“Deus não está aqui hoje”, dizia a possuída Regan, em O Exorcista. Na noite desta quinta-feira, Deus não estava na Câmara de Vereadores de Gravataí. Ao aprovar a Moção 71/2025, do vereador Evandro Coruja (PP), endossando o diabólico “PL do Estuprador” (PL 1904/2024 e PDL 3/2025), os parlamentares se associaram a um projeto moralmente criminoso, que pune a vítima duas vezes: primeiro, com a violência do estupro; depois, com a ameaça de cadeia se ela ousar interromper a gravidez após 22 semanas. Já o PDL destrói toda rede de proteção a crianças e adolescentes.
A aprovação por 6 a 5, entre 21 vereadores, mostra que o ‘bolsonarista-raiz’ Coruja arrastou seus colegas para uma pauta vergonhosa; alguns ficaram mais de meia hora escondidos fora do plenário para não votar –– possivelmente sentindo-se chantageados pelo receio de receber de fanáticos a pecha de abortistas. Uma covardia com justificativa política. [Os votos estão ao fim deste artigo]
O próprio autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), já confessou que apresentou a aberração jurídica e humana para, em caso de aprovação, obrigar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a vetar, para poder acusá-lo de ser favorável ao aborto. É só aplicar a mesma lógica à votação de ontem.
O projeto estabelece pena de 6 a 20 anos para a mulher que abortar após 22 semanas em casos de estupro — o dobro da punição do estuprador (6 a 10 anos). Ou seja: Gravataí, por meio de seus vereadores, que pelos critérios da proporcionalidade eleitoral representam 100% dos 280 mil habitantes, está dizendo que uma mulher violentada deve ser mais punida que o criminoso que a destruiu.
Como batizou o jornalista Reinaldo Azevedo, é o “PL do Estuprador”, porque transforma o agressor em aliado do Estado. O estupro, crime hediondo, vira mero detalhe. O crime original, o estupro, é usado para punir a vítima.
Os dados são brutais e mostram quem sofrerá com essa crueldade: 70% dos estupros no Brasil são contra meninas de até 13 anos, 77% das vítimas são negras e 64% dos crimes acontecem dentro de casa, muitas vezes cometidos por familiares.
Muitas dessas crianças e adolescentes nem sabem que estão grávidas até avançarem na gestação. Não têm autonomia para denunciar ou buscar ajuda. E agora, se o projeto for aprovado, podem ser tratadas como infratoras, no caso de menores, ou presas por ‘homicídio’ se tentarem interromper a gravidez fruto de um crime que não cometeram. O projeto também tem o potencial de ameaçar médicas e médicos, tornando-os cúmplices.
O vereador Coruja se esconde atrás de um discurso religioso, mas onde está o Deus de misericórdia nesse projeto diabólico, digam-me?
O projeto não “salva vidas” — condena mulheres e meninas à tortura. E, como sempre, atingirá as mais pobres, porque quem tem dinheiro aborta em clínicas seguras, antes ou depois dos cinco meses.
É o Conto da Aia, romance que virou série, no qual em uma sociedade distópica mulheres tornam-se não mais que fornecedoras de bebês. Claro, com todas as diferenciações de classe: as pobres sofrendo mais.
Se sabiam o que estavam votando, e o texto da moção resta bem claro –– o PL “visa reconhecer que o aborto após 22 semanas de gestação seja reconhecido como crime de homicídio simples, mesmo nos casos de estupro” ––, a aprovação mostra que, para alguns vereadores, a vida de uma menina estuprada parece valer menos que um discurso fundamentalista.
Dos Grandes Lances dos Piores Momentos: um dos vereadores favoráveis, Carlos Fonseca (Podemos), é autor de frente parlamentar para combater a violência sexual contra crianças e adolescentes.
Uma pesquisa no site da Câmara dos Deputados mostrou que, apenas nos dois dias após a apresentação no ano passado, 1 milhão de pessoas rejeitaram o PL, contra apenas 100 mil a favor. Pesquisa Quaest identificou que, mesmo nas redes antissociais, mais de 80% das interações eram críticas ao projeto. A sociedade já disse NÃO. Os vereadores de Gravataí preferiram ignorar.
O projeto ainda precisa passar pela Câmara Federal e, se aprovado, será barrado no STF por inconstitucional. O aborto é permitido em três situações: risco de vida para a gestante (Art. 128, I do Código Penal); gravidez resultante de estupro (Art. 128, II do Código Penal) e feto anencéfalo (permitido pelo STF em 2012, no caso ADPF 54).
Além disso, em 2023, o STF descriminalizou o aborto até a 12ª semana de gestação para outras situações.
Ao fim, é, para além de inadmissível, inacreditável os vereadores de Gravataí caírem nessa. Parece-me incontestável que escolheram o lado do estuprador. Ou foram coagidos a isso.
OS VOTOS
: A favor da moção de apoio: Bombeiro Batista (Republicanos), Carlos Fonseca (Podemos), Guarda Moisés (Republicanos), Hiago Pacheco (PP), Policial Coruja (PP) e Roger Correa (PP).
: Contra a moção: Anna Beatriz (PSD), Bino Lunardi (PSDB), Dilamar Soares (Podemos), Marcia Becker (PSDB) e Vitalina Gonçalves (PT).
: Abstenção: Airton Leal (MDB) e Mario Peres (PL).
: Não estavam em plenário: Alex Peixe (PSDB), Aureo Tedesco (MDB), Beto Bacamarte (MDB), Claudecir Lemes (MDB), Claudio Ávila (União Brasil), Fabio Ávila (Republicanos) e Paulinho da Farmácia (Podemos).
*O presidente do legislativo, Clebes Mendes (PSDB), só precisa votar em caso de necessidade de desempate.