Alguns sites locais e ‘estrangeiros’ publicaram um rumor que desafia tanto a lógica política quanto o direito eleitoral: a suposta intenção do prefeito de Cachoeirinha, Cristian Wasem (MDB), de renunciar ao cargo para escapar do impeachment e “preservar sua elegibilidade”.
É, nas palavras de André Lima, assessor especial do Gabinete do Prefeito, uma “especulação absurda”. E ele tem razão.
Tanto no plano jurídico quanto político, a renúncia seria o pior caminho possível — e absolutamente inócua diante do que prevê a Lei da Ficha Limpa, além de ineficaz até mesmo como estratégia sucessória.
O próprio Collor de Mello, que inaugurou esse tipo de fuga, terminou cassado e inelegível.
A especulação surge em meio ao agravamento da crise que cerca o governo Cristian, cujo impeachment foi admitido pela Câmara por 13 votos a 4, um a mais do que o necessário para a cassação.
A abertura do processo desencadeou uma reação imediata: o prefeito exonerou cargos ligados a vereadores da base que apoiaram o pedido, provocando uma debandada de cerca de 100 comissionados, como o Seguinte: reportou ontem em Crise se agrava em Cachoeirinha: prefeito reage ao impeachment com demissões políticas e provoca debandada de aliados.
O gesto político — visto por uns como retaliação, por outros como tentativa de reordenar a máquina — alimentou o cenário de ruptura entre Executivo e Legislativo. E, nesse contexto de instabilidade, a ideia da ‘renúncia estratégica’ encontrou terreno fértil na especulação digital.
Mas basta uma leitura atenta das leis e da história para perceber que o boato não se sustenta.
Collor tentou — e perdeu tudo
Em 29 de dezembro de 1992, o então presidente Fernando Collor de Mello renunciou na tentativa de escapar do julgamento político no Senado. A estratégia, amplamente noticiada como uma “cartada final”, pretendia preservar seus direitos políticos.
De nada adiantou.
O Senado Federal manteve o julgamento, sob comando do então presidente do STF, Sydney Sanches, e decretou a perda do cargo e a inelegibilidade por oito anos — por 76 votos a 2.
Collor só voltaria à política em 2006, depois de cumprir integralmente o período de inelegibilidade.
Ou seja: se nem um presidente da República escapou da cassação política com a renúncia, imaginar que um prefeito municipal poderia fazê-lo é, no mínimo, desconhecer o sistema jurídico brasileiro.
A Ficha Limpa é clara: renunciou, ficou inelegível
A Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), aprovada quase duas décadas depois de Collor, fechou qualquer brecha para renúncias “táticas”.
Em sua alínea k, o texto é cristalino: “São inelegíveis […] o Presidente da República, o Governador, o Prefeito […] que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo […] durante o período remanescente do mandato e nos 8 anos subsequentes.”
Traduzindo do juridiquês: se o processo de impeachment já foi aberto — como no caso de Cristian —, a renúncia não impede a inelegibilidade. Pelo contrário, confirma-a.
Renunciar agora significaria reconhecer a validade da denúncia e ainda ampliar o período de inelegibilidade — sem qualquer ganho político.
Nenhum plano B com Fabi
Mesmo que houvesse algum cálculo político — uma tentativa de ‘transferência de sobrenome’ —, o cenário continua fechado.
A primeira-dama Fabi Medeiros não poderia disputar uma eleição suplementar para prefeita.
O artigo 14 da Constituição Federal impede a candidatura de cônjuges e parentes de até segundo grau de governantes no território de sua jurisdição, a não ser que o familiar já ocupe mandato eletivo.
Trata-se do que os juristas chamam de “inelegibilidade reflexa” — criada justamente para evitar o revezamento familiar no poder.
Portanto, ainda que Cristian renunciasse, Fabi estaria inelegível em Cachoeirinha até 2028, podendo, no máximo, disputar outro cargo em 2026, como deputada, algo que ela própria já descartou.
Em outras palavras, o boato da renúncia nem sequer oferece um herdeiro eleitoral possível.
Política não é fuga: é guerra de resistência
O governo respondeu à boataria.
– Estamos prontos para a guerra para provar a inocência do prefeito e do vice eleitos com 72% dos votos – afirmou André Lima, ao Seguinte:, ao ser consultado na manhã deste sábado.
A frase ecoa o clima de trincheira na Prefeitura, onde a prioridade é a defesa no processo de impeachment — cuja fase inicial prevê a apresentação das respostas formais à Comissão Processante.
É uma postura que, além de politicamente mais coerente, é juridicamente a única sensata.
Cristian enfrenta simultaneamente o julgamento político na Câmara e a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) que corre na Justiça Eleitoral.
Tentar driblar o processo com uma renúncia seria transformar uma crise de governabilidade em suicídio político com data e CPF.
A legislação eleitoral e a jurisprudência pós-Ficha Limpa construíram uma pedagogia da responsabilidade pública: quem é acusado deve enfrentar o julgamento — e não fugir dele.





