a coluna do fernie

Caça ao Tesouro – 3º dia, parte 2

— Rosa — ele continuou —, tu não é louca, e tu nunca vai ser louca. Tu não deve acreditar no que eles te dizem.

— Ela pode ter razão — Rosa disse. — Eu posso ser louca e não saber. — Ela começou a comer, olhando atentamente para o seu prato.

— Tu não tem nenhum motivo pra acreditar no que ela diz. Se ela fosse tua amiga, ela teria acreditado em ti — ele disse.

— Mas tu disse anteontem — ela continuou enquanto comia —, que ela não andaria junto comigo se ela não gostasse de mim.

Ele cogitou por alguns segundos. — Ela só pode tá te usando pra benefício dela. É comum ela te dizer que pra tu não falar certas coisas, porque vão achar que tu tá inventando?

— Sim — ela disse. — Ela saía com guris e ia pra lugares que eu nem sei, e mandava eu dizer que ela tava em outro lugar. A gente ia passar a noite na casa de uma amiga dela, aí ela me mandava ficar e ia pra outros lugares. Aí quando perguntavam pra ela, ela dizia que a gente passou a noite juntas na casa da amiga dela, e ninguém desconfiava. Ela sempre fazia isso.

— Então, Rosa! Tu não vê que ela só tá te usando? — ele disse. — É claro que ela quer que tu pense que tu pode ser louca, porque daí é fácil pra ela.

— Eu não quero ser louca — ela disse, cortando um pedaço dos xis com movimentos rudes. — Eu não quero ser louca! Eu tenho medo, Carlos. Ninguém me acha normal. Não importa onde eu vou, eu sempre sou a mais estranha e a mais sozinha. Será que eu sou normal mesmo?

Carlos esfregou o rosto. — Rosa, o que é ser normal, afinal? Qual a vantagem em ser normal, se no fundo, todo mundo tem algo de estranho? Eu acho que ninguém é realmente normal.

— Bobagem — ela disse. — Todas as pessoas que eu vejo conseguem conviver normalmente. Elas entendem todo mundo, e todo mundo entende elas. Eu não. Eu não consigo ser assim. Se eu tento conversar que nem eles, todo mundo me olha torto, como se ali não fosse o meu lugar. Nada do que eu falo interessa pra ninguém. Eu só sirvo pra ser agarrada pelos amigos da Gabriela, mas só aqueles que não conseguem agarrar ela.

— Rosa, eu acho que a primeira coisa que tu deveria fazer é parar de andar com aqueles dois— ele disse. — Tu não pode ficar perto de pessoas que te tratam dessa maneira e põem esse tipo de coisa na cabeça. Ora, tu não é a primeira pessoa que eu conheço que tem dificuldade de ter amigos e conversar com as pessoas. Eu tive colegas e conheci pessoas que pareciam ter medo de chegar perto dos outros. No meu estágio, eu tenho um colega que não conversa com praticamente ninguém, e um certo dia ele precisava pedir ajuda pra mim. Ele tremia. Ele só queria fazer uma pergunta simples, mas ele não conseguia nem falar direito. Mas ele foi até o fim; e depois, com o passar do tempo, a gente começou a bater papo, e a gente ficou amigo. Eu tive um colega no colégio que era gago. Imagina isso: um guri gago no colégio. Imagina o que ele não sofreu?

Ela continuou comendo em silêncio.

— Eu não tô dizendo que as tuas dificuldades e teus problemas não sejam tão importantes quanto tu pense — ele continuou. — Eu só quero dizer que, se todas essas pessoas que eu conheci eram loucas, então não teria manicômio suficiente no mundo! Rosa, quem se importa se tu é normal ou não? Tu é uma pessoa incrível, tu tem talentos que outras pessoas fariam qualquer coisa pra ter, tu tem diversos assuntos sobre o que falar, tu é inteligente, tu é bonita, e tu é uma companhia agradável. E se tu vier com aquele papo de que eu não tô sendo sincero contigo, eu vou embora agora!

— Não, eu não vou mais pensar isso de ti — ela respondeu.

— Ufa, ainda bem! — ele disse, sorrindo. — A verdade é que tu não pode continuar pensando essas coisas negativas de ti mesmo. Tu precisa cortar relações com as pessoas que te fazem mal, começando por aqueles dois. — Ele ficou em silêncio, pensando, por um momento. — Quem sabe tu não vai embora pra casa, hoje mesmo?

— Pra Porto Alegre?

— Isso — ele disse.

— Mas de que jeito?

— De ônibus. Eu posso pagar a tua passagem, se tu precisar. Eu te levo lá na rodoviária pra comprar a tua passagem, tu arruma as tuas coisas, e vai hoje mesmo. Te livra desse fardo que é conviver com aqueles dois.

— Eu não sei se eu deveria fazer isso — ela disse —, ir embora, simplesmente. O que eu vou dizer pra eles?

— Ora, diz que tu não tem mais vontade de ficar aqui! — ele disse. — Se tu não consegue explicar o motivo real, então não precisa se explicar muito. Arruma as tuas coisas e vai embora. Tu é livre e independente pra fazer o que tu quiser.

Ela parou e pensou por um momento. — É, eu acho que sim.

— Então, assim que a gente terminar de comer, eu vou contigo lá na rodoviária, pode ser?

— Tá bom.

Pouco tempo depois, os dois fizeram exatamente isso. Carlos teve que passar em casa para pegar dinheiro, e pediu que ela o esperasse na calçada. Os parentes dele estavam conversando sobre alguma coisa, em voz muito alta, como sempre. Um deles interrompeu a conversa assim que o viu.

— Ô, Carlos! — disse uma de suas tias. — Quem era aquela menina que tu tava conversando agora há pouco?

Carlos sentiu-se congelando de dentro para fora. Milhares de coisas passaram pela sua cabeça ao mesmo tempo. Ele não se lembrava de ter visto nenhum de seus parentes quando estava com Rosa, e temeu que eles o tivessem visto beijando-a. Ele reparou, com um pouco de alívio, que seu pai não estava ali. Seus parentes todos esperavam a resposta com interesse. Ele queria responder da forma mais sucinta e rápida possível, mas sabia que, se ele fosse vago demais, eles interpretariam exatamente da forma que ele não queria. Teria de ser uma resposta desinteressante, trivial, que frustrasse suas expectativas e não levantasse nenhum interesse. Ele teria que mentir.

— É uma amiga minha que eu encontrei aqui — ele disse.

— Ah, tu já conhecia ela, então? — a mãe dele perguntou.

— Sim — ele respondeu, indo diretamente para o quarto. Ele reparou que a conversa mudou um pouco o foco, mas ainda falavam dele. Ele se enfurecia porque, do seu pai bêbado e espancador de filhos, ninguém falava. Víboras, ele pensou.

Carlos rapidamente pegou um pouco de dinheiro e saiu de novo, pela porta dos fundos, o mais rápido que pôde. Ele respirou aliviado assim que pôs o pé na calçada.

— Vamo lá — ele disse para Rosa, seguindo a passos rápidos pela calçada.

A praia de Rondinha não tinha propriamente uma estação rodoviária, e sim apenas um posto de venda de passagens. Os ônibus ficavam parados na rua mesmo, como em várias outras praias. Esse posto ficava perto da estrada de acesso da Estrada do Mar, a mais ou menos um quilômetro dali. Os dois foram caminhando, sem conversar. Carlos já estava acostumando-se à ideia de ficar em silêncio junto a Rosa; a simples companhia dela tornava supérflua qualquer palavra.

Os dois chegaram ao posto, e logo descobriram que não havia mais opções viáveis de ônibus para aquele dia. E não adiantava comprar passagens ali, pois a maioria dos ônibus saía de Torres, e a passagem devia ser comprada no próprio ônibus.

Rosa decidiu que pegaria o ônibus que passava lá perto das 10 da manhã, no dia seguinte. Carlos entregou-lhe o dinheiro da passagem.

— Vê se não desiste na última hora, tá? — ele disse. — Pega aquele ônibus amanhã. Arruma as tuas malas hoje mesmo e vai.

— Eles vão querer saber por quê — ela disse.

— Tu não precisa dar explicação. Diz que tu tá a fim de ir pra casa e vai. — Os dois foram caminhando de volta. — Eu provavelmente vou sair daqui amanhã depois do almoço. Eu posso te ligar quando eu chegar em casa. Pode me dar o teu telefone?

— Posso sim.

Rosa escreveu seu telefone na última folha de seu caderno de desenho, arrancou o pedaço e entregou a ele. Carlos também deu-lhe o seu telefone. Rosa tinha facilidade em memorizar números de telefone, mas por segurança, preferiu anotá-lo no caderno.

— Sabe, Rosa — ele disse, pausadamente, como se hesitasse. — Eu vinha pra cá pensando… Eu pensei que… — Ele suspirou. — Eu não quero que tu leve a mal o que eu vou dizer, mas isso precisa ser dito. Tu precisa saber que… No dia em que eu te convidei pra sair, eu já sabia que eu queria te conhecer, e que eu te achava uma guria legal… Eu nunca pensei direito no motivo disso. E hoje eu percebi… que esse teu jeito diferente, esse jeito que tu parece sempre isolada do mundo, sempre sozinha… Foi isso que me atraiu em ti. E isso porque eu, na verdade, posso parecer muito extrovertido, muito alegre, muito conversador, mas… mas no fundo, eu não sou nada disso. Eu não consigo me sentir confiante por muito tempo, sabe? Se eu tô junto de outras pessoas, principalmente de gente nova que eu não conheço… logo eu começo a me sentir mal, e eu sempre penso que ninguém vai gostar de mim. Eu fiz aquele jogo contigo, porque eu pensei que…

Carlos estava ficando com a voz trêmula. — Eu pensei que, se eu te pedisse, tu me diria que não. E eu vou ser sincero: quando tu chegou lá na parada, exatamente no horário marcado, eu não acreditei. Eu achei que tu só tinha ido lá pra me dizer que não queria nada, e eu até já tava preparado pra isso. E quando tu subiu na lotação comigo… Eu me senti feliz como nunca.

— Que bom, Carlos — ela disse.

— Entende que… eu não gosto de ti apesar de tu ser desse jeito — ele disse. — Eu gosto de ti porque tu é desse jeito. Então nunca me diz que tu é uma louca, e que tu é uma estranha, nem nada disso. Eu gosto de ti exatamente do jeito que tu é. Tudo bem que eu demorei um pouco pra me acostumar à tua franqueza extrema, mas… Eu não queria que tu fosse de outro jeito. Eu gosto de ti exatamente assim, e se eu gosto, então outras pessoas também podem gostar. Tu não precisa te prender a pessoas falsas, que só se aproveitam de ti, pra sentir que tu tem amizades. Amigos de verdade nunca fariam o que aqueles dois fazem.

— Pode ser — Rosa respondeu. — Mas tu acha que é fácil pra mim ser desse jeito? Tu acha que eu quero ser assim? Não é só porque tu me diz isso que eu vou me sentir bem sendo desse jeito. Toda a minha vida, eu só queria que as pessoas olhassem pra mim como se eu fosse uma pessoa normal, como qualquer outra. Eu só queria me sentir capaz de conviver com essas pessoas sem que elas fugissem de mim. Eu não quero ser assim.

— Rosa, tudo bem — ele disse. — Eu não me expressei bem. Eu não quero que tu seja exatamente assim pelo resto da tua vida. Não é isso. Se tu conseguir mudar e conseguir conviver com todo mundo, eu vou achar maravilhoso. Tu só não pode achar que ninguém vai gostar de ti do jeito que tu é. Entende o que eu quero dizer?

— Talvez — ela disse. — Mas tu disse que só gostou de mim porque eu sou desse jeito. Eu não quero que as pessoas gostem de mim só porque eu sou uma antissocial que não sabe lidar com as pessoas.

— Mas não é por isso! — ele protestou. — Não é isso que tu representa pra mim. Quando eu penso em ti, não penso em “guria antissocial”, e sim em uma guria linda e inteligente que enxerga o mundo de uma outra forma, que entende um monte de poesia e desenha muito melhor do que qualquer pessoa que eu conheço. Essa é a Rosa que eu conheço. Essa é a Rosa que mora no meu mundo, e tu também pode ser essa mesma Rosa pra outras pessoas que queiram te conhecer e aprendam a gostar de ti.

— Eu só não achava que isso seria possível — ela disse. — Sabe, eu nunca conseguia falar de poesia, ou de química, com ninguém. Nem mesmo os meus pais gostavam de me ouvir. Na verdade eu gosto de falar sobre as coisas que eu gosto, mas parece que ninguém quer me ouvir. Eu nunca entendi por quê. As pessoas vivem conversando sobre tudo que é coisa, sobre qualquer tipo de assunto, principalmente sobre novela e roupa e futebol e várias outras coisas pelas quais eu não me interesso. Sabe, minha mãe dizia que eu, sendo menina, deveria ver mais novela pra ter assunto pra falar, mas eu nunca entendi o propósito disso. Eu até já tentei ver novela com a minha mãe. Eu costumava reparar nos nomes dos atores e dos personagens, nos nomes das pessoas que apareciam na abertura e o que elas faziam, se eram escritores, diretores ou outras coisas. Mas eu não me interessava pelas histórias. Era difícil ver aquilo e ter sobre o que conversar depois. Então, quando eu tentava falar sobre as coisas que eu gosto, as pessoas não queriam ouvir. Ninguém queria saber o que eu tinha pra dizer, então eu aprendi a não falar mais sobre nada. No máximo o Pedro ficava me ouvindo, mas mesmo assim ele não entendia nada. Eu nunca entendi o que eu fazia de errado, e por que as pessoas se afastavam de mim. Eu só sei que sempre foi assim, e eu me acostumei com isso. E por isso eu não entendia por que tu é que queria me ouvir, e eu achei que, logo que eu começasse a falar, tudo ia se repetir. Agora tu me diz que tu gosta de mim por eu ser desse jeito, e isso é tão estranho. Eu achei que nunca ninguém iria querer falar comigo.

— Sabe, Rosa — ele disse —, eu acho que as pessoas se afastavam de ti justamente porque tu pensa e age de uma forma diferente. Não é por ser pior do que os outros, mas é só por ser diferente. As pessoas são assim; elas dificilmente aceitam quem é diferente da maioria. Por exemplo, quando tu fala comigo, tu raramente olha pra mim. As pessoas normalmente acham que isso é falta de educação.

— Mas por quê? O que isso tem a ver?

— É um costume que as pessoas têm — ele disse. — É um habito olhar nos olhos de quem conversa contigo. É claro que, agora, que a gente tá caminhando, não dá pra gente se olhar muito, mas isso demonstra que tu tá prestando atenção na outra pessoa. Mas também não precisa grudar os olhos na outra pessoa — ele disse, aproximando o olhar dela de forma exagerada para ilustrar. — É só olhar nos olhos de vez em quando, pra pessoa não se sentir ignorada.

— Eu posso tentar — ela disse. — Mas eu não sei se eu vou me acostumar a isso.

— Tudo bem. Eu acho que o importante é tu fazer um esforço.

— Eu sei — ela disse. — O estranho é que, durante um bom tempo, eu tentei agir de uma forma que as pessoas me aceitassem, mas parecia que nada dava certo. Eu sempre era a estranha, a esquisita. Meus pais nunca tiveram paciência pra ouvir o que eu tinha pra falar, muito menos os meus irmãos. Eu ouvia eles conversando, e o jeito deles falarem sempre me pareceu tão esquisito e tão sem sentido, mas mesmo assim eu tentava imitar. E nada adiantava. Bastava eu abrir a boca pras pessoas se aborrecerem. No colégio, então, sempre foi péssimo. A maioria dos meus professores só queriam que eu não abrisse a boca. E quando tinha que fazer trabalho em grupo, ninguém me queria junto. A menos que ninguém estivesse entendendo nada; aí eles pediam minha ajuda. Mas eles só queriam que eu resolvesse os problemas e voltasse pro meu canto.

— Credo, que horror, Rosa — ele disse.

— Eles riam de mim por qualquer coisa — ela continuou. — Eu tentava ouvir o jeito que eles conversavam, pra tentar fazer igual. Mas era só eu chegar e dizer “oi, como é que tá?”, e eles olhavam pra mim e riam. Meus colegas me chamavam de robô. Eles frequentemente tinham dúvida nas matérias, e sabiam que eu ia bem, principalmente em química. Aí eles diziam pra ir perguntar pro robô. Eu achava que, ajudando eles, eles iam gostar mais de mim. Mas nunca adiantou. Parecia que…

De súbito, ela parou de caminhar e começou a chorar, aos soluços. Carlos gentilmente a abraçou, levando-a devagar para a calçada. Rosa demorou para se acalmar, e os dois acabaram sentando-se na calçada.

— Desculpa por isso — ela disse enfim.

— Capaz, Rosa — Carlos respondeu. — Pode chorar e me contar o que tu quiser.

Ela respirava fundo, tentando recompor-se. — Um professor meu uma vez disse pra eu parar de agir como adulta. O que ele queria dizer com isso? Eu nunca “agi como adulta”. Eu agia da maneira que eu achava melhor. Em vez de me ajudar a conviver com meus colegas, ele falou isso como se tivesse me condenando. Minha mãe me levou em psicólogo algumas vezes, mas ela sempre dizia que não adiantava nada. Eu ouvia eles conversando sobre mim, e eu ficava sem entender. Eles diziam que eu tinha “dificuldade de integração”. Como se fosse difícil constatar isso! Parece que ninguém queria saber direito. Eu era uma inconveniência pra eles.

Ele gentilmente limpou o rosto dela, enxugando as lágrimas.

— Pelo menos agora, na faculdade, ninguém me pôs apelido nenhum, ninguém ri de mim. Eu acho que eles estão muito mais ocupados com as aulas e não têm tempo de se importarem comigo. Pelo menos eu posso me concentrar em aprender.

— Rosa, eu não sei se eu posso te ajudar tanto quanto tu precisa — Carlos disse. — Mas eu sei que tu consegue se livrar disso. Eu sei que é difícil, mas toda essa lembrança ruim que tu tem do colégio, tu precisa deixar isso pra trás. Nada disso vai se repetir. O colégio é um lugar horrível, a gente faz coisas absurdas quanto é criança. Vai ser diferente daqui pra diante. Quando a gente voltar pras aulas, a gente vai começar a andar junto, e eu vou te apresentar pros meus colegas, e tu vai ver que não vai mais ser assim.

— Tu faria isso por mim? — ela disse, incrédula.

— Claro! — ele respondeu. — Quando eu te pedi em namoro, não foi pra enfeite. Eu quero ser pra ti tudo o que tu é pra mim.

Em um movimento brusco, ela o abraçou e beijou-lhe o rosto. Ele mal teve tempo de reagir, e apenas sorriu.

— Obrigada por existir — ela disse.

— Eu te digo o mesmo, Rosa.

Os dois ficaram o dia inteiro caminhando e conversando. Rosa teve a impressão de ter conhecido a praia inteira de cima a baixo, de tanto que eles caminharam. Ela também teve a sensação de ter contado a história inteira de sua vida. Qualquer coisa que ela falasse, ele ouvia, e de repente os papéis invertiam-se e ele é que começava a falar, e tudo parecia absolutamente natural. De tão natural, até assustava Rosa um pouco; ela às vezes sentia que, por qualquer deslize, toda a perfeição do momento desabaria sobre sua cabeça. Mas nada disso aconteceu. Ela não estava esforçando-se para agir de outra forma, e tentar falar do jeito que as pessoas “normais” falam, e ainda assim a conversa fluía.

Ao fim da tarde, antes de escurecer, os dois se despediram longamente. Rosa prometeu de novo que pegaria o ônibus da manhã e iria para casa, e à tarde eles se falariam por telefone para saber que estava tudo bem. Rosa repetia essa cena na cabeça como se tudo fosse correr bem, mas ainda ficava ansiosa por ter que enfrentar Gabriela e Pedro sobre sua decisão. Não seria fácil.

Quando Rosa entrou em casa, apenas a mãe de Gabriela estava lá, preparando a comida. Rosa aproximou-se, insegura. Ela se lembrou das palavras de Carlos, na noite anterior, de que ela deveria contar exatamente o que Pedro havia feito. Talvez aquela fosse a oportunidade perfeita.

— Dona Sandra, eu preciso lhe contar uma coisa — ela disse.

— Pode falar — a mãe de Gabriela respondeu, olhando para Rosa brevemente.

Faltava coragem. Apenas de ordenar mentalmente as palavras para começar a falar, ela sentia medo. Seria melhor deixar assim.

— Eu vou embora amanhã de manhã.

— Por que, Rosa? — a outra disse, surpresa.

Rosa sabia que deveria apenas dar uma resposta vaga. — Eu só não tô mais com vontade de ficar, é só isso.

— Mas tu vai embora como?

— De ônibus. Eu tenho dinheiro.

— Tem certeza de que não quer esperar até domingo, pra voltar de carona?

— Sim, eu tenho — Rosa disse, já sem vontade de falar mais nada.

— Bom, tudo bem. É uma pena, mas se tu tem certeza, não tem problema.

Rosa apenas acenou com a cabeça, e foi para o seu quarto. Ela decidiu primeiro tomar um banho, e em seguida arrumar sua mala.

Gabriela e Pedro chegaram em casa pouco tempo depois. Rosa estava fazendo a mala quando eles entraram no quarto.

— Rosa, é verdade isso que tu vai embora? — Gabriela disse, com a voz murchando na medida em que ela percebia que era verdade.

— Sim — Rosa respondeu.

— Por quê?

Rosa já estava frustrada de ter que explicar tudo de novo. — Eu só não tô mais a fim de ficar, é só por isso.

— Algum motivo especial?

— Não, nenhum — Rosa disse, fazendo esforço para não dizer a verdade.

— Ora, mas deve ter um motivo muito bom pra tu não querer ficar só uns dias a mais — Gabriela disse.

— Deixa pra lá, Gabi — Pedro interrompeu. — O que foi que eu te disse? A gente já não importa mais pra ela.

— Para com esse drama, Pedro! — ela disse. — Eu só quero saber houve algum problema. Eu não quero que ela precise ir embora desse jeito.

— Não houve problema nenhum — Rosa respondeu. — Eu só quero ir embora.

— Esquece ela— Pedro insistiu. — Depois que ela arranjou aquele cara, ela não precisa mais de nós.

— O nome dele é Carlos — Rosa disse, repentinamente irritada.

— Viu só? — ele disse, direcionando seu olhar diretamente para Rosa. — Ela se importa muito mais com esse cara do que com nós.

Rosa bufava, tentando inutilmente conter-se. — O nome dele é Carlos — ela repetiu, apertando os dentes.

— Pedro, não vai fazer cena de ciúme aqui, por favor! — Gabriela disse, afastando-se dele.

— Não é ciúme — ele disse, sem sinceridade. — Eu só tô mostrando o que acontece. A gente foi amigo dela esse tempo todo, e agora tá aí.

— Ah, não vem com essa! — Gabriela retrucou. — Primeiro que foi tu que incentivou ela a sair com o cara, e agora tá aí reclamando? Tenha paciência!

— Eu não incentivei ela a nada — ele disse. — Eu só achava que ela deveria fazer aquilo que ela achava certo.

— Ah, sim — Gabriela disse, ironizando. — Mas agora, tu acha exatamente o contrário, e tá criticando ela por querer ir embora.

— Mas foi tu que veio aqui tirar satisfação com ela!

— Eu só queria saber o motivo dela ir embora, é só isso! — Gabriela disse, já exaltada. — Me diz, Rosa, é por causa desse Carlos que tu vai embora?

Rosa já estava tão cansada e transtornada com aquela situação, que já não valia mais a pena mentir. — É sim.

— Pronto! — Gabriela disse. — Satisfeito, Pedro?

— Não, não tô não — ele disse. — Eu não entendo como é que tu pode largar a gente de lado por causa de um babaca qualquer que tu conheceu num dia e já saiu se esfregando no outro.

— O que eu faço com o Carlos não é da tua conta — Rosa respondeu, furiosa. — E eu não quero mais falar sobre isso.

Pedro não recuou, e apenas encarou-a com um olhar petulante. — Viu só, Gabi? É isso que eu ganho. Durante todo esse tempo eu fiquei do lado dela, sempre tentando ajudar, fazendo companhia, sempre que ela precisava. Eu sempre fui um cara legal pra ela. Sempre. E o que é que eu ganho? Eu sou trocado por um babaca qualquer.

Rosa encarou-o de volta, com uma raiva que ela não sabia de onde vinha. — É só isso que tu queria, né? Tu era meu amigo não porque tu gostava de mim, mas porque eu deveria me oferecer pra ti como recompensa? Como se eu fosse uma mercadoria? E eu confiava em ti, Pedro. Eu achava que a tua amizade era sincera. — Ela olhou de repente para Gabriela. — Ainda bem que tu tá aqui pra ouvir isso, Gabriela. Se eu te contasse isso depois, tu ia me chamar de louca e mentirosa.

Gabriela apenas olhou para os lados, sem saber o que dizer.

— Tu nunca foi meu amigo de verdade, Pedro; durante todos esses anos. O que o Carlos fez por mim nesses poucos dias foi muito mais do que vocês dois juntos já fizeram. Ele não me enganou, me fazendo acreditar que ele só queria ser meu amigo, esperando que eu me apaixonasse pra depois me dizer que eu não podia reclamar. Não foi isso que tu me disse? Pois é. O Carlos gosta de mim do jeito que eu sou, e não fica só me usando, que nem tu — ela disse, então, diretamente para Gabriela —, pra ficar acobertando as tuas mentiras, me chamando de louca pra que eu tivesse medo de contar a verdade. Nenhum de vocês dois é meu amigo, e é por isso que eu quero ir embora. E eu não quero mais falar sobre isso. Eu só quero arrumar as minhas coisas e ir pra minha casa.

Pedro não se conformava por não ter o que dizer. Gabriela, ao contrário, não quis dar-se por vencida.

— Boa sorte pra ti pra arranjar mais alguém que te ature — ela disse, dando-lhe as costas.

— Eu tenho um namorado — Rosa disse, sem perceber que Gabriela ficaria tão ofendida com isso, pois ela nunca conseguira um namorado.

Gabriela saiu porta afora, vociferando. — Eu não quero ela dormindo no meu quarto hoje!

Os pais dela estavam na sala, observando tudo de longe.

— Ué? Onde é que tu quer que ela durma? — o pai dela disse.

— Sei lá. Ela que durma na sala!

— Mas nem pensar! — a mãe dela interveio. — Foi tu que quis que ela viesse pra cá, agora tu é que dê um jeito de aguentar.

— Fui eu que convidei — Gabriela retrucou —, então eu expulso ela se eu quiser.

— Fomos nós que convidamos! — a mãe dela disse. — E nós decidimos que ela vai dormir lá, e pronto.

— Mas o quarto é meu — Gabriela insistiu.

— Mas a casa é nossa, e a gente é que decide.

— Credo, não precisa ser tão autoritária, também — o pai dela disse.

— Agora tu não te mete, porque quem tá resolvendo o assunto sou eu.

Gabriela aproveitou o ensejo para pedir socorro para o pai. — Viu como é que ela é?

— É, eu sou assim mesmo, e agora encerra a discussão. Já tá decidido.

Gabriela sacudiu a cabeça, inconformada, mas foi indo até o quarto em silêncio. Pedro, que ainda estava lá, olhou para Rosa. — Viu o que tu fez? — Ele virou as costas e saiu de casa.

— E tu, não tem que ficar discordando de mim na frente dela! — a mãe de Gabriela disse para o pai. — A gente tem que impor autoridade.

— Mas eu acho que não é assim que as coisas funcionam.

Gabriela jogou as mãos para os lados. — Tá, já chega dessa discussão, né? — ela disse, em voz alta e petulante.

— Como é que é? — a mãe dela disse, levantando-se. — Olha aqui, quanto tu tava lá discutindo com os dois, eu não fui lá me meter e dar palpite. Então tu é que não vai se meter na discussão minha e do teu pai. A discussão só vai acabar quando nós nos resolvermos, e tu não tem nada a ver com isso. E se tu não vai ter respeito por mim e pelo teu pai, então te tranca no teu quarto e não sai mais de lá hoje.

Aborrecida, Gabriela fechou o rosto e saiu dali. A mãe dela sacudiu a cabeça e foi até o quarto.

— E tu, Rosa, por ficar tranquila…

Ela parou ao ver Rosa, encolhida no seu colchão, chorando com o rosto afundado nas mãos. Rosa levantou o rosto, sem forças.

— Rosa, tu vai dormir aqui hoje. Ninguém vai te expulsar do quarto.

Ela apenas acenou com a cabeça, e deixou o rosto cair sobre as mãos de novo. Rosa sentia-se não apenas exausta, mas humilhada. Ela não esperava que Pedro ainda tivesse tantas coisas horríveis para dizer. Ela se sentia pequena, insignificante, inútil na presença dele. Por outro lado, ela ainda sentia uma ponta de alívio e vitória, por ter exposto o que ela pensava daqueles dois, e por ter mantido-se firme em sua decisão. Não importa o que eles fizessem, ela agora não precisava mais deles, e seria muito melhor ficar sozinha do que na companhia deles.

Rosa queria sentir-se forte, capaz de enfrentar as pessoas e manter sua dignidade; mas ainda assim, parecia impossível fazer esses sentimentos triunfarem sobre a mágoa e a dor. Não era certo negar ou diminuir a humilhação, a traição. No momento, tudo que ela podia fazer era aceitar o que acontecera. Ela não queria nem mesmo sair da cama, e pensou que talvez fosse melhor tentar dormir. Rosa arrastou-se até a sua mala e pegou seu relógio despertador, e acertou-o para tocar na manhã seguinte. Ela então deitou-se, virada contra a parede, e forçou-se a ficar ali até o sono bater.

 

“Que bom que a gente conseguiu a Rosa,” a menina disse, guardando o caderno na mochila. “Agora é certo que a gente vai tirar 10.”

“Eu não sei se eu acertei todas,” Rosa disse.

“Tu sempre acerta,” a outra menina disse, já levantando-se para ir para o recreio.

“Eu posso… ir com vocês?” Rosa disse.

“Não, hoje não vai dar,” a primeira menina disse. “Talvez outro dia.”

“Mas a gente fez o trabalho juntas…”

“Outro dia, robô!” ela disse, enquanto saía gargalhando com a outra menina, fazendo movimentos e imitando barulhos mecânicos.

 

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