“A intenção é humilhar. Marcar a vítima. Fazê-la se esconder do mundo”. Compartilhamos o artigo da jornalista Vivian Mesquita, publicado pelo ICL Notícias
Sessenta e um socos no rosto, desferidos dentro de um elevador. Juliana Soares não teve chance de defesa nem de proteção. Sofreu múltiplas fraturas faciais, enfrenta agora um longo processo de reconstrução cirúrgica e só consegue se alimentar por meio de líquidos e alimentos pastosos. Mais do que uma agressão, foi uma tentativa brutal de anular sua identidade.
Nos últimos dias, o Brasil acompanhou, estarrecido, a violência que Juliana sofreu do companheiro. Igor Eduardo Pereira Cabral, preso preventivamente, já demonstrava sinais de perigo. Empurrões e violência psicológica haviam acontecido antes da agressão. A escalada começou com ofensas, passou por agressões verbais e físicas, até atingir o extremo da barbárie.
Por que o rosto?
Por que Igor mirou com tanta fúria justamente o rosto de Juliana?
Não foi um gesto impensado. Um estudo realizado em 2020 no Hospital Jayme Santos Neves (ES) mostra que o rosto é escolhido de forma deliberada pelos agressores. A intenção é humilhar. Marcar a vítima. Fazê-la se esconder do mundo. O rosto — lugar da identidade, da comunicação, do olhar e do sorriso — é atacado para silenciar e apagar.
Em muitos casos, mulheres agredidas tentam esconder a violência. Inventam quedas, acidentes. Dizem ter caído da escada ou sofrido tombos de bicicleta — mas apresentam apenas hematomas no rosto, sem escoriações compatíveis com as histórias contadas. O medo da denúncia e a vergonha ainda são maiores que a dor física. Muitas vezes, as mulheres também se sentem culpadas pelas agressões, e não vítimas de criminosos.
Segundo o mesmo estudo, o “terço médio” do rosto (a parte central, entre os olhos e a boca) é o principal alvo, pois é mais fácil de fraturar com as mãos. Lesões nessa região deixam sequelas físicas e psicológicas, muitas vezes irreversíveis. Há relatos de mulheres que chegam ao hospital dias após o trauma, com ossos já cicatrizados de forma incorreta — e, frequentemente, estão acompanhadas pelos próprios agressores, que as vigiam para evitar a denúncia.
Em outro estudo, de 2015, os dados nacionais e internacionais são assustadores:
- · No Rio de Janeiro, 37,5% das mulheres atendidas em emergências hospitalares tinham lesões na cabeça ou face causadas por seus parceiros.
- · Em São Paulo, esse índice sobe para 54,6%.
- · Em uma capital do Nordeste, 56,2% das vítimas que procuraram a Delegacia da Mulher foram atingidas no crânio ou no rosto.
- · Nos EUA, no estado do Oregon, 81% das mulheres com lesões buco-maxilo-faciais sofreram violência doméstica.
- · Na Grécia, 62% das mulheres agredidas por parceiros íntimos apresentavam traumas faciais.
- · Na Malásia, 74,8% das vítimas apresentavam lesões na cabeça ou no rosto.
Os números variam, mas o padrão é o mesmo.
A violência contra o rosto da mulher é um fenômeno mundial que transcende classe social, cultura ou religião. E deve ser compreendida como um sinal gravíssimo: a mulher que chega a um hospital com o rosto ferido já está em risco iminente de feminicídio.
Não podemos tratar essas agressões como casos isolados. O que Juliana viveu é parte de uma estrutura social que naturaliza o controle sobre o corpo da mulher — e que, muitas vezes, silencia as vítimas e protege os agressores.
Lesões no rosto não são apenas ferimentos. São gritos calados, pedidos de socorro. E precisam ser escutados antes que seja tarde demais.