8º dia
Carlos acordou naquela manhã morta de domingo com vontade de ver Rosa novamente. O que ele mais queria fazer é ter uma conversa como aquela do dia anterior, em que parece que o assunto nunca vai terminar. Ele pensou em ligar para ela, mas tinha receio de ligar cedo demais e tirá-la da cama, ou de causar alguma outra inconveniência. Considerando isso tudo, depois de lavar-se e preparar seu café, ele foi para o quarto ficar no computador ouvindo o tal Tubular Bells que ele pegara emprestado de Rosa.
Depois de almoçar, Carlos decidiu ligar para ela, mesmo com receio de que um de seus pais atendesse e ele ficasse constrangido de falar.
Alguém atendeu o telefone e disse “alô”. Pela voz, devia ser a mãe dela.
— Oi, aqui é o Carlos. Eu queria falar com a Rosa.
— Só um momento — a voz disse, seguida de alguns ruídos e vozes distantes, provavelmente da TV.
Alguns segundos depois, Rosa atendeu. — Alô?
— Oi, meu amorzinho! É o Carlos!
— Oi! — ela disse, parecendo surpresa. — Eu não imaginava que tu ia ligar.
— Pois é. Eu só tava a fim de conversar contigo, sabe, pra matar a saudade — ele disse.
— Mas a gente se viu ontem. Parece pouco tempo pra sentir saudade.
— É, bom… é que a gente tem se visto quase todo dia — ele disse —, e é sembre bom falar contigo. Mesmo que seja pra ouvir a tua voz, sabe?
— Tudo bem — ela disse.
— Eu tô te atrapalhando? Tava almoçando, ou fazendo alguma coisa?
— Não, nada demais.
— Ah, ainda bem. Eu não quero te atrapalhar.
— Tudo bem. Então, tem alguma coisa pra contar?
— Bom — ele disse, percebendo que não sabia nem por onde começar a conversa. — Eu ouvi o CD que tu me emprestou. Duas vezes já.
— O que tu achou?
— Nossa, eu achei uma loucura total — ele disse. — No início, eu nem sabia direito como eu devia escutar aquilo tudo. Mas dessa última vez, parece que as coisas começaram a fazer um pouco mais de sentido. Sabe, pra mim é muito estranho prestar atenção nunca música que não tem nenhum vocal. Mas acho que eu comecei a entender.
— Engraçado. Quando se trata de música, eu não vejo necessidade de entender nada. É só uma questão de escutar e acompanhar a música — ela disse.
— É, essa é a questão — ele disse. — Eu não tava acostumado a ouvir música que exigisse uma atenção especial. Quando eu comecei a entrar no clima da música, aí parece que ficou mais fácil de escutar.
— A música é linda, não é?
— Sim, muito.
— Tu sabe que é só um rapaz tocando quase todos os instrumentos, né? — ela disse.
— Não brinca! Como é que… Cara, que impressionante!
— Sem dúvida.
— Eu vou ter que ouvir de novo depois dessa! — ele disse. — Ah, outra coisa, eu vou fazer uma cópia pra mim e te devolvo o CD da próxima vez que a gente se ver.
— Tudo bem.
— É. Então…
— Olha só, os meus irmãos tão reclamando porque eles querem usar a Internet — ela disse.
— Ah, puxa…
— Eu vou ter que desligar.
— Eu entendo.
— Então…
— Tu não quer me encontrar lá na Redenção?
— Agora?
— Não precisa ser agora, mas, sei lá, às 3. Pode ser?
— Acho que sim.
— Então a gente se encontra… deixa eu ver… Lá na entrada do pedalinho, pode ser? Sabe onde é?
— Eu não sei. Eu não fui lá muitas vezes — ela disse. — Espera, eu já vou desligar!
— Fica perto do chafariz — ele disse. — Se tu for até o chafariz e caminhar em direção ao lago artificial, tu vai encontrar o pedalinho. Eu vou ficar na frente da entrada.
— Tá bom. Às 3 horas?
— Isso, às 3.
— Eu tenho que desligar.
— Tá bom, Rosa. Eu te amo.
— Eu também te amo. Tchau.
Mal ele teve tempo de dizer “tchau” e ela desligou o telefone. Certamente ele não conseguiria ligar para a casa dela pelo resto da tarde. Ele torcia que ela conseguisse encontrar o ponto de encontro sem dificuldade.
Assim que desligou o telefone, sob reclamações e resmungões dos seus irmãos, Rosa foi arrumar-se para sair. Ela apanhou um vestido seu que ela raramente usava, por achar alegre demais. Ela tomou banho, penteou-se, vestiu-se, conferiu o horário e avisou que estava saindo.
— Tu volta ainda hoje, né? — a mãe dela disse.
— Sim, mãe, eu volto hoje.
— Ah, acho bom. Não quero saber de tu me ligando depois mais tarde pra avisar que tu não vem.
— Pode deixar — Rosa respondeu.
Ela saiu, e ainda esperou um bom tempo até poder pegar o ônibus. Rosa nunca tinha entrado no parque da Redenção; ela só passava por ali de ônibus, e algumas vezes a pé. Ela nunca vira nenhum motivo para ver como era ali por dentro. A ideia de passear sozinha em parques não lhe agradava muito; parecia uma espécie de ilusão passageira, apenas para fingir que ela não estava no meio de uma cidade cinza e fumacenta.
Rosa desceu na parada do parque, e foi caminhando pelo meio de um mundo de pessoas naquele dia quente e sem brisa. Caminhando pelo meio das árvores e das estranhas decorações ali erguidas, ela finalmente encontrou o grande chafariz central, e foi até lá. Antes de chegar, ela já conseguiu ver o lago artificial, após um longo gramado. Ela seguiu caminhando até chegar ao portão que dava acesso aos pedalinhos.
— Rosa, aqui!
De frente para o portão, em um banco, estava Carlos, sentado, chamando-a. Ela sorriu ao vê-lo, e sentou-se ao lado dele. — Espero não ter demorado.
— Eu nem sei — ele disse. — Eu cheguei aqui cedo. Encontrou fácil o lugar?
— Não foi difícil — ela disse.
— Ainda bem. Eu não sabia que outro ponto de referência eu podia dar, que fosse fácil de achar e ficasse na sombra. Tá muito quente hoje.
— É, tá mesmo. Mas por que a Redenção, então?”
— Sei lá — ele disse. — Foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, e que não era contramão pra nenhum dos dois. Fora que, sempre que eu penso em ti, eu penso em um lugar agradável, com água, grama e bastante árvore.
— Como a praia — ela disse.
— É, isso. Além disso, eu nunca te vi de vestido.
— Ah, é verdade — ela respondeu, um pouco encabulada. — Eu não… tenho costume…
— Sabe, pra mim, parece que tu fica mais bonita a cada dia.
Ela baixou a cabeça, sem saber outra forma de reagir. — Obrigada.
— Tu ainda se incomoda com esses meus elogios?
— Não é que eu me incomode — ela disse. — É que eu fico sem saber o que fazer.
— Mas será que é necessário fazer alguma coisa? Porque, tipo, se tu me fizesse um elogio assim, eu me sentiria bem. E isso é o que importa.
— Talvez. Pode ser. Eu vou tentar não ficar assim da próxima vez.
— Tá bom, mas não é que eu esteja reclamando, tá?
— Tudo bem.
Eles ficaram em silêncio por um instante. — Então os teus irmãos tavam te incomodando pra usar a Internet, é?
— É sim — ela disse. — Lá em casa, no fim de semana, quase sempre eles brigam por causa do telefone. Eu nunca me envolvi nisso, mas como tu me ligou, aí eu acabei ficando no meio dessa vez.
— Eu notei. Mas puxa, eles nem deixaram a gente conversar direito.
— Pois é.
— Tipo, eu sei que é bom usar a Internet e tudo, mas, tu também tem direito.
— Eu sei — ela disse.
— Em alguns lugares já tem uma tecnologia de acesso à Internet que não ocupa o telefone — ele disse. — Mas acho que não tem aqui ainda, e, se tivesse, seria muito caro.
— Que pena.
— Pois é — ele disse, com uma longa pausa. — Agora, lá em casa, minha mãe sempre me diz que eu tenho que ir ver o meu pai — ele disse, com um suspiro. — Parece que, logo, logo, ele sai da UTI e vai pro quarto. Mas os médicos não sabem ainda se ele vai… é… ah, chega, não quero falar do meu pai.
— Tudo bem, não precisa.
— E eu sei que eu tenho que visitar ele, mas ela não entende que eu não me sinto preparado ainda. Fora que, provavelmente, ela já contou pra ele sobre nós dois. Eu não queria que ela contasse.
— Mas por quê?
— Por que eu é que queria falar, do meu jeito — ele disse. — Se meu pai já souber, ele certamente vai vir com alguma tiradinha. Eu detesto isso.
— Eu entendo — ela disse, pausando por um momento. — Por falar nisso… Eu fiquei muito chateada ontem com o jeito que os meus pais te trataram. Eu juro que eu não sabia que ia ser daquele jeito. Se eu imaginasse, eu teria te avisado.
— Rosa, tudo bem, já passou — ele disse.
— Sim, eu sei — ela disse —, mas eu ainda tô muito envergonhada. Fora o fato de que, depois, meus pais não tiveram nada de positivo pra nos falar. O único comentário foi “quando der algo errado, não vem me pedir ajuda”. Essa é a única coisa que eles têm pra nos dizer? Parece até que eles querem que dê tudo errado, só pra depois ficar me dizendo que eu não sei das coisas, e que eles sabem mais do que eu, e que serve de lição pra eu aprender. Parece que a maior satisfação que eles têm é apontar os meus erros e mostrar como eles são melhores do que eu em tudo. Se fosse pra me ajudar, pra me aconselhar e me mostrar como tomar mais cuidado, eu não me importaria, mas não é nada disso. Eles querem mesmo é que algo dê errado.
— Caramba — ele disse. — Eu não quis comentar, mas eu senti isso também.
— Fora aquela coisa de não deixar a gente fechar a porta do quarto. Eu não entendo por que isso.
Ele olhou para ela, com a testa franzida. — Tem certeza de que tu não entende?
— Claro que tenho — ela respondeu. — Se eu entendesse, eu não diria isso.
— Ora — ele disse —, eles não querem que a gente faça nada de… íntimo, digamos assim.
— Sexo?
— Basicamente sim.
— Não pode ser — ela protestou. — Como é que a gente seria capaz de fazer isso lá em casa, com toda a minha família lá?
— Bom, é mais pra que a gente não se sinta assim tão confortável, e acabe fazendo qualquer coisa que eles não queiram.
— Mas o que eles têm a ver com isso? — ela disse. — Não é com eles que a gente tá fazendo nada! É entre eu e tu. É o meu corpo e o teu corpo.
— Ah, Rosa, sabe como é, os pais sempre querem proteger os filhos. Principalmente as filhas.
— Proteger de quê? — ela disse. — Que perigo poderia existir nisso?
— Não é perigo — ele disse. — É que as pessoas não gostam muito da ideia de gente como nós… tipo, perdendo a virgindade, e tal, tão cedo.
— Tá, mas, se depender deles, a gente vai transar quando?
Carlos deu de ombros. — Depois de casar, eu imagino.
— Essa é outra coisa que eu não entendo — ela disse. — É como se… quer dizer, então, que o casamento não é nada mais do que uma permissão pras pessoas fazerem sexo, é isso?
— Bom, essa é uma forma de enxergar, mas eu diria que sim — ele disse.
— Isso não faz muito sentido pra mim — ela disse.
— Eu acho que isso até tem lógica quando se trata de formar uma família, sabe, de ter filhos — Carlos disse —, porque daí fica complicado o casal se separar quando tem filhos, e tudo. Mas, tipo, não se faz sexo só pra procriar.
— E, mesmo assim, é estranho as pessoas fazerem uma cerimônia enorme por causa disso — ela disse. — Tipo, o que o padre tem a ver com isso?
— Eu acho que isso é só tradição — ele disse.
— Mas é esquisito mesmo assim. O padre olha pros noivos e fala, “eu os declaro marido e mulher. Agora vocês podem transar!”
Rosa começou a rir do ridículo da cena proposta, e Carlos riu também. — É, na verdade, é basicamente isso! — ele disse. — Vai que agora não é mais pecado!
Ela, ainda rindo, começou a brincar com uma ideia em sua cabeça, olhando para ele com certa malícia. Então, fazendo sua melhor imitação de padre, disse: — podem foder bastante!
Carlos desatou a gargalhar, batendo com as mãos nas coxas. Rosa ria descontroladamente, mesmo sem saber por quê.
— Nossa — ela disse, tentando recuperar o fôlego —, imagina se eu poderia dizer isso lá em casa.
Carlos deu de ombros. — Ah, eles que se fodam!
Ela começou a rir de novo, balançando a cabeça. — Vão à merda!
— Vão tomar no cu.
Os dois continuaram trocando palavrões, rindo como crianças.
— Eu nunca ri tanto assim na minha vida — ela disse, esfregando os olhos.
— Quer dizer, tu riu pra caralho!
Ela começou a rir de novo, e já estava sem fôlego. — Ah, para, eu não me aguento.
— Ah, meu amorzinho, eu adoro te ver rir — ele disse.
— É incrível como, contigo, eu penso em fazer coisas que eu nunca tinha sonhado em fazer — ela disse. — Mesmo que seja só ficar falando palavrão. Eu me sinto tão desimpedida. Isso é tão bom.
— É assim comigo também — ele disse.
Os dois ficaram em silêncio, por um momento. Mas Rosa estava pensando, criando coragem para falar, enquanto ele apenas ficava aproveitando aquele momento.
— Sabe, Carlos… Eu te acho bonito também.
Ele sorriu para ela. — Que bom saber, Rosa.
— E… sabe, aquela conversa que a gente teve, quando a gente ficou sozinho lá no teu quarto, que eu disse que eu tinha medo… Eu não tenho mais medo, Carlos.
Ele se virou para ela, em um gesto solene. — Tem certeza, Rosa?
— Tenho sim — ela disse. — Não que eu queira ir correndo pra cama contigo o mais rápido possível, não é isso. Eu acho que essas coisas levam tempo, e a gente tá recém começando, e ainda tem muito pra se conhecer e descobrir… acho que tu entende isso melhor do que eu. Por outro lado… aquele medo… Eu não sinto isso mais. Eu não preciso mais sentir medo de ti. Eu sei o que eu quero. Eu sinto que eu seria capaz de fazer qualquer coisa contigo. E não me importa o que os meus pais vão dizer ou vão achar disso. Eu não quero mais me sentir presa.
Ele se aproximou dela, afangando seu rosto. — Rosa, ninguém nunca mais vai te impedir de nada; nem eu, nem os teus pais, nem os meus pais. Ninguém. Artigo nº 3.
Rosa sorriu. — A gente devia anotar esses artigos, né?
Carlos riu. — Pode ser. Mas o importante é que ninguém pode te dizer o que tu pode ou o que tu deve fazer. Ninguém vai te deixar com medo nem com vergonha. E isso me inclui, ok? Não te esquece disso.
— Tudo bem — ela disse. — Talvez tudo isso esteja acontecendo muito rápido, mas eu sinto que, se não for assim, não vai ser nunca. Não sei se isso é o certo, mas é o que eu quero. E o que eu quero é ficar contigo.
— Eu também, Rosa — ele disse, beijando-a de leve nos lábios.
— Sabe — ela disse —, às vezes, eu fico imaginando como tu ficaria sem roupa.
Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. — Ué, eu ficaria pelado!
— Sim, mas eu não tô falando disso!
— Eu sei — ele disse, rindo —, eu só tô brincando.
— Ah, bom — ela respondeu, e riu. — Mas é sério. Eu fico pensando como seria… melhor, nós dois, nus, sozinhos, num quarto, talvez. Só nós dois, sem ninguém pra nos incomodar. Mas eu me preocupo com isso. Não é muito cedo pra eu pensar nisso?
— Sinceramente, eu não me preocupo muito com isso — ele disse. — Afinal, quem é que vai determinar quando é o momento certo pra fazer tudo? Eu acho que isso não existe. Eu só me preocupo em não fazer nada que tu não esteja pronta. O que me importa é o que tu acha. Fora isso, eu não tô nem aí.
— Pois é. Tu já imaginou?
Ele suspirou. — Na verdade, eu tento não ficar pensando muito nisso, porque é complicado conseguir isso. Tipo, na minha casa, talvez, algum dia, mas é difícil. A gente poderia ir pra algum lugar, talvez, mas o valor da minha bolsa não é tão alto, e agora com essa coisa de os teus pais reclamarem se tu dormir fora de casa… Mas o importante é que, algum dia, a gente vai conseguir isso. A gente vai se ver livre de tudo isso que nos atrapalha, e aí nada vai nos impedir.
— Tomara, Carlos — ela disse.
— Vai dar tudo certo — ele disse, abraçando-a.
Mais tarde, antes de começar a escurecer, Rosa decidiu ir para casa. Carlos quis levá-la até lá, o que ela estranhou por um momento.
— Tem algum problema pra ti? — ele disse.
— Não, não é problema algum — ela respondeu. — É só que… isso é incomum.
— É, eu sei — ele disse. — Mas eu faço questão.
— Tudo bem.
Os dois pegaram o ônibus, desceram na parada da casa de Rosa e foram até o prédio dela.
— Obrigado por ter ido me encontrar hoje — ele disse.
— Tu não tem que me agradecer, Carlos — ela respondeu. — Eu faço isso por mim também.
Carlos demorou um pouco até assimilar isso. — Tudo bem. Mas eu fico feliz por poder te ver.
Rosa abraçou-o longamente, sem preocupar-se com o tempo. Então ele sentiu que ela se afastou. — Ah, não — ela murmurou.
Carlos virou-se para trás. Pedro estava aproximando-se deles. Ele parou diante dos dois, olhando fixamente para Rosa.
— Rosa — Pedro disse —, então tu tá com esse cara mesmo?
— O nome dele é Carlos — ela respondeu. — Eu não quero falar contigo.
— Rosa, não faz isso, eu preciso falar contigo.
— Eu disse que eu não quero — ela disse, olhando para o chão.
— Rosa…
Ele deu um passo em direção a ela, e Carlos bloqueou-o com o braço, encarando-o. Pedro afastou-se um pouco, encarando Carlos, porém com receio.
— Ela disse que não quer — Carlos disse, com gelo na voz.
Pedro olhou para Rosa, que se encolhia atrás de Carlos. A respiração dela era trêmula.
— Eu ainda vou falar contigo — Pedro disse, afastando-se um pouco mais. — Tu não vai me ignorar por muito tempo.
— É melhor tu cair fora agora — Carlos disse —, e nunca mais chegar perto dela, senão eu dou um jeito em ti.
— Por que tu não vem agora? — Pedro respondeu, dando mais um passo para longe. — Não quer que eu quebre o teu outro braço?
— Eu quebro a tua cabeça antes de tu encostar em mim.
— Carlos, não — Rosa disse, em tom de súplica.
Tentando não perder a pose, Pedro finalmente virou as costas e foi embora. Rosa esfregou as mãos no rosto, com a respiração pesada.
— O que é que ele tá fazendo por aqui? — Carlos disse.
— Ele mora no fim da rua — Rosa disse.
— Eu não acredito.
Carlos olhou para Rosa, e, ao ver o nervosismo dela, envolveu-a com o braço. — Rosa, isso não pode mais acontecer. Se ele chegar perto de ti de novo, me avisa.
— Carlos, por favor, não faz isso — ela disse. — Não se mete com ele. Vai ser pior pra ti, e sabe-se lá o que vai te acontecer.
— Mas, Rosa, eu tô preocupado é com o que ele pode fazer contigo! — Carlos disse.
— E eu tô preocupada com o que pode acontecer contigo — ela respondeu. — Tu acha que só tu fica imune, só porque tu quer me proteger?
— Eu não entendo, Rosa — ele disse. — Lá na praia, tu tinha medo dele e queria que eu te ajudasse. Agora, que eu tô tentando te ajudar, tu não quer mais?
— Carlos, se for pra ameaçar ou agredir ele, não vai adiantar — ela disse. — Eu nunca quis isso. Tu me disse lá que a iniciativa devia ser minha. É isso que eu preciso fazer: ter iniciativa. E se tu interferir dessa maneira, vai ser pior pra nós dois.
Carlos bufou, frustrado. — Pôxa, Rosa… Que situação tu me pôs. Se eu algum dia ficar sabendo que ele fez qualquer coisa contigo, eu não vou me controlar. Eu não vou conseguir me conter.
— Mas tu não pode ser assim — ela disse. — Não é com essa atitude que as coisas vão se resolver. Olha, se tu quiser me ajudar, só me dá apoio. É tudo que eu peço. Eu só quero poder confiar em ti. Por favor, é só isso que eu quero.
Ele suspirou, e balançou a cabeça. — Tá bom, Rosa. Me desculpa. Eu não vou te decepcionar.
— Me promete? — ela disse.
— Não adianta prometer, lembra? — ele respondeu sorrindo.
— É verdade.
“Rosa, o teu irmão não pediu pra tu ajudar ele com o trabalho de química? Por que tu não tá lá ajudando?”
“Mãe, ele quer que eu faça o trabalho todo pra ele.”
“Rosa, se ele tá com dificuldade na matéria, tu tem que ajudar ele.”
“Mas, mãe, se eu fizer o trabalho, ele não vai aprender nada. Não vai adiantar.”
“Eu não quero saber de discussão, Rosa! Se é tu que tem dificuldade, a gente ajuda. Então trata de colaborar, ele é teu irmão.”
Rosa suspirou. “Tá bom.”
“Ora, uma guria inteligente assim e não quer ajudar os irmãos? Isso é egoísmo, sabia?”
9º dia
A segunda-feira amanheceu arrastada, quente, abafada. Rosa dormira com o ventilador ligado a noite inteira, o que não aliviara totalmente o calor. Ela chegara a ter a vontade de tirar a roupa, mas sempre havia a possibilidade de alguém entrar no quarto desavisadamente, sem bater, e a mãe dela nunca deixava que ela trancasse o quarto. Se ela algum dia fosse morar com Carlos, eles poderiam dormir sem roupa, descobertos, em noites quentes, os dois corpos à mostra, sem pudor, sem motivo para vergonha; no máximo, atormentados pelos mosquitos.
Rosa tomou seu café e logo foi, a mando da mãe, ao mercado perto de sua casa para comprar algumas coisas. Depois ela limpou e arrumou seu quarto, e ficou lá, como era de costume.
Era perto das 3 horas da tarde quando o telefone tocou. Sua mãe atendeu: era Carlos.
Rosa pegou o fone. — Oi?
— Oi, Rosa, sou eu — ele disse.
— Oi, Carlos.
— Tá tudo bem contigo?
— Tá sim. Contigo também?
— Sim, comigo tá tudo bem. Só um pouquinho cansado — ele disse. — A minha bolsa começou hoje de novo, tive que ir trabalhar. E tá calor hoje.
— Onde é que tu trabalha?
— É ali na Reitoria — ele disse. — É uma bolsa da faculdade. A grana é razoável, vale a pena.
— Que bom — ela disse.
— Sabe, Rosa, eu te liguei… pra te pedir uma coisa.
— O que é?
Ele fez uma pausa. — Eu decidi, hoje, que eu vou visitar o meu pai amanhã no hospital. Ele já tá no quarto, e tudo. Eu não sei como vai ser, e francamente, eu não tô nem um pouco animado com isso. Eu queria… que tu fosse lá, pra me dar um apoio, sabe? Não precisa nem entrar no quarto comigo. É só ficar lá, sabe… pra eu não ficar tão sozinho.
Rosa ficou insegura com a ideia. — Tu não vai querer mesmo que eu entre?
— Não, capaz — ele disse. — Eu nem vou dizer pra ele que tu foi. Eu não vou te constranger nem nada.
Ela pensou por um momento. — Carlos, isso é um pouco difícil pra mim.
— Eu entendo, Rosa.
— Que horas tu vai lá?
— Eu imagino que perto do meio-dia e meia — ele disse. — Eu posso te encontrar lá na entrada do hospital. Se tu não conseguir chegar antes, eu te espero um pouco.
— Tá bom, Carlos, eu vou.”
— Puxa, obrigado, Rosa, obrigado mesmo — ele disse. — Eu tô meio apavorado com essa ideia. Se tu estiver lá, vai ser uma ajuda enorme.
— Tudo bem.
— Tu sabe que, sempre que tu precisar de alguma ajuda, tu pode pedir pra mim, tá?
— Tudo bem.
— Então… sabe, eu até tinha pensado em passar aí hoje, mas eu fiquei com medo de te atrapalhar. Aí a minha mãe quer que eu faça umas coisas aqui em casa… Acho que eu não vou ter tempo livre hoje.
— Eu entendo.
— Que coisa — ele disse. — Desde que a gente se conheceu, a gente se viu praticamente todos os dias.
— Sim.
— Eu sinto que eu não consigo ficar muito feliz longe de ti — ele disse. — Sabe, quando tu tá junto comigo, parece que nada me incomoda. Eu não me sinto incapaz, nem fraco, nem inútil… Eu me sinto capaz de fazer qualquer coisa. É incrível o que tu me faz.
— Eu não faço nada, Carlos.
— Claro que tu me faz — ele disse. — É o poder que a tua companhia tem.
— Mas isso vem de dentro de ti — ela respondeu. — Eu não tenho superpoderes. Se tu te sente assim comigo, então tu também consegue te sentir assim sozinho. Eu não acho bom que tu só se sinta assim junto comigo.
— Eu não acho que isso seja um problema, Rosa.
— Eu não sei. Eu tenho medo que isso se torne dependência — ela disse. — Sabe, eu acho que, se a gente deixar de se ver, vai ser bom pra nós.
Houve um silêncio do outro lado da linha. — O que tu quis dizer com isso, Rosa?
— Eu só quis dizer o que eu disse. Eu acho que eu fui clara.
— Tu não quer mais me ver, é isso? — ele disse, em um súbito tom de alarme.
— Carlos, não foi nada disso que eu falei!
Rosa estava ficando um pouco incomodada de falar ali, no telefone, com sua mãe e seu irmão mais novo por perto. Ao menos os outros estavam trabalhando, mas aquela presença incomodava.
— Então por que tu disse que seria bom se a gente deixasse de se ver?— ele disse, com uma certa indignação. — Tu acha que… que a gente deveria… dar um tempo, ou coisa assim? Que a gente devia se separar?
— Carlos, eu te amo, eu não quero me separar de ti de jeito nenhum — ela disse, enfática. — O que eu quero dizer é que, se em alguma ocasião a gente não se ver, isso vai ser uma coisa boa, porque vai demonstrar que o que a gente sente um pelo outro mão diminui por causa disso. Eu acho que a gente tem que desejar ficar junto, e não sentir necessidade disso, e as vezes em que a gente não ficar junto vai ajudar nisso.
Rosa ouviu um suspiro do outro lado da linha. — Acho que eu entendi, Rosa — ele disse. — É que…sei lá, eu não fico tão assustado com essa ideia de dependência. Entre precisar e desejar te ver… eu não sei se existe diferença.
— Pra mim existe — ela disse. — E eu acho que a gente tem que ter isso claro. Não demora muito e as nossas aulas começam, e a gente não vai poder se ver com tanta frequência. A gente precisa se acostumar com isso.
— É verdade — ele disse.
— Mas não fica com essa ideia de que eu não quero te ver mais — ela disse. — Eu te amo, Carlos. Eu também me sinto bem na tua presença. Eu não quero acabar com isso. Eu só quero ter certeza de que, quando a gente não estiver junto, tu vai ficar bem.
— Tá bom, Rosa. Eu te entendo.
— Sabe, a gente se prendeu um no outro — ela disse. — Eu acho que a gente encontrou um no outro uma saída pras coisas que nos incomodam. Eu acho que eu entendo agora os motivos que me levaram a fazer isso, dessa forma, mas eu não me arrependo nem um pouco. Isso é saudável pra mim, e eu quero que isso seja saudável pra nós dois.
— Tu tem razão — ele disse. — Eu vou pensar nisso com carinho.
— Sim, por favor.
— Eu também quero que tu fique bem.
— Obrigada, Carlos.
— Te cuida, tá?
— Tu também.
— Eu tenho que ir agora.
— Tá bom.
— Tchau, meu amorzinho.
— Tchau… querido…
Os dois desligaram.
“A Rosa precisa sair mais de casa, ir pra essas festas de noite, se enturmar.”
“Tu tá louca, mulher?”
Rosa abaixou o volume do som e aproximou-se da porta para ouvir melhor.
“Tu devia era ficar agradecida que ela prefere ficar em casa do que ficar se metendo nesses lugares pra depois voltar bêbada pra casa.”
“Então tu acha certo que ela fique enfiada no quarto o dia inteiro e não tenha mais amizades? Eu não sei o que tu quer pra tua filha, sinceramente.”
“Ora, se ela fica em casa, pelo menos a gente sabe o que ela tá fazendo. Na rua, a gente não faz ideia.”
“Ué, é só ela sair com os irmãos dela, que eles cuidam.”
“Ah, tá! E tu acha que eles saem de noite pra servir de babá? Eles sim é que têm que aproveitar, ora.”
10º dia
Rosa chegou ao hospital um pouco antes do horário marcado. Alguns minutos depois, Carlos chegou e cumprimentou-a.
— Obrigado por ter vindo, Rosa — ele disse. — Eu prometo—quer dizer, eu não vou te meter em nenhuma furada, tá bom?
— Tudo bem — ela disse, um pouco nervosa.
Os dois subiram ao andar do quarto onde o pai dele estava. Carlos sugeriu que ela esperasse em um banco, que ficava um pouco afastado do quarto.
— Não tem problema pra ti?
— Não — ela disse. A ideia de ficar esperando no corredor daquele hospital, naquela atmosfera triste e opressiva, não deixava-a confortável, mas era a melhor das opções. Ela tentava não se arrepender de ter ido.
— Tá bom. Eu já volto, tá?
— Tá.
Ele ainda ficou ali por um instante, antes de virar-se e ir para o quarto. Rosa sentou-se e ficou ali, tentando não se deixar levar por nenhum pensamento ruim. Ela pensou se, talvez, ela devesse ter desejado-o boa sorte, mas afinal, de que ia adiantar? Algumas palavrinhas formais a mais teriam feito alguma diferença?
Carlos entrou no quarto com o desconforto estampado no rosto e no caminhar lento, pausado, parecendo um gato que entra em um ambiente novo, esticando-se para tentar entender o lugar antes de ir adiante. Havia alguns outros pacientes no quarto, todos eles adultos com já certa idade, em diferentes estados de saúde. Uns dois pareciam um pouco mais dispostos, enquanto um estava deitado, aparentemente bastante mal. A maioria tinha um ou dois parentes visitando.
O pai de Carlos estava em uma cama no canto do quarto, deitado. Sua mãe estava ao lado dele, e cumprimentou-o.
— Oi — Carlos balbuciou, aproximando-se devagar do pai sem saber como portar-se.
Seu pai olhou para ele, mexendo apenas o pescoço e os olhos.
— Oi, Carlos — ele disse. — Até que enfim resolveu dar as caras.
Carlos suspirou. — É. Eu não me sentia muito preparado pra isso.
— Tua mãe me contou que agora tu tem uma guria — ele disse.
— É verdade — Carlos disse. Ele já antecipava aquilo, mas ainda assim era desestimulante.
— Engraçado como isso é fácil pra ti.
— Pôxa — ele respondeu, bufando de leve —, é recém a minha primeira namorada, aos 20 anos de idade. Não chamaria isso de “fácil”.
— Ela é bonita?
— O nome dela é Rosa — Carlos disse. A sua mãe deu-lhe um olhar de reprovação.
— Tá, e ela é bonita?
— Acho que isso não vem muito ao caso agora.
O pai dele fez uma pausa, com uma expressão enigmática.
— Quando é que eu vou poder conhecer ela?
— Não sei.
— É o mínimo que tu pode fazer, né?
— Não depende só de mim, pai. Ela não se sente muito bem com a ideia de te conhecer numa cama de hospital — ele inventou.
— Pois ela que deixe de bobagem. Eu não tô morrendo nem nada.
— Eu sei — Carlos disse.
— Por que tu chegou tão tarde?
— Eu tava trabalhando, na faculdade.
— Não sei que tanto tu trabalha pra ganhar tão pouco.
— Faz parte do aprendizado, pai — Carlos disse. Eles já haviam tido essa conversa dezenas de vezes. Era sempre a mesma coisa.
O pai dele suspirou, olhando para cima. — Carlos… A tua mãe provavelmente já te explicou a minha situação. Tu sabe a gravidade disso, né?
— Eu sei, pai — Carlos disse. Sua mãe havia de fato explicado: ele estava paraplégico.
— Eu sei que a gente teve… alguns atritos. Mas agora é a hora de superar isso, Carlos. Tu bem sabe que, nessa minha situação, eu não vou conseguir me virar muito bem sozinho. Eu vou precisar da ajuda de vocês: da tua e a da tua mãe. Não vai ser fácil, mas é a vida. Não me dá muito orgulho, mas tu precisa cuidar de mim.
— Não te dá orgulho? — Carlos disse. — Nem assim eu vou ter algum valor pra ti?
— Não é isso que eu tô dizendo, Carlos — o pai dele retrucou, em um tom mais alto. — Tu acha que eu devia ficar feliz de depender de ti, sendo que eu é que devia te prover as coisas?
— Pai, tu não se tornou um inválido — Carlos disse. — Muitos paraplégicos são capazes de tocar a vida sem se tornarem tão dependentes. Eu sei que tudo vai ser mais difícil, mas ainda assim, tu poderia demonstrar alguma felicidade por ter alguém que possa te ajudar.
— Eu queria ver se tu conseguiria “demonstrar felicidade” nesse meu estado. Quando a vida te apronta uma dessas, não adianta vir com papo motivacional, que não cola.
— Não vem colocar a culpa na “vida”, pai — Carlos disse. — Quem aprontou isso foi tu mesmo.
— Carlos! — a mãe dele repreendeu, em choque. O pai fincou-lhe um olhar violento.
— O que adianta tu te fazer de vítima? — Carlos continuou, como se nada fosse detê-lo. — A culpa do acidente foi tua. Tu poderia ter matado nós três. Tu poderia ter matado uma família inocente na estrada. Foi pura sorte eu e a mãe ter escapado vivo, sem se machucar muito. E tu, ter ficado desse jeito, não foi nada de tão chocante assim. Talvez isso te servisse pra tu repensar a tua vida, mas eu acho difícil.
— Carlos, para com isso! — a mãe dele repreendeu de novo. Algumas pessoas no quarto começaram a olhar para ele.
— Tu tem ideia do que tu tá dizendo?— o pai dele disse, já ficando com raiva.
— Tenho sim, pai — Carlos respondeu. — É isso que eu penso desde que eu saí daqui do hospital. Se fosse qualquer outra pessoa no teu lugar, eu acho que uma coisa dessas serviria pra pessoa mudar de vida completamente. Mas no teu caso, eu acho impossível. Ao contrário: é engraçado como é fácil pra ti me dizer que eu vou ter que cuidar de ti, sendo que, durante todos esses anos, eu fui um imprestável, um inútil, um caso perdido. Ou ainda: um saco de pancada.
Carlos começou a atrair mais olhares dentro do quarto. A mãe dele já nem sabia o que dizer. O pai dele continuava com os olhos fincados nele, sombrios, quase desumanos.
— Um dia depois de começar a namorar, eu tive que me apresentar pra Rosa com um olho roxo. Graças a ti. Eu não consigo associar nenhuma lembrança boa, nenhuma história agradável a ti. Eu não consigo te citar como exemplo pra nada. A única coisa que durante esse tempo todo eu consegui associar a ti é medo. É por isso que eu não consigo me sentir triste sabendo como tu ficou. Eu não consigo sentir pena. Se eu sinto alguma coisa, é alívio, por saber que eu não preciso mais ter medo de ti, que eu não preciso mais sentir o horror de te ouvir com a fala enrolada por causa da bebida. É só isso.
— Então tu quer é vingança?
— Não, eu não sou que nem tu — Carlos retrucou. — Eu não vou te fazer nenhum mal. Pode ter certeza, eu não vou te tratar do jeito que tu me tratou. Mas pode ter certeza de que, se tu tinha algum sonho de que eu te ajudaria, pode esquecer. Eu não vou te tratar como um pai mereceria ser tratado, porque tu nunca me tratou como filho. Sinceramente, me esquece.
Carlos virou as costas e saiu do quarto. Sua mãe saiu atrás, e deteve-o no corredor. Rosa viu-o sair pela porta, mas, ao ver a mãe dele, permaneceu sentada.
— Carlos, eu não acredito que tu veio aqui só pra fazer isso! — a mãe dele disse, revoltada.
— Não, mãe, não foi pra isso que eu vim — Carlos disse. — Eu só não consegui deixar de dizer o que eu tinha preso na garganta. Foi demais pra mim.
— Tu não entende a situação que o teu pai ficou? — ela insistiu. — Tu não tem direito de tratar ele dessa forma.
— E ele nunca teve o direito de me tratar do jeito que ele me tratou! — Carlos disse, inconformado. — Só eu consigo enxergar isso?
— Carlos, não é mais hora de ficar pensando nisso — ela disse. — Isso é passado. Pensa no futuro.
— Pra ti pode ser passado, mãe — ele disse —, mas pra mim não é. As marcas que ele me deixou no corpo podem ter passado. O olho roxo pode ter passado. Mas o que ficou aqui — ele disse, apontando para a cabeça —, não passa. Eu não consigo esquecer. Eu não consigo ignorar.
— Mesmo assim, tu precisa entender o lado dele. Poucos entendem, mas tu precisa fazer esse esforço mais do que qualquer um, mais do que eu inclusive. Ele é teu pai, Carlos — ela disse.
— Um pai que me xingava e me batia sem motivo e que quase me matou? — ele retrucou. — Isso é pai? Pode ser pra ti, mas pra mim não me serve.
— Tudo isso é ódio que tu sente? — ela disse.
Carlos pausou, pensando, mas sem saber como responder. — Ódio — ele repetiu, como se fosse para si mesmo. Sua linha de raciocínio quebrara-se toda. — Eu não entendo por que tu ainda tem necessidade de defender ele. Tu não precisa mais sentir medo dele, mãe! Ele não pode mais fazer nada conta ti nem contra mim!
Ela apenas sacudiu a cabeça. — Deus queira que não, mas se algum dia tu ficar na situação dele, tu vai entender.
— Eu não vou bater nos meus filhos nem dirigir bêbado — Carlos respondeu. — As chances são bem menores pra mim.
A mãe dele ainda ficou encarando-o por um momento, incrédula, e então apenas virou as costas e entrou de novo no quarto.
Carlos foi até Rosa, que o olhava, tentando entender o que se passara. Ele se sentou, mergulhado em pensamentos confusos e assustadores. Ela olhava para ele, pensando se devia dizer alguma coisa.
— E então, Carlos?
Ele apenas sacudia a cabeça. — Não dá, Rosa. Eu não consigo sentir empatia por ele. Podem me criticar, me condenar, me deserdar, sei lá. Eu não consigo. Eu não consigo olhar pra ele e enxergar um pai que precisa de ajuda. Eu só consigo pensar, “eu tô livre”. Eu sei que isso é ruim, mas…
Carlos tremia, esfregando o rosto. — Será que isso é ódio, Rosa? Será que é isso que eu sinto?
Rosa não sabia o que dizer. Talvez ela nem mesmo soubesse o que era ódio.
— Eu nunca pensei que eu tivesse isso dentro de mim… Eu sempre achei que eu tivesse conseguido seguir outro caminho, que o que eu tinha dentro de mim era bom. Mas talvez… talvez eu ainda tenha herdado toda agressão que eu recebi. Talvez seja isso que eu carregue em mim, Rosa.
Ele olhou para cima, e suspirou. — Não é assim que eu quero ser, mas… talvez… — Ele sentiu um nó na garganta, e um tremor de desespero saia de dentro dele, como se sacudisse sua alma. — Talvez eu não seja a pessoa certa pra ti, Rosa. — As lágrimas caíram pelo seu rosto, e os soluços começavam a cortar suas palavras. — Talvez… eu não seja…
Carlos desabou em pranto, o rosto caído sobre as mãos, desolado, derrotado. — Eu não desejo isso pra ti, Rosa — ele disse, repetindo as palavras que os soluços interrompiam, como uma criança. — Talvez eu seja… o pior pra ti!
Ele chorava, sentindo como se sua vida perdesse completamente o sentido, pouco a pouco, dentro de si. O que lhe restava de humanidade, de sentimento, esvaía-se no ar, sem nada que pudesse resgatá-lo.
De repente, então, ele sentiu os braços de Rosa envolvendo-o, desajeitados e inseguros, mas com o calor verdadeiro que só podia vir do corpo dela. Carlos apoiou-se nela, em um choro ainda mais intenso, e ela o abraçou. E assim eles permaneceram por aquele momento, perdido no tempo, flutuando entre um passado inerte e um futuro desconhecido; um momento indecifrável por qualquer par de olhos curiosos que os vissem naquele corredor de hospital; uma moça e um rapaz, Rosa e Carlos, presos um ao outro por uma força pouco compreendida, inevitável, como a gravidade; presos num abraço que era mais uma pergunta do que uma resposta.
“Rosa,” Carlos disse, com os olhos doendo pelo sono interrompido, mal distinguindo o corpo dela deitado seminu na cama sob a débil luz do crepúsculo.
“O que é?” ela murmurou. Ele não teve certeza se ela estava acordada ou não.
“Me promete que, se algum dia eu me tornar um fardo na tua vida, tu vai me abandonar.”
“Eu não posso prometer o que eu não sei se eu posso cumprir,” ela disse, sem abrir os olhos.
Carlos fechou os olhos. Ele também não sabia se poderia prometer o mesmo.