A recente decisão judicial que obriga a Prefeitura de Gravataí a garantir o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para alunos com deficiência é comemorada como uma vitória para a inclusão. Talvez alguns não estejam prontos para esta conversa, mas vamos a mais uma a la Voltaire: “o segredo de aborrecer é dizer tudo”.
Por trás dessa medida, tomada a pedido do Ministério Público gaúcho, esconde-se um desafio financeiro crescente e uma discussão urgente sobre o chamado Complexo Industrial do Autismo –– um fenômeno bem descrito pelo pediatra e sanitarista Daniel Becker em seu artigo “A Indústria do Autismo”.
O secretário da Fazenda de Gravataí, Davi Severgnini, já alertou: os gastos com monitoria escolar triplicaram em três anos, saltando de menos de R$ 100 mil mensais para R$ 1 milhão. Com a decisão judicial, a projeção é de que esse valor dobre novamente, chegando a R$ 2 milhões mensais em três anos.
– Não há planejamento que resista – disse na terça-feira, na audiência em que apresentou na Câmara de Vereadores o Plano Plurianual para os próximos quatro anos.
Essa realidade não se limita a Gravataí. Municípios e estados em todo o Brasil enfrentam pressões judiciais semelhantes, muitas vezes sem recursos para cumprir as determinações. A educação inclusiva é um direito, mas a judicialização em massa, sem um planejamento orçamentário adequado, pode levar à falência de sistemas públicos já fragilizados.
O Complexo Industrial do Autismo
Outro problema ganha força é a medicalização e mercantilização do Transtorno do Espectro Autista (TEA), que é o que mais pressiona a rede pública a contratar monitorias. Como bem destacou Daniel Becker, o diagnóstico de autismo explodiu nos últimos anos, impulsionado por critérios mais amplos, maior acesso à informação, mas também por pressões sociais e interesses econômicos.
Para se ter uma idéia, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA falam em uma criança com TEA a cada 33. Os europeus têm números diferentes: 1 para 416 ou 1080. O Censo Escolar brasileiro mostra que o número de estudantes com transtorno do espectro autista na educação básica aumentou 44,4% entre 2023 e 2024: de 636 mil para 920 mil alunos. Na série histórica, o número de matriculados na educação especial aumentou 58,7%, em relação a 2020.
O que Becker chama de Complexo Industrial do Autismo é uma rede que lucra com a crescente demanda por laudos, terapias intensivas (muitas sem comprovação científica), cursos duvidosos e produtos “inclusivos”. Planos de saúde já relatam que os custos com autismo superaram os do câncer. Juízes são bombardeados com ações que exigem terapias caríssimas, muitas vezes sem avaliação criteriosa.
A judicialização desenfreada, aliada à falta de estrutura pública, abre espaço para abusos. Clínicas particulares se multiplicam, oferecendo tratamentos questionáveis. Influencers e empresas vendem a ideia de que mais diagnósticos e mais terapias são sempre a solução, transformando o cuidado em um mercado bilionário.
É preciso equilíbrio: direitos sim, mas com responsabilidade fiscal e científica
Não se trata de negar a importância do apoio a crianças com autismo ou outras deficiências. A inclusão é um direito fundamental. Mas é preciso combater dois extremos: a negligência do poder público, que falha em oferecer estrutura adequada, levando famílias a buscarem a Justiça como único recurso –– o que não é uma realidade de Gravataí, já que o governo, como mostram os indicadores, triplicou o investimento; e a exploração comercial do autismo, que transforma um transtorno complexo em uma oportunidade de lucro, muitas vezes com diagnósticos precipitados e tratamentos sem evidências.
Ao fim, a solução talvez passe por, além do fortalecimento da rede pública (CAPSi, CERs, escolas preparadas), reduzindo a dependência de ações judiciais, regulação e fiscalização de clínicas e terapias, combatendo abusos, cautela nos diagnósticos, evitando laudos apressados que sobrecarregam o sistema e um planejamento orçamentário realista, para que decisões judiciais não inviabilizem as contas públicas.
Enquanto o Brasil não enfrentar o Complexo Industrial do Autismo e não equilibrar direitos individuais com sustentabilidade financeira, quem pagará a conta, além de municípios, serão as famílias e as crianças –– tanto as que precisam de apoio real quanto as que são vítimas de diagnósticos equivocados e tratamentos desnecessários.