A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), sancionada em 7 de agosto de 2006, tornou mais rigorosa a punição para agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico e familiar. O nome da lei foi uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia, agredida pelo marido várias vezes durante 23 anos. Ela ficou paraplégica, depois de ser atingida por um tiro disparado pelo marido.
A lei foi considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Ao completar 14 anos, mais que comemorar, é importante que se chame as pessoas, as empresas, as instituições para refletir o quanto ainda é preciso fazer para que a violência contra a mulher deixe de fazer parte das nossas vidas de forma tão intensa.
E quando digo “de nossas vidas” é porque acredito que a violência contra a mulher não é uma ação isolada de um homem machista que agride sua companheira. A violência contra a mulher é fruto de uma organização social e cultural que, historicamente, privilegia o masculino. E isso não tem a ver comigo ou com você, seja homem ou mulher, individualmente.
O entendimento da violência contra a mulher tem sido bastante ampliado e o entendimento comum se apoia no conceito de ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja ela física, psíquica, sexual ou moral. A Lei Maria da Penha inclui, ainda, a violência patrimonial. De todos esses tipos, a violência psíquica e a moral são mais difíceis de serem mensuradas, identificadas, admitidas e combatidas.
A violência contra a mulher não ocorre aleatoriamente e sim de forma relacional. Isso significa que ela se constrói com e a partir de relações de poder que promovem e perpetuam modos de ser e viver masculinidades e feminilidades. Há, em atitudes agressivas dirigidas ao sexo feminino, representações de uma masculinidade que se posiciona um degrau acima e que se permite não apenas olhar para o corpo feminino, como tocá-lo, violá-lo, assediá-lo, dispensá-lo e impor regras e leis sobre ele.
Lembro-me de quando era adolescente e, junto com as amigas ao voltar da escola, ouvir gracejos de trabalhadores de obras nas imediações. Lembro-me, também, que muitas de nós já passaram pelo constrangimento de ter seu corpo tocado contra a sua vontade ou de ter que mudar de calçada para evitar ser agarrada por um menino ou homem adulto ao cruzar com eles pela rua.
Não me dava conta naquela época – e acredito que minhas colegas tampouco – de que aqueles assovios, as piadas grosseiras e as palavras “chulas” que nos eram dirigidas se constituíam em atos de violência. Havia um incômodo, um desconforto de nossa parte, mas não tínhamos consciência de que sofríamos um tipo de violência, e que nos era endereçada pelo simples fato de sermos do sexo feminino, de sermos mulheres.
Aquelas atitudes eram configuradas, usualmente, como próprias e “naturais” ao sexo masculino. Aliás, cabe ressaltar que esse assunto, tampouco, era comentado ou discutido abertamente, em casa ou na escola. A violência dirigida à mulher sobre a qual tínhamos conhecimento, naquela época, era aquela extrema, em que as marcas ficavam no corpo e cuja gravidade podia ser mensurada pela quantidade de lesões.
Eram casos de violência doméstica, em que o marido (ou namorado/companheiro) espancava ou matava a mulher. Havia, também, os casos de estupro, estes, muito mais temidos do que a própria violência doméstica, por representar uma grande vergonha” para a vítima e se constituir em uma desonra para a família. Nessa época, a violência de gênero encontrava-se diluída na violência do dia a dia e não haviam sido incorporadas ao nosso repertório, palavras como misoginia ou “feminicídio”.
Também não se falava em assédio no trabalho, em insultos, em opressões psicológicas, em controle, em ações violentas que não pudessem ser mensuradas ou comprovadas por exames no corpo da mulher. Em uma época na qual as informações nos chegavam por meio dos veículos de comunicação de massa – a televisão, muito especialmente – discussões sobre questões de gênero simplesmente não nos eram endereçadas.
Muitos anos se passaram desde a minha adolescência, mas muitos dos comportamentos e das percepções sobre a violência contra a mulher se mantêm inalterados, apesar de haver todo um movimento de ampliação desse entendimento. E esse movimento de ampliação tem uma relação muito estreita com a possibilidade de haver espaços que permitam “falar” sobre o assunto abertamente e para um público bastante ampliado e heterogêneo.
As redes sociais digitais potencializam a capacidade de construir redes de indignação, de esperança e solidariedade, além de possibilitarem que casos de violência, antes ignorados ou sequer compreendidos como tal – como o assédio que relato ter sofrido na adolescência, por exemplo – sejam problematizados, politizados e transformados em eventos midiáticos.
A violência contra a mulher deixou de ser um assunto do campo conjugal para se tornar uma questão legal e de política pública. Atualmente, a máxima deve é: em briga de marido e mulher, deve-se meter a colher, sim.