A curiosidade matou o gato, é verdade. Mas antes disso, que biografia teve o gato!
Gatos gostam de meandros, brenhas, tugúrios, desvios, barafundas, labirintos, cavernas, esconderijos. O gato vai aonde a intriga pode estar. E de lá volta com assombros, encantamentos, descobertas, maravilhas, conhecimento.
O conforto e a mordomia apachorram o gato, é verdade. Mas antes disso, já mapeou arredores e redondezas, sótãos e porões, já palmilhou muros e monturos. Antes das almofadas, o gato já apalpou o inóspito e o inabitável. E voltou do áspero e do agreste com nourrau nas patas.
O gato se acostuma, é verdade. Mas antes de sistematizar sua velhice, fez gato e sapato da casa, se apoderou das circunstâncias familiares e se rebelou contra o inexplicável desarranjo das faxinas. O gato, se escrevesse, escreveria compêndios sobre o desassossego.
O gato é só gato, é verdade. Mesmo assim, se procurasse emprego, seriam os desafiantes. Se fosse jornalista, bateria na porta do Intercept, não dos jornalões. No Intercept, o gato não seria contratado, claro, mas o deixariam se instalar como quisesse, feito assessor pro faro da notícia. Na grande mídia, seria escorraçado pela faxineira.
Mercado afora, o gato não se acomodaria. Investigador, pesquisador, fiscalizador: onde precisasse fuçador, bisbilhoteiro, escarafunchador, o gato mostraria o currículo.
Mas o gato não tem escapatória, é verdade. Ser gato é seu dom e sua sina, como diria o detetive Monk, felino feito gente engaiolado numa série de tv. O gato é gato desde que engatinha até o fim. E é, no ínterim, incansável biógrafo de si mesmo.
Não é a curiosidade que mata. É que, na trajetória dos curiosos como na dos não curiosos, a vida não impede acidentes, incidentes e outras reincidências. O que mata é a inércia.
(Para meu amigo Hals, artista gráfico)