RAFAEL MARTINELLI

Água não é infinita: por que o ‘PL Seca Tudo’ deve ser barrado no RS; um apelo a nossos deputados

Geólogo Sérgio Cardoso, do Comitê da Bacia, em viagem no barco escola pelo Rio Gravataí nesta manhã: "É o PL Seca Tudo"

A água, recurso cada vez mais escasso e estratégico, exige gestão responsável e baseada em evidências. É nesse contexto que o Projeto de Lei 97/2018, de autoria do deputado Elton Weber (PSB), o “PL Seca Tudo”, alcunha dada pelo presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, Sérgio Cardoso, representa um perigoso retrocesso para o Rio Grande do Sul. Sob a justificativa de “desburocratizar”, o projeto ameaça a segurança hídrica do estado.

O PL, que tramita desde 2018, e está na pauta de votação desta terça-feira, 14h, na Assembleia Legislativa, propõe alterar a Lei Estadual 10.350/1994, dispensando a outorga e isentando de cobrança pelo uso da água as propriedades de agricultura familiar para atividades agrossilvipastoris.

O argumento central do deputado Weber é a redução de custos e burocracia para o pequeno produtor, alegando uma “injustiça” ao cobrar por um recurso essencial para produzir alimentos, especialmente diante da não implementação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (Lei Federal 12.651/2012).

Contudo, a realidade técnica e jurídica é muito mais complexa e alarmante, conforme destacam veementemente os Comitês de Bacia Hidrográfica do Sinos, Gravatahy e Caí, e a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN).

Associo-me ao alertas.

1. Risco hídrico concreto

A dispensa de outorga para captações significativas – mesmo na agricultura familiar – ignora o volume real utilizado.

Como apontam os Comitês, atividades agrossilvipastoris podem demandar vazões altíssimas. Sem a outorga, perde-se o controle quantitativo e qualitativo sobre o uso da água subterrânea e superficial, essenciais para um balanço hídrico confiável (CBHs Sinos, Gravatahy e Caí). Isso pode levar à sobrexplotação de aquíferos, secando poços vizinhos – inclusive os comunitários e de abastecimento público que o próprio PL menciona proteger.

A AGAPAN reforça que a legislação atual (Resolução CRH nº 91/2011) já prevê dispensa para usos individuais e de pequeno volume (até 2m³/dia para água subterrânea), protegendo o consumo básico. O PL 97/2018 vai muito além, abrindo uma perigosa exceção sem critério de volume.

2. Ameaça ao abastecimento público

A SEMA e a Corsan (através da AEGEA) gerenciam centenas de poços para abastecimento humano. A desregulamentação proposta coloca em risco direto estes poços.

Como alertam os Comitês, um novo usuário (mesmo de agricultura familiar) poderá perfurar um poço mais profundo ou em local inadequado próximo a um poço comunitário ou de abastecimento público, reduzindo ou secando o fluxo de água, deixando comunidades inteiras sem acesso à água vital.

A responsabilidade pelo abastecimento é municipal (Lei Federal 11.445/2007), e este PL fragiliza essa garantia (CBHs Sinos, Gravatahy e Caí).

3. Inconstitucionalidade e desrespeito à gestão democrática

O projeto fere a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei Federal 9.433/1997). Esta lei estabelece que a definição dos mecanismos e valores de cobrança pelo uso da água é competência dos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs), considerando a realidade socioeconômica e ambiental local.

O PL 97/2018, ao impor uma isenção geral, usurpa essa competência.

Os Comitês citam jurisprudência do STF (ADIs 3.336 e 5.025) que reafirma a ilegalidade de leis estaduais que interferem nessa competência dos CBHs.

Além disso, os próprios CBHs, como o Sinos, já criaram mecanismos que isentam pequenos produtores (subtraindo R$ 500,00 da cobrança) – decisão tomada democraticamente dentro dos comitês com participação dos usuários (CBHs Sinos, Gravatahy e Caí). O PL ignora esse espaço democrático já existente e funcional.

4. Desmonte da gestão e risco ambiental ampliado

A outorga não é mera burocracia; é um instrumento técnico fundamental. Garante que poços sejam construídos com responsabilidade técnica, protegendo o investimento do usuário (que pode chegar a milhões) e principalmente o aquífero.

Eliminar a outorga, como comparam os Comitês, seria como extinguir o licenciamento ambiental – um convite ao caos.

Sem controle, aumenta-se exponencialmente o risco de contaminação, salinização e esgotamento dos aquíferos, inclusive o transfronteiriço Guarani, colocando em risco acordos internacionais (CBHs Sinos, Gravatahy e Caí).

A AGAPAN alerta que este PL desestrutura toda a lógica da gestão sustentável prevista nas leis estadual e federal.

5. A crise climática e a guerra da água

O RS vive uma sequência de eventos climáticos extremos – estiagens severas e enchentes catastróficas (2023 e 2024). Neste cenário, a água subterrânea tornou-se crucial para a resiliência de cidades e propriedades rurais. O PL 97/2018, ao fragilizar a gestão e incentivar o uso descontrolado, é uma temeridade.

Como bem resumem os Comitês, ele “estimula a disputa pela água subterrânea, antecipando assim a guerra pela água no Rio Grande do Sul”, justamente quando precisamos de mais controle e planejamento.

Concluo.

O apoio à agricultura familiar é legítimo e necessário. No entanto, o PL 97/2018 não é a solução. Ele oferece um alívio pontual e populista criando um risco sistêmico gravíssimo para a segurança hídrica de todo o estado.

É fundamental informar que a legislação atual, com os instrumentos dos Comitês de Bacia, já permite flexibilizações e isenções dentro de critérios técnicos e democráticos, como demonstram as práticas existentes.

Ao fim, diante dos sólidos argumentos técnicos, jurídicos e ambientais apresentados pelos Comitês de Bacia e pela AGAPAN – entidades com décadas de experiência e representação democrática na gestão das águas –, fica o apelo aos deputados, os de Gravataí, principalmente, Dimas Costa e Patrícia Alba, para que votem contra.

Caso, contra todas as evidências de risco, o projeto seja aprovado, cabe esperar por um improvável veto do governador Eduardo Leite.

Ou só restará o Supremo.

A água do Rio Grande do Sul, já tão castigada pelas mudanças climáticas, não pode ser vítima de um projeto que desmonta três décadas de construção coletiva em prol de uma gestão hídrica sustentável e democrática. O futuro hídrico do estado depende dessa decisão responsável.

Para ler a íntegra do documento divulgado pelos Comitês, clique aqui.

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