos esforçando para ouvir o povo e estar conectados aos anseios mais profundos da sociedade, mesmo quando estes não encontram espaço nos mecanismos tradicionais de formação da opinião pública.
E trabalharemos com a serenidade e a obstinação de quem se esforça todos os dias por um futuro melhor para as pessoas, para as famílias e para o nosso Brasil.
Ai, ai… Sabem o tal primeiro discurso de Hitler, em que foi precedido por Goebbels? Ele vinha sendo desafiado a apresentar um programa de governo – e não tinha nenhum. Então elenca aos berros 12 pontos nos quais se fixaria, depois de asseverar que essa conversa de programa é besteira. E todos diziam a mesma coisa. Transcrevo um trecho do 12º:
“(…) decência na nossa administração, decência na vida pública e decência na nossa cultura também. Queremos restaurar a honra alemã, restaurar o devido respeito e o compromisso com ela, e queremos gravar em nossos corações o compromisso com a liberdade [OLHA ELA AÍ!!! – NR]. Ao fazer isso, desejamos conceder mais uma vez ao povo uma cultura genuinamente alemã, com arte alemã, arquitetura alemã e música alemã, que restaurará nossa alma. E assim evocaremos reverência às grandes tradições do nosso povo. Evocaremos a profunda reverência a realizações do passado e uma humilde admiração pelos grandes homens da história alemã.”
Ah, sim: o 11º ponto era este:
“(…) o trabalhador alemão — o trabalhador alemão que, no futuro, não será mais e não deve mais ser um estrangeiro no Reich alemão; a quem queremos levar de volta à comunidade do nosso povo e para quem abriremos as portas para que ele também possa se tornar parte da nação alemã, um de seus baluartes. Então, garantiremos que o espírito alemão tenha a oportunidade de se desdobrar; queremos restaurar o valor do caráter e o poder criativo do indivíduo em benefício de suas prerrogativas eternas. Assim, queremos romper com todas as manifestações de uma democracia podre e colocar em seu lugar a percepção eterna de que tudo o que é grande pode se originar apenas no poder do indivíduo e que tudo o que deve ser preservado deve ser confiado, mais uma vez, à capacidade do indivíduo. (…)”.
Caminhando para a conclusão.
Não há nada de muito novo no discurso da extrema-direita. Pensem nas múltiplas revoluções técnicas havidas no mundo de 1933 a esta data… O que não muda? A ideia de que os adversários empurraram o país – ou o mundo – para a decadência e que eles, os fascistas, vão restaurar os verdadeiros valores espirituais da pátria.
Estava no discurso de Hitler de 10 de fevereiro de 1933. Está no artigo assinado por Bolsonaro na Folha. Tanto um como outro se consideram os verdadeiros intérpretes da vontade profunda do “povo” e da “nação”.
No mesmo discurso, o facinoroso tonitruou:
“Os partidos que apoiam essa divisão de classes podem ter a certeza de que, enquanto o Todo-Poderoso me mantiver vivo, minha determinação e minha vontade de destruí-los não conhecerão limites. Nunca, nunca me desviarei da tarefa de acabar com o marxismo e seus efeitos colaterais na Alemanha. E jamais farei qualquer concessão a respeito. Só pode haver um vencedor: o marxismo ou o povo alemão! E a Alemanha triunfará!”
É isso. Sabem o que aconteceu depois.
Uma resposta
Bolsonaro é mais democrático que o Lula. Mas tu és muito teimoso ou muito burro para não admitir isso. Me responda um ato Fascista no governo Bolsonaro causado por ele mesmo. O Sr. sabe o que é fascismo?