RAFAEL MARTINELLI

Natureza, exclusividade e contradição ambiental: a verdade sobre as ‘terras raras’ da Estância São Pedro em Gravataí

Alteração na Lei Orgânica tira característica de área protegida da Estância de São Pedro

É curioso comparar duas áreas que habitam o mesmo artigo da Lei Orgânica de Gravataí. De um lado, o Morro Itacolomi, que pela própria natureza já é uma APP –– área de preservação permanente. Recebeu reflorestamento, ostenta uma beleza natural que é um patrimônio do Rio Grande do Sul e, na prática, segue intocado pela mudança legislativa. De outro, a Estância São Pedro, que até aqui carrega o título de “área de proteção ambiental” e, no mundo real, pouco tem de preservada.

Projeto de lei enviado à Câmara de Vereadores na terça-feira pelo prefeito Luiz Zaffalon retira a previsão de proteção da Estância sem alterar a condição do Itacolomi. Reputo um debate necessário –– há, inegavelmente, uma contradição ali: são como ‘terras raras’ de Gravataí, um ‘bilhete de loteria’ cuja posse remete anos 60, não tributadas e praticamente inacessíveis ao conjunto da população, que aparentam não cumprir sua função legal na prática.

A Estância São Pedro é hoje propriedade de uma sociedade civil de Porto Alegre, a Estância Província de São Pedro. Ali, sócios criam cavalos, passeiam em montaria, promovem festas. Tudo com exclusividade, cercado e reservado. Só que, junto com as baias e salões, os problemas crescem. A ocupação irregular avança de forma desenfreada: dezenas de famílias empurram limites para dentro da área, acumulando lixo, poluição e um passivo ambiental que não se esconde.

O esgoto corre solto, fruto tanto da falta de infraestrutura quanto das invasões. Os rasgos no verde são visíveis por drone ou satélite: mais de 50% da área já foi desmatada. E, para completar o enredo de ironias, em uma gleba supostamente ‘protegida’, há plantios agrícolas. O que deveria ser floresta virou lavoura em pontos estratégicos. Chocado? Soma-se a isso a passagem de torres de energia, fundamentais, mas outro impacto real.

Não estou dizendo que ali não existam áreas a preservar –– até porque sou da turma da Greta Thunberg. Em mais de 400 hectares, é evidente que há nascentes, APP s e trechos sensíveis. E isso já é mais do que prática, é lei. Mas qualquer novo empreendimento, seja qual for, terá por exigência resguardar nascentes, manter as áreas de preservação permanente e garantir a fração mínima de área permeável, além de cumprir o licenciamento ambiental.

Se um dia houver outro uso destinado à gleba –– e interessados não deverão faltar ––, as mesmas regras se imporão.

Fato é que a Estância São Pedro ocupa cerca de 4 milhões de metros quadrados, ou 400 campos de futebol oficiais, cujo valor de mercado pode chegar a R$ 400 milhões. Em áreas menos valorizadas de Gravataí o hectare já alcança a marca de R$ 1 milhão.

O orçamento anual do município, de R$ 1,2 bilhão, revela o peso estratégico da gleba: sozinha, ela poderia equivaler a quase um terço de tudo o que a Prefeitura dispõe para custear obras, serviços, educação, saúde e folha de pagamento.

Em um cenário conservador, com a alteração proposta pelo projeto a Prefeitura pode ao menos tributar adequadamente, conforme a localização nobre e estratégica explorada pelos atuais proprietários. Algo próximo dos R$ 10 milhões.

Gravataí já cresce ao redor dessa área privilegiada. A Estância, cercada por áreas já urbanizadas, trava possíveis conexões entre o Centro e a ERS-020. É como se a cidade restasse aprisionada por uma gleba desconectada do desenvolvimento natural.

Plantio, desmatamento, torres de tensão e casas: a realidade da área protegida da Estância de São Pedro


Ao fim, salvo melhor juízo, o projeto não é um atentado ambiental. Reconhece o óbvio: a Estância São Pedro não é área de preservação. Talvez tenha sido um sonho ou uma boa intenção no papel. Na prática, é um espaço privado, usado e explorado à revelia do rótulo que lhe deram.

A diferença, se aprovada a alteração, é que a lei não servirá mais de biombo para proteger interesses privados sob o rótulo de preservação ambiental. A sociedade civil proprietária continuará a gerir essas ‘terras raras’, como sempre fez. Só não poderá mais se escorar em uma ficção legal que Gravataí, a partir deste debate, pode aprender a decifrar.


Assista na SEGUINTE TV vídeo de drone sobre área que se torna alvo de polêmica


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