Trump e Netanyahu falaram em “ataque” e em “Hezbollah”: coincidência? Agora, há um estoque trilionário de imóveis a peço de banana, e à disposição de megafundos ocidentais. Mas e se o Líbano, ao contrário, voltar-se para a Ásia?. O Seguinte: reproduz o artigo de Pepe Escobar, traduzido no Brasil pelo Outras Palavras
A narrativa de que a explosão de Beirute foi exclusiva consequência da negligência e da corrupção do atual governo libanês parece já uma história gravada sobre a pedra, ao menos no contexto do mundo atlanticista. No entanto, cavando mais fundo, deduzimos, na realidade, que a negligência e a corrupção podem ter sido amplamente exploradas, via sabotagem, para engendrar a grande explosão.
O Líbano é um cenário, por excelência, para as tramas de John Le Carré: um covil multinacional de espiões de todos os matizes ― agentes da Casa de Saud, operativos sionistas, fornecedores de armas para “rebeldes moderados”, intelectuais do Hezbollah, “realeza” árabe depravada, contrabandistas autoglorificados ―, em um contexto de desastre econômico de amplo espectro, que aflige um dos membros do Eixo da Resistência, alvo perene de Israel, ao lado da Síria e do Irã.
Como se isso não fosse suficientemente vulcânico, o presidente Donald Trump meteu o nariz na tragédia para turvar ainda mais as já contaminadas águas do Mediterrâneo Oriental. Informado [em jargão militar, “brifado”] por “nossos grandes generais”, Trump, na terça-feira, disse: “De acordo com eles… e eles saberiam melhor do que eu… eles reconhecem o que aconteceu como um ataque”.
Trump acrescentou: “foi algum tipo de bomba”.
Teria Trump, com uma observação incandescente como essa, dado com a língua nos dentes, revelando inadvertidamente informações confidenciais? Ou estaria o presidente disparando outro dos seus non sequitur [conclusão falaciosa]?
Trump por fim voltou atrás nos seus comentários, depois que o Pentágono se recusou a confirmar a ilação sobre que coisa os “generais” teriam dito, e depois que seu secretário de Defesa, Mark Esper, assentira no argumento do acidente como explicação para a explosão.
Essa é mais uma ilustração visível da guerra que assola o Beltway [N. do T.: o território dentro do cinturão rodoviário que circunda e delimita a capital norte-americana, ou, em termos figurados, a corte dos altos funcionários, lobistas e a imprensa que os cobre]. Trump: ataque. Pentágono: acidente. “Acho que ninguém pode dizer agora” ― disse Trump na quarta-feira. “Eu ouvi das duas maneiras”.
Ainda assim, não custa nada lembrar uma nota da agência de notícias Mehr, do Irã, de que quatro aviões de reconhecimento da Marinha dos EUA foram identificados nas proximidades de Beirute no momento das explosões. Estaria a inteligência dos EUA ciente, em todo o espectro de possibilidades, do que realmente aconteceu?
Ah! Aquele nitrato de amônio!…
A segurança no porto de Beirute, principal centro econômico do país, deveria ser considerada uma prioridade. Mas, parafraseando uma fala do “Chinatown”, de Roman Polanski: “Esqueça, Jake. É Beirute”.
Essas agora icônicas 2.750 toneladas de nitrato de amônio chegaram a Beirute em setembro de 2013, a bordo do Rhosus, um navio de bandeira moldava que navegava de Batumi, na Geórgia, para Moçambique. O Rhosus acabou sendo apreendido pelo Controle Estatal do Porto de Beirute. Posteriormente, o navio foi abandonado, de fato, por seu proprietário, o obscuro empresário Igor Grechushkin, nascido na Rússia e residente em Chipre, que, de forma suspeita, “perdeu o interesse” na sua carga relativamente valiosa, sequer tentando vendê-la na bacia das almas para pagar suas dívidas.
Grechushkin nunca pagou a tripulação do navio, que mal conseguiu sobreviver vários meses, antes de ser repatriada por motivos humanitários. O governo cipriota confirmou que não havia nenhum pedido do Líbano à Interpol para prendê-lo. Toda a operação parece um disfarce para encobrir os verdadeiros destinatários do nitrato de amônio, provavelmente “rebeldes moderados” que tentavam derrubar o governo sírio, e que o usavam para fazer IEDs [Improvised Explosive Devices: dispositivos explosivos improvisados] e equipar caminhões suicidas, como o que demoliu o hospital Al Kindi, em Alepo.
As 2.750 toneladas ― embaladas em sacos de 1 tonelada com a etiqueta “Nitroprill HD” ― foram transferidas para o armazém do Hangar 12, próximo ao cais. O que se seguiu foi um caso surpreendente de negligência em série.
De 2014 a 2017, cartas de funcionários da alfândega ― uma série deles ―, bem como alternativas propostas para se livrar da carga perigosa, exportá-la ou vendê-la, foram simplesmente ignoradas. Cada vez que esses funcionários tentavam obter uma decisão legal para se desfazer da carga, não obtinham qualquer resposta do judiciário libanês. Quando o primeiro-ministro Hassan Diab proclama agora que “os responsáveis pagarão o preço”, o reconhecimento do contexto faz-se absolutamente essencial.
Nem o primeiro-ministro, nem o presidente, nem qualquer dos ministros sabiam que o nitrato de amônio estava armazenado no Hangar 12, confirma o ex-diplomata iraniano Amir Mousavi, diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais de Teerã. Estamos falando de um artefato explosivo gigante, localizado no centro da cidade.
A burocracia no porto de Beirute e as máfias que realmente mandam estão intimamente ligadas, entre outros, à facção al-Mostaqbal, liderada pelo ex-primeiro-ministro Saad al-Hariri, que conta, por sua vez, com total apoio da Casa de Saud.
O enormemente corrupto Hariri foi removido do poder em outubro de 2019, em meio a protestos consideráveis. Seus comparsas “desapareceram” pelo menos US$ 20 bilhões do tesouro do Líbano, o que agravou seriamente a crise monetária do país. Não admira que o atual governo ― chefiado pelo primeiro-ministro Diab, apoiado pelo Hezbollah ― não tenha sido informado sobre o nitrato de amônio.
O nitrato de amônio é bastante estável, o que o torna um dos explosivos mais seguros usados na mineração. O fogo normalmente não o aciona. Ele se torna altamente explosivo apenas se contaminado ― por exemplo, por óleo ― ou aquecido a um ponto onde sofre mudanças químicas que produzem uma espécie de casulo impermeável ao seu redor, no qual o oxigênio se acumula a um nível perigoso, e onde basta uma ignição para produzir uma explosão.
Por que, depois de dormir no Hangar 12 por sete anos, essa pilha de repente sentiu vontade de explodir?
Até agora, a explicação mais objetiva, do especialista em Oriente Médio, Elijah Magnier, aponta para uma tragédia sendo “desencadeada” por um serralheiro sem noção, manejando um maçarico bem próximo ao nitrato de amônio inseguro. Insegurança que se pode atribuir à negligência e à corrupção… ou como parte de um “erro” intencional que virtualmente anteciparia a futura explosão.
Este cenário não explica a explosão inicial de “fogos de artifício”. E certamente não explica o que ninguém ― pelo menos no Ocidente ― está falando: os incêndios deliberados em um mercado iraniano em Ajam, nos Emirados Árabes Unidos, e também em uma série de armazéns agrícolas/alimentares em Najaf, Iraque, imediatamente após a tragédia de Beirute.
Siga o dinheiro
O Líbano, que ostenta ativos e imóveis no valor de trilhões de dólares, é um pêssego suculento para os abutres das finanças globais. Adquirir esses ativos a preços baixíssimos, no meio da Nova Grande Depressão, seria simplesmente irresistível. Em paralelo, o outro abutre, o FMI, embarcaria no modo extorsão total e, por fim, “perdoaria” umas quantas dívidas de Beirute, desde que alguma modalidade severa de “ajuste estrutural” seja imposta.
Quem lucra, neste caso, são os interesses geopolíticos e geoeconômicos dos Estados Unidos, Arábia Saudita e França. Não por acaso o presidente Macron, um servo zeloso dos Rothschild, chegou a Beirute na quinta-feira para prometer “apoio” neocolonial de Paris e praticamente impor, como um vice-rei, um conjunto abrangente de “reformas”. Um diálogo inspirado em Monty Python, arrematado com forte sotaque francês, poderia ser expresso nas seguintes linhas:
―Queremos comprar o seu porto.
―Não está à venda.
―Oh, que pena! Um acidente acabou de acontecer.
Já faz um mês, que o FMI vinha “avisando” que a “implosão” no Líbano estava se “acelerando”. O primeiro-ministro Diab teve que aceitar a proverbial “oferta irrecusável” para “desbloquear bilhões de dólares em fundos de credores”. Se não… A especulação ininterrupta, de mais de um ano, sobre a moeda libanesa foi apenas um aviso, relativamente educado.
Isso acontece em meio a uma enorme apropriação global de ativos, especificada pelo contexto mais amplo da queda do PIB americano em quase 40%, ordens de falências, um punhado de bilionários acumulando lucros inacreditáveis e megabancos grandes-demais-para-falir devidamente resgatados com um tsunami de dinheiro grátis.
Dag Detter, um financista sueco, e Nasser Saidi, um ex-ministro libanês e vice-presidente do banco central, sugerem que os ativos do país sejam colocados em um fundo de patrimônio nacional. Os ativos suculentos incluem a Electricité du Liban (EDL), concessionárias de água, aeroportos, a companhia aérea MEA, a empresa de telecomunicações OGERO, o Casino du Liban. A EDL, por exemplo, é responsável por 30% do déficit orçamentário de Beirute.
Isso não chega nem perto da sanha do FMI e dos megabancos ocidentais. Eles querem devorar tudo, além de muitos imóveis.
“O valor econômico dos imóveis públicos pode valer pelo menos tanto quanto o PIB e, muitas vezes, várias vezes o valor da parte operacional de qualquer portfólio”, dizem Detter e Saidi.
Quem está sentindo as ondas de choque?
Mais uma vez, Israel é o proverbial elefante em uma sala de cristais agora amplamente retratada pela mídia empresarial ocidental como “Chernobyl libanês”. Um cenário como a catástrofe de Beirute já estava vinculado aos planos israelenses desde fevereiro de 2016.
Israel admitiu que o Hangar 12 não era uma unidade de armazenamento de armas do Hezbollah. Ainda assim, crucialmente, no mesmo dia da explosão em Beirute, e após uma série de explosões suspeitas no Irã e a alta tensão na fronteira Síria-Israel, o primeiro-ministro Netanyahu tuitou, no presente do indicativo: “Nós atingimos uma célula, e agora nós acertamos os remetentes. Faremos o que for necessário para nos defender. Eu sugiro a todos eles, incluindo o Hezbollah, que considerem isso”.
Isso está em concordância com a intenção, proclamada abertamente no final da semana passada, de bombardear a infraestrutura libanesa caso o Hezbollah perturbasse os militares das Forças de Defesa de Israel ou os civis israelenses.
Uma manchete do jornal israelense Haaretz ― “Ondas de choque da explosão de Beirute serão sentidas pelo Hezbollah por muito tempo” ― confirma que a única coisa que importa para Tel Aviv é lucrar com a tragédia para demonizar o Hezbollah e, por associação, o Irã. E isso também está de acordo com o “Ato Militar do Congresso dos EUA de Combate contra o Hezbollah no Líbano”, de 2019 {S.1886}, que praticamente ordena que Beirute expulse o Hezbollah do país.
Não obstante, após a explosão, Israel quis mostrar-se estranhamente prostrado.
Turvando mais ainda essas águas, a inteligência saudita ― que tem acesso ao Mossad e demoniza o Hezbollah muito mais do que Israel ― cruza o caminho. Todos os operadores de inteligência com os quais conversei se recusam a deixar registro, considerando a extrema sensibilidade do tema. Ainda assim, uma fonte de inteligência saudita, cujo cacife se assenta na troca frequente de informações com o Mossad, afirma que o alvo original eram os mísseis do Hezbollah armazenados no porto de Beirute. Sua história é que o primeiro-ministro Netanyahu estava prestes a receber o crédito pelo sucesso, dando sequência a seu tweet. Mas então o Mossad percebeu que a operação tinha dado muito errado, e se transformado em uma grande catástrofe.
O problema começa com o fato de que não se tratava de um depósito de armas do Hezbollah ― como até mesmo Israel admitiu. Quando depósitos de armas explodem, ocorre uma explosão primária, seguida por várias explosões menores, algo que pode durar dias. Não foi isso que aconteceu em Beirute. A explosão inicial foi seguida por uma segunda explosão massiva ― com toda certeza uma grande explosão química ― e então, silêncio.
Thierry Meyssan, que é muito próximo da inteligência síria, adianta a possibilidade de que o “ataque” tenha sido realizado com uma arma desconhecida, um míssil ― e não uma bomba nuclear ― testada na Síria em janeiro de 2020. (O teste é mostrado neste vídeo). Nem a Síria nem o Irã jamais fizeram referência a essa arma desconhecida, e não tive confirmação de sua existência.
Supondo que o porto de Beirute foi atingido por uma “arma desconhecida”, o presidente Trump pode ter dito a verdade: foi um “ataque”. E isso explicaria por que Netanyahu, contemplando a devastação em Beirute, acabou decidindo que Israel deveria manter a discrição.
Vejam aquele camelo em movimento!
À primeira vista, a explosão de Beirute pode ser vista como um golpe mortal contra a Iniciativa Cinturão e Estrada (ou Nova Rota da Seda), já que a China considera a conectividade entre o Irã, Iraque, Síria e Líbano como a pedra angular do corredor do Cinturão do Sudoeste Asiático.
Só que isso pode sair pela culatra, e mal. A China e o Irã já estão se posicionando como os investidores preferenciais após a explosão ― em nítido contraste com os atiradores do FMI ―, tal como aconselhara o secretário-geral do Hezbollah, Nassan Nasrallah, tão apenas poucas semanas atrás.
Síria e Irã já estão na linha de frente no fornecimento de ajuda ao Líbano. Teerã está enviando um hospital de emergência, remessas de alimentos, remédios e equipamentos médicos. A Síria abriu suas fronteiras com o Líbano, enviou equipes médicas e está recebendo pacientes dos hospitais de Beirute.
É sempre importante ter em mente que o “ataque” (Trump dixit) ao porto de Beirute destruiu o principal silo de grãos do Líbano, além de desencadear a destruição total do porto, o principal acesso comercial do país.
Uma iniciativa dessas se ajustaria a uma estratégia de matar o Líbano de fome. No mesmo dia que o Líbano tornou-se, em larga medida, alimentarmente dependente da Síria ― já que agora resta apenas um mês de suprimento de trigo ao país ―, os EUA atacaram os silos sírios.
A Síria é um grande exportador de trigo orgânico. E é por isso que os EUA rotineiramente miram seus silos e queimam suas plantações, tentando matar também a Síria de fome, e forçar Damasco, já sob severas sanções, a gastar fundos crucialmente necessários na compra de alimentos.
Em completo contraste com os interesses do eixo EUA/França/Arábia Saudita, o Plano A para o Líbano seria abandonar progressivamente o estrangulamento EUA-França e ir direto para a Nova Rota da Seda, tanto quanto para a Organização de Cooperação de Xangai. Ir para o leste, o caminho da Eurásia. O porto e mesmo boa parte da cidade devastada, a médio prazo, podem ser reconstruídos um tanto rápida e profissionalmente com investimentos chineses. Os chineses são especialistas em construção e gestão de portos.
Um cenário deliberadamente otimista como esse implicaria em um expurgo dos hiper-ricos, a plutocracia que aparelha o Estado para gerir a corrupção, o tráfico de armas, de drogas e a especulação imobiliária, e que habitualmente foge para seus apartamentos em Paris ao primeiro sinal de turbulência.
Junte a isso o sistema de bem-estar social muito bem-sucedido do Hezbollah ― que eu mesmo vi em funcionamento no ano passado ― ganhando uma chance de conquistar a confiança das classes médias empobrecidas e tornar-se, assim, o pivô da reconstrução.
Vai ser uma batalha de Sísifo. Mas compare esta situação com o Império do Caos, que precisa do caos em todos os lugares, especialmente na Eurásia, para paliar a chegada do caos Mad Max dentro dos próprios Estados Unidos.
O caso notório do General Wesley Clark, dos sete países em cinco anos, mais uma vez vêm à mente. E o Líbano continua sendo um desses sete países. A lira libanesa pode ter entrado em colapso; a maioria dos libaneses pode estar completamente falida; e agora Beirute está semidevastada. Essa pode ser a palha que quebra as costas do camelo [N. do T.: expressão anglófona que corresponde à ideia da gota d’água que extravasa o copo] ― deixando-o livre para, por fim, retraçar seus passos, de volta à Ásia e ao longo das Novas Rotas da Seda.