Polêmico e ineficiente, kit de tratamento precoce convenceu pouco em Canoas, mas já colocou paulistas que acreditaram no 'milagre da cloroquina' na fila de transplante
Reportagem do Estadão assinada pela jornalista Fabiana Cambricoli, que é mestra em Saúde Pública e integra o International Center for Jornalist, instituição que cuida do adequado tratamento da verdade no se que registra na imprensa ao redor do mundo, recoloca o kit de tratamento precoce onde ele deveria estar: longe do uso indiscriminado por pacientes com Covid-19. Incentivado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, que vinha defendendo um benefício que a ciência não pode comprovar ainda, o tratamento precoce foi admitido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) que, no entanto, orienta que médicos só o prescrevam com o aceite do paciente; em outras palavras, divide a responsabilidade do que vier no futuro com o desepero do paciente no presente.
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Fabiana Cambricoli retrata a história de cinco pacientes diagnosticados com Covid-19 em São Paulo que adotaram o tratamento precoce na expectativa de salvarem a vida. Não deu certo. Acabaram intoxicando o própiro fígado e, agora, aguardam um transplante para superarem os danos causados pela ingestão do kit. Pior: outros três que perderam a vida tiveram as mortes atribuídas ao mesmo problema.
"Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia" – relata a reportagem.
Cambricoli cita os números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) apontando que as vendas de invermetina, um remédio indicado para combater a sarna e o pilho, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019. O uso do fármaco não teve sua eficácia contra a covid comprovada, foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo próprio fabricante, a Merck.
"É uma combinação de altas dosagens com a interação de vários medicamentos. A substância desencadeia um processo em que a célula ataca outros células, levando a fibroses, que causam a destruição dos dutos biliares”, diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.
Em Canoas, a Prefeitura informa que os remédios que integram o famoso e polêmico kit de tratamento precoce estão disponíveis na Farmácia Municipal e podem ser retirados mediante prescrição médica. Segundo a prefeitura, não existe protocolo de uso – ficando, portanto, a critério do profissional que faz o atendimento do paciente receitá-lo ou não. A Prefeitura informou, ainda, que não compra os remédios e que os estoques disponíveis hoje foram enviados ao município pelo Governo Federal.
Até o fechamento desta coluna, a Secretaria de Saúde ainda não havia informado quantos pacientes canoenses tiveram acesso ao tratamento precoce pelo SUS. Também não há uma estatística oficial sobre a adoção dos medicamentos para casos de Covid na cidade. Em julho do ano passado, durante a gestão do ex-prefeito Luiz Carlos Busato, a Prefeitura concordou em fazer um estudo com pacientes voluntários a partir de uma indicação da Associação Médica de Canoas, a Somédica. O experimento, feito em parceria com o Hospital Nossa Senhora das Graças, nunca teve resultados conclusivos e acabaram por sequer serem divulgados.
“A partir do momento que essas medicações passam a ser usadas por milhões de pessoas, esses efeitos, mesmo que raros, começam a aparecer com mais frequência. Quando a gente prescreve um medicamento é porque os benefícios são maiores que os riscos. Se esses remédios não têm nenhum benefício contra a covid-19, todo efeito colateral foi em vão”, afirma o médico nefrologista do Hospital das Clínicas da USP, Valmir Crestani Filho.
Na sessão da Câmara de terça-feira, 23, o vereador Juares Hoy (PTB) voltou a defender o uso do kit precoce. Segundo ele, 50 cidades brasileiras já o fazem e estariam apresentando resultados positivos. "Sinto falta de o secretário da Saúde que em três meses não arrumou 15 minutos para vir à Câmara explicar porque a cidade não adota o kit precoce", disse. "Meu filho teve a doença, fez o tratamento precoce e está aí, zero quilômetro".
Bolsonarista de primeira hora, Juares avalia que os medicamentos acabaram 'politizados' em razão da disputa de 2022.
O vereador não comentou, no entanto, a recente mudança de postura vista inclusive no presidente Jair Bolsonaro, que passou a defender a vacina em detrimento da cloroquina, seu mantra no início da pandemia. Em uma última tentativa de protagonizar-se como garoto-propaganda do tratamento precoce, Bolsonaro defendeu no domingo a médica gaúcha demitida depois que três pacientes seus morreram após receberem nebulização com hidroxicloroquina diluída. Para o presidente, médicos tem o direito de receitar tratamentos, mesmo eficácia científica comprovada, e sugeriu que há um lobby mundial por trás do bilionário negócio da vacinas.
Com a ampliação dos casos e o agravamento da crise, a polêmica sobre o tratamento precoce não tem data para acabar. Desinformada sobre os riscos e diante de uma doença que vem tirando vidas cada vez em um círculo mais próximo, a população submete-se. Politizado ou não, antes de tomar qualquer medicamento, avalie junto com um médico. Débora Melecchi, coordenadora da Comissão Internacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica (Cictaf) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), explica que até o momento não existe qualquer evidência científica de medicamentos para tratamento da Covid-19, precoce ou não. “Ao contrário disso, existem estudos comprovando que a cloroquina, a ivermectina e a azitromicina são completamente ineficazes para o tratamento da Covid-19, precoce ou em si”, explica a conselheira. O CNS pediu e foi atendido pelo Ministério da Saúde sobre a retirada do ar de toda página ou informação oficial orientando sobre o tratamento precoce.
No mês de maio de 2020, o CNS publicou uma nota alertando sobre os riscos do uso da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Conselho se posicionou contrário ao documento do MS com orientações para tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19.
Entre os argumentos, o colegiado destacou a ineficácia apontada pelas pesquisas do uso desses medicamentos em pacientes com Covid-19. “Na verdade, as pesquisas vêm demonstrando o surgimento de graves e fatais efeitos indesejáveis, incluindo problemas cardíacos. Aqui estamos nos referindo a publicações em revistas renomadas como a The New England Journal of Medicine, JAMA, The BMJ 1 e The BMJ 2”, detalhou o documento.
Também apontou que a prescrição nos casos leves da Covid-19, “pode levar a situações onde, caso desenvolva um efeito colateral grave, o paciente não tenha tempo de ser devidamente atendido, podendo evoluir para um óbito que seria evitado sem o uso do medicamento”.
Quem quiser conferir a íntegra da reportagem de Fabiana Cambricoli, pode clicar aqui – os trechos reproduzidos em destaque nesta postagem foram reproduzidos de lá. Para não assinantes, a IstoÉ Dinheiro também publicou integralmente o conteúdo, que pode ser acessado clicando aqui.