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Costureira morta, angolano baleado: motorista de app vai a júri, PMs não; é a ’licença para matar’

Gilberto e Dorildes foram baleados na ação; costureira morreu 16 dias depois

O Ministério Público ofereceu denúncia por triplo homicídio contra o motorista de aplicativo que transportava o angolano Gilberto Andrade da Casta Almeida e sua namorada, Dorildes Laurindo, que acabou falecendo após ser baleada em abordagem policial da qual fugiu Luiz Carlos Pail Júnior, 31 anos. Os PMs não irão a júri popular. Reputo uma perigosa ‘licença para matar’.

Há discrepâncias nas versões.

Em 17 de maio deste ano, o motorista de app desobedeceu à ordem dos policiais para que parasse o veículo que dirigia na Avenida Marechal Rondon, em Cachoeirinha, e foi perseguido pela Brigada Militar até a Rua José Bonifácio, em Gravataí.

Conforme o site do MP, “lá, parou bruscamente o carro, mandou que os dois caroneiros – que estavam no banco traseiro – descessem e atirou três vezes contra os policiais, que revidaram. No tiroteio, os passageiros foram atingidos por projetis disparados pelos PMs. Dorildes morreu no hospital e Almeida ficou ferido. O denunciado fugiu para dentro de um matagal, mas acabou preso em flagrante nas proximidades da RS-118 e segue detido em Charqueadas. Foi apreendido no local um revólver calibre 38 com três munições deflagradas e duas intactas”.

Já reportagem de Adriana Irion em GZH informa que “depois que o carro parou, os PMs atiraram 35 vezes. Os disparos deixaram Gilberto e Dorildes feridos. A costureira morreu depois de 16 dias de internação. Gilberto ficou preso por 12 dias. Só foi solto porque o inquérito da Polícia Civil de Gravataí apurou que ele não havia atirado contra a viatura, como haviam afirmado os policiais. Luiz Carlos também nega que tenha feito disparo contra os PMs”.

Nesta terça, conforme o MP “o 1º promotor de Justiça de Gravataí, Fernando de Araujo Bittencourt, denunciou Luiz Carlos Pail Júnior por tentativa de triplo homicídio com duas qualificadoras: para assegurar a impunidade de outros crimes e cometido contra agente de segurança pública. Ele também foi acusado pelos crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, desobediência de ordem legal de funcionário público e falsa identidade.

– Os três crimes de homicídio apenas não se consumaram por circunstâncias alheias à vontade do denunciado, quais sejam, o erro de pontaria e o fato de os policiais militares terem efetuado disparos de arma de fogo em revide – explica o promotor.

Conforme Bittencourt, as tentativas de homicídios foram praticadas a fim de assegurar a impunidade dos crimes de porte ilegal de arma de fogo e de tentativa de feminicídio, no qual havia um mandado de prisão preventiva para cumprimento. O promotor esclarece, inclusive, que a abordagem dos policiais ao veículo que o denunciado dirigia se deu por meio do cercamento eletrônico, que identificou que aquele carro havia sido utilizado na suposta tentativa de feminicídio. No cadastro do aplicativo de serviço de transporte de passageiros, Pail Júnior utilizou nome falso para não ter seus antecedentes criminais descobertos, entre eles, duas condenações por tráfico de drogas”.

Já quanto a eventuais crimes cometidos pelos três brigadianos envolvidos na troca de tiros, ainda conforme o MP, o promotor pediu à Justiça declinação de competência. Bittencourt entende que há “ausência de indícios concretos da prática de crimes dolosos contra a vida por parte dos policiais militares” e que, portanto, a investigação deve ter continuidade no âmbito do Ministério Público Militar.

Com isso, o caso retorna para a 2ª promotora de Justiça Militar de Porto Alegre, Isabel Guarise Barrios, onde começou a tramitar no MP. Foi ela quem remeteu os autos para o Tribunal do Júri para que o promotor Bittencourt avaliasse se houve crime doloso contra a vida. O procedimento é praxe nessas situações.

Como o promotor afastou essa hipótese, os autos foram novamente remetidos a ela.

– Vou analisar as provas ali existentes para avaliar se há crimes residuais e, se for o caso, oferecer denúncia contra os policiais na Justiça Militar – explicou a promotora.

Em 14 de agosto, em Sem ’licença para matar’ para PMs de Gravataí que atiraram 35 vezes contra costureira e haitiano; nosso Caso George Floyd, defendi que os PMs deveriam ir a júri popular, onde a sociedade, e não a corporação militar, decidiria por condená-los ou mantê-los inocentes – o que hoje o são.

Escrevi.

Como pode a Corregedoria-Geral da Brigada Militar concluir o Inquérito Policial Militar (IPM) entendendo que os três policiais envolvidos na ação “agiram em legítima defesa, mas com excesso culposo”?

Os PMs atiraram 35 vezes após o carro parar! Dorildes morreu depois de 16 dias de internação. Gilberto foi ferido e ficou 12 dias preso, até cair a versão dos policiais de que esteve envolvido em troca de tiros.

Caso o Ministério Público e o Judiciário de Gravataí concorde com o julgamento da corporação Brigada Militar, estaremos frente a uma aplicação da ‘licença para matar’ que o presidente Jair Bolsonaro e o então ministro da Justiça Sérgio Moro tentaram, e não conseguiram, no Projeto de Lei 882/19, o fascitóide ‘pacote anticrime’, que mexia no artigo 23 do Código Penal, que trata do excludente de ilicitude.

O excludente de ilicitude está previsto no artigo 23 do Código Penal, que exclui a culpabilidade de condutas ilegais em determinadas circunstâncias. Conforme esse artigo, “não há crime quando o agente pratica o fato: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. O parágrafo único diz: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.

Bolsonaro e Moro queriam acrescentar a esse artigo o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

As evidências são de que é nosso caso George Floyd, negro assassinado em abordagem policial cuja divulgação das imagens convulsionou os Estados Unidos e teve reflexos em outros países, inclusive o Brasil. Em entrevista a Renato Dornelles, publicada pelo SUL21, o haitiano conta que os policiais disseram: “Tu vai sangrar até morrer. Morre capeta. Morre exu desgraçado”. Isso após a costureira cai dizendo: "Vocês mataram uma inocente".

É um pé no pescoço do cadáver de Dorildes – de Gilberto e da sociedade – a BM concluir que os policiais agiram em legítima defesa. Não se espera que brigadianos ofereçam rosas em uma abordagem, mas 35 tiros, sem nenhum contrário, sem arma empunhada pelos suspeitos?

É irrespirável esse mau cheiro que toma conta do país com notícias quase que diárias de abordagens violentas a pobres e pretos, muitas cometidas por pretos e pobres. Os policiais não precisam ser os heróis, mas não podem ser os vilões.

O Ministério Público e o Judiciário de Gravataí podem corrigir isso, submetendo os PMs ao júri popular, onde a sociedade, e não a corporação, vai avaliar as circunstâncias dessa tragédia.

Ao fim, não foi o que aconteceu. O MP, que é o representante da sociedade, ao optar por declinar da competência, eliminou a possibilidade de júri popular. A Justiça Militar julgará os militares.

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