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O dia em que um ditador trocou o treinador da seleção brasileira

Adenor Leonardo Bacchi, o Tite | Foto LUCAS FIGUEIREDO | CBF

Caso de João Saldanha em 1970, derrubado a pedido de Médici, vem à tona com pressão sobre Tite, chamado de “puxa-saco do Lula” pelo senador Flávio Bolsonaro. “Técnico de futebol tem que estar alinhado com o futebol”, encerra técnico brasileiro. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País

 

Pouco tempo antes da Copa do Mundo, um Governo se baseia em motivos políticos para pedir a troca no cargo de treinador da seleção brasileira de futebol. Aconteceu em 1970, quando o ditador Emílio Garrastazu Médici pediu a cabeça de João Saldanha, que treinava a equipe brasileira meses antes do tricampeonato mundial no México, mas decidiu denunciar as violações do regime. O caso emblemático veio à tona nos últimos dias com a intensa pressão política sobre Tite, o atual comandante da seleção, cuja permanência no cargo foi posta dúvida no momento em que ele é alvo de intensa campanha contrária de apoiadores bolsonaristas, puxada nada menos do que pelo filho mais velho do presidente, senador Flávio Bolsonaro. Por ora, Tite fica, e os jogadores anunciaram que vão jogar o torneio, mas o episódio compõe mais uma das tensões envolvendo a realização da Copa América no Brasil.

A articulação do Planalto contra Tite não se resumiu às redes sociais. Segundo o jornalista do SporTV, André Rizek, quando ainda no cargo, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Rogério Caboclo, prometeu ao próprio presidente Jair Bolsonaro a demissão do treinador após a manifestação pública de desconforto por parte de Tite por conta da decisão do país de sediar o torneio em meio ao recrudescimento da pandemia em algumas regiões. Caboclo acabou afastado por denúncia de assédio sexual antes de concretizar a promessa, o que, pelo menos por enquanto, impediu Bolsonaro de repetir a interferência da ditadura militar na entidade mais representativa do futebol brasileiro.

O descontentamento por parte do Governo federal começou desde que Tite se tornou o primeiro da delegação brasileira a falar sobre a realização do torneio sul-americano no Brasil. Depois das recusas de Argentina e Colômbia, a Conmebol firmou o acordo com as autoridades brasileiras para que a edição, a duas semanas do seu início, fosse transferida ao país mais atingido pela covid-19 no continente. A decisão acendeu o debate sobre os problemas de um campeonato dessa proporção acontecendo neste momento no Brasil, inclusive entre os próprios jogadores brasileiros.

– Temos uma posição clara, mas não vamos externar isso agora – se limitou a dizer Tite no dia 3 de junho, 48 horas após a confirmação da Copa América no Brasil.

Apesar de não ter esclarecido a posição, desde então a hashtag #TiteComunista passou a figurar entre os assuntos mais comentados do Twitter. O senador Flávio Bolsonaro corroborou com os protestos chamando o treinador de “puxa-saco do Lula”.

– Bastou a CBF pedir para o presidente Bolsonaro a autorização para que ela acontecesse aqui no Brasil para que o Tite se posicionasse politicamente – disse ele.

Hamilton Mourão, vice-presidente, ironizou a possível saída do comandante ao lhe oferecer o cargo num clube mato-grossense que demitiu seu treinador recentemente:

– O Cuiabá está precisando de técnico.

Do outro lado, foi a vez do capitão da seleção, Casemiro, se manifestar após a vitória contra o Equador, na última sexta (4), dizendo que “Tite deixou claro nosso posicionamento e o que nós pensamos da Copa América”. Por fim, circulou a informação de que Caboclo teria prometido a Bolsonaro a troca de Tite pelo treinador bolsonarista Renato Gaúcho, que pediu demissão do Grêmio no início do ano.

 

História e acomodação

 

Nos anos 70, o então técnico da seleção, João Saldanha, não deixou sua opinião de lado e, após a morte do guerrilheiro Carlos Marighella pelo regime militar, montou um dossiê em que citava mais de 3.000 presos políticos, mortos e torturados pela ditadura brasileira, e o distribuiu a autoridades internacionais quando esteve no México para o sorteio do Mundial, em janeiro de 1970. Dali até a demissão por influência do Governo, em março daquele ano, foi questão de tempo. A tese de que a oposição de Saldanha contra o regime militar foi a responsável por sua demissão é reforçada pelo livro Quem derrubou João Saldanha, de Carlos Ferreira Vilarinho, e no documentário Pelé, de 2021, onde o camisa 10 da seleção é colocado como pivô na discussão que culminou na queda do treinador. Desde então, outros presidentes não interferiram diretamente no futebol brasileiro.

Nesta segunda, o presidente Bolsonaro garantiu que só interveio na CBF para autorizar o recebimento da Copa América no país.

– No tocante a jogador, técnico, estou fora dessa. Não tenho nada a ver com isso aí – afirmou.

Tite, em entrevista coletiva, desconversou ao dizer que nunca se sentiu ameaçado de demissão.

– As pessoas acham que a gente tem que ter opinião sobre tudo, mas a gente tem que ter opinião sobre futebol. Técnico de futebol tem que estar alinhado com o futebol – disse o treinador, na contramão do que havia declarado, ou ao menos insinuado, até então.

Vale lembrar que, de acordo com os artigos 14 e 19 do Estatuto da FIFA, as federações nacionais (como a CBF) são consideradas entidades privadas e não podem aceitar interferência de Governos, sob possibilidade de punição. Nos últimos dez anos, as federações de Nigéria, Paquistão e Chade foram punidas ou ameaçadas pela FIFA após terem intervenções dos Governos locais em suas diretorias ou seleções de futebol.

O novo discurso de Tite e sua permanência no cargo deu o tom da acomodação dos ânimos, para irritação dos críticos do bolsonarismo, que gostariam de ver a resistência do elenco. Após o afastamento do presidente da CBF, Rogério Caboclo, os jogadores da seleção brasileira de futebol também decidiram que irão disputar a Copa América 2021 no Brasil, segundo o portal de notícias esportivas da Globo (GE). Tudo deve ser confirmado em um manifesto que será divulgado pelos jogadores após a partida contra o Paraguai, nesta terça, às 21h30, em Assunção, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo.

Segundo o GE, o manifesto deve ter críticas dos atletas com relação à forma como o evento foi organizado em meio à pandemia de covid-19, sendo transferido para o Brasil a duas semanas de seu início. Porém, os jogadores querem evitar uma “politização” do assunto, apesar das rusgas envolvendo bolsonaristas e Tite. O portal apurou que o maior motivo de insatisfação dos jogadores era personificado no presidente da CBF, que não comunicou a eles a possibilidade do campeonato ser realizado no Brasil antes do anúncio oficial e seria o responsável pela discussão política ter invadido o ambiente da seleção.

O debate acerca da realização da Copa América no país sul-americano mais atingido pelo novo coronavírus ainda prossegue, com a divulgação dos protocolos de segurança sanitária. Atletas da seleção uruguaia e argentina chegaram a explicitar a preocupação em jogar no Brasil e um boicote chegou a ser cogitado entre as seleções, mas descartados pelas próprias federações —Argentina e Uruguai, por exemplo, já confirmaram a participação no torneio, apesar de a última revelar que ficará concentrada em Buenos Aires.

Na volta do Paraguai —onde boa parte da delegação deve receber a primeira dose da vacina contra covid-19— Tite anunciará seus convocados pra a competição sul-americana, e já se prepara para jogar em Brasília no próximo domingo, dia 13, contra a Venezuela, na abertura oficial da Copa América 2021.

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