Leonel entrou correndo no apartamento, muito antes que a Protetora pudesse entrar. Ela conversava
com ele, e ele foi direto para o pote de água para refrescar-se. Ele estava ofegante, cansado, porém
muito satisfeito. Valéria assistia à cena, perplexa, o que não era nenhuma novidade: muitas coisas
que Leonel fazia deixavam-na perplexa.
Demorou algum tempo até que ele se acalmasse, e, quando a Protetora saiu de casa para fazer
alguma coisa qualquer, ele finalmente deitou-se.
— Eu não entendo — Valéria disse —, como você pode ficar assim, tão contente, só por andar na
rua.
— Eu é que não entendo por que você não entende — ele respondeu. — Andar na rua é a coisa mais
legal do mundo!
Valéria estava acostumada aos exageros dele. Afinal, tudo para ele era “a coisa mais legal do
mundo”: mastigar um osso era “a coisa mais legal do mundo”; brincar de cabo de guerra com a
Protetora usando seu bonequinho de borracha favorito era “a coisa mais legal do mundo”; comer
biscoitos era “a coisa mais legal do mundo”; decidir qual era a coisa mais legal do mundo era “a
coisa mais legal do mundo”.
— Eu não vejo a graça — ela respondeu. — Se for pra caminhar, eu caminho aqui mesmo.
— Mas não é só caminhar — ele protestou. — Na rua eu posso correr, cheirar as plantas e as
árvores, observar as pessoas, brincar com outros cachorros, e me aliviar nas árvores e nos postes!
— Aliviar? — ela disse a si mesma, ponderando, quando de repente parou, de sobressalto. — Não
fale nada! Eu já entendi. Não precisa explicar.
— Você também se divertiria andando na rua.
— Eu? Vira essa boca fedorenta pra lá! — Valéria respondeu. — Eu fico melhor em casa.
— Mas você fica sempre em casa — Leonel disse, sem compreender.
— É, e eu fico porque é melhor assim.
— Mas você nunca saiu na rua pra saber — ele disse.
— Como não? — ela disse. — É claro que eu já saí na rua.
Leonel ficou paralisado por um instante. — … já?
— Mas é lógico — Valéria respondeu. — Você acha que eu nasci aqui?
Ele se ajeitou em seu lugar, dando umas coçadas na orelha. — Eu achava que sim.
— Engano seu. Eu fui trazida pra cá — ela explicou. — E foi a coisa mais apavorante da minha
vida.
— Por quê?
— Por quê? Eu vou te explicar — Valéria disse, descendo do encosto do sofá para ficar diante dele,
solene, com dignidade. — Eu nasci em um outro lugar, que eu não sei onde era. Eu tinha quatro
irmãozinhos, e a gente ficava quase o tempo inteiro com a nossa mãe, em um lugar fechado,
pequeno, com uma grade de um lado, e do outro uma parede transparente, que nem aquela ali — ela
disse, apontando para a janela com o focinho. — Através daquela parede a gente podia ver a rua,
com as pessoas passando e um monte de coisas. Quando eu era pequenininha, eu não entendia
direito o que acontecia. Algumas pessoas paravam e ficavam olhando pra gente, fazendo caretas
estranhas, como verdadeiros bocós.
— Por quê? — Leonel perguntou.
— E eu vou saber? — ela retrucou. — Acho que é por que as pessoas são bocós. Ou eles só agem
que nem bocós às vezes, mas eu não posso saber. O que eu sei é, o mundo lá fora parecia
assustador, barulhento. Mas eu não tinha medo, porque eu estava junto da minha mãezinha, e eu
sabia que ela ia me proteger… ou eu achava que sim.
— Por quê?
— Por que um dia ela foi embora. Não que ela tenha simplesmente ido, mas alguém tirou ela da
gente. E a gente ficou sozinho.
Valéria ficou com um olhar distante, uma voz frágil… mas, quando percebeu que estava quase
perdendo a pose, recompôs-se e prosseguiu. — Mas eu ainda não tinha medo, porque não importa o
que acontecesse, nada lá de fora podia entrar, e a gente não podia sair. Enquanto eu estivesse com
meus irmãozinhos, estaria tudo bem. Só que isso não aconteceu.
— Por quê? — Leonel disse.
— Credo! É só isso que você sabe dizer? “Por quê?”, “Por quê?”, “Por quê?” Isso me dá dor de
cabeça!
— Por quê?
Valéria ergueu-se de repente, arquejando as costas. — Por que você fica repetindo sempre a mesma
coisa! — ela gritou, frustrada. — Eu quero contar a minha história, e você fica sempre se repetindo
que nem um papagaio!
— O que é um papagaio? — Leonel disse.
— Não te interessa — ela respondeu. — Eu estou ficando de saco cheio de falar.
— Ah, não! Continua contando o que aconteceu! — ele pediu, baixando a cabeça.
— Tá bom! — Valéria disse, retomando a pose. — Eu sei que, aos poucos, meus irmãos foram
sendo levados embora. E aí eu comecei a ficar com medo, porque achei que eu seria levada embora
também. Pois dito e feito. Passou um tempo, e me tiraram de lá.
— Por q—
Leonel arregalou os olhos e engoliu a fala. Valéria já estava pondo as garras de fora, mas ficou em
silêncio apreciando a expressão de susto no focinho dele.
— … quer dizer… e aí, o que aconteceu depois?
— Eu sei que me puseram dentro de uma caixinha, sozinha, e me levaram pra fora. Quando eu vi,
estavam me carregando pelo meio da rua! Eu berrava de pavor, de ver aquele monte de gente
passando, e aquelas coisas enormes que voavam em cima do chão fazendo um barulho terrível. Eu
tinha medo do que podia acontecer comigo, porque eu achava que ficaria ali, no meio da rua,
largada, sem ter pra onde ir.
Valéria armou sua pose dramática, com um sonoro suspiro. — Eu realmente não sabia se sairia viva
daquilo!
— E o que aconteceu?
— Eu só sei que, de repente, eu não estava mais na rua. Me levaram pra um lugar escuro,
silencioso, e então me trouxeram aqui. Abriram a caixinha, e eu saí, e vi a nossa Protetora. Ela
falava alguma coisa comigo, mas eu tinha medo. Eu achei melhor ficar escondida nos cantos. Mas
aí o tempo passou, e eu vi que ela era boa, e me deu água e comida, e aí ficou tudo bem.
— Que coisa alucinante!
— E é por isso que eu nem penso em voltar lá pra fora — ela disse.
— Puxa. Mas sabe de uma coisa? Comigo também aconteceu uma coisa parecida! — Leonel disse
então.
Valéria olhou para ele sem levar muito a sério. — É mesmo?
— É, quer dizer, eu não sei se é parecido — ele disse, contemplativo. — Eu não me lembro de
minha mãe, sabe? Eu lembro que vivia com outros cães, em um lugar diferente, um lugar aberto. Aí
me colocaram dentro de uma caixinha dessas, e me levaram pra rua. Eu também fiquei com medo
da rua, mas daí, me colocaram dentro de uma casa. E tinha pessoas lá também, mas, as pessoas
eram estranhas, sabe?
— Mas as pessoas são estranhas, mesmo — Valéria respondeu, casualmente.
— Não, não! Essas eram… mais estranhas! — ele disse, erguendo a cauda. — Parece até que… elas
não gostavam muito de mim, sabe? Eu não sei explicar. Elas brincavam comigo no início, mas
depois, mudou. Elas não me davam muita bola. Aí, me colocaram de novo em outra caixinha!
— Puxa. Duas vezes?
— Sim! Duas! — Leonel respondeu. — Com você foi uma só, e comigo foram duas! Legal, né?
Ela olhou para um lado. — Não sei se isso é legal. Eu acho assustador.
Leonel pensou por um momento, e deu uma fungada. — É, foi mesmo. Eu fiquei com medo da
primeira vez, e eu fiquei com medo da segunda vez. Mas daí, depois disso, me trouxeram pra cá. E
quando eu cheguei aqui, eu fiquei com medo de… bom, eu fiquei com medo de você, porque eu
achei que você não era boazinha. Mas… na verdade, você não é boazinha, mesmo!
— Êpa! — Valéria protestou. — Que é isso? Você fala como se eu fosse malvada!
— Claro que não — Leonel disse. — Mas você não me dá comida nem biscoito, você nem me faz
carinho, e muito menos me leva pra passear!
— Ah, sim, sim, a coisa mais legal do mundo — ela desdenhou. — Mas como você pode gostar de
andar na rua, se você mesmo ficou com medo?
Ele pensou um pouco. — Bom, você lembra que, quando você chegou aqui pela primeira vez, você
ficou com medo, mas depois perdeu o medo porque viu que a Protetora é boazinha?
Valéria, mesmo relutando, concordou. — Sim, é verdade.
— Pois é — Leonel prosseguiu. — Eu também tinha medo de andar na rua, mas eu confio na
Protetora. E agora eu posso me divertir sem medo! E eu perdi o medo de você, porque… tudo bem,
você não é boazinha, mas é… legal.
— Fico lisonjeada — Valéria disse, tentando ser irônica, mas sem sucesso. Ela ficou pensando,
lambendo a pata. — Eu ainda acho que você se arrisca demais por pouca coisa. Mas a verdade é
uma só: se você acha tão bom assim passear na rua, não sou eu que vou lhe convencer do contrário.
— Então tá bom! — Leonel disse, levantando-se de súbito, sacudindo o rabo. — Então eu vou
tomar água, porque essa história me deu sede!
— Pode ir — Valéria disse, voltando às suas ponderações. — Não vejo sentido em questionar os
seus pífios e mundanos prazeres, se você…
Ela parou de falar assim que avistou, com o canto dos olhos, o ratinho de borracha.
Leonel voltou para a sala, e viu Valéria pulando pelo chão, estapeando o ratinho de um lado para o
outro. — Não sei como ela pode achar isso tão divertido! — ele pensou para si mesmo.