Observadora aguda e mordaz, Vivian Gornick, a autora de 'Afetos Ferozes' relembra sua trajetória feminista, celebra o papel cada vez mais poderoso da mulher e alerta para perigos como o dogmatismo, o politicamente correto ou a “fúria” emocional. O Seguinte: reproduz a entrevista publicada pelo El País
Em uma manhã no fim de novembro, ágil e lúcida, Vivian Gornick (Nova York, 1935) recebe com um largo sorriso em seu apartamento no coração do West Village nova-iorquino e posa paciente para as fotos. Saboreia seu recente sucesso internacional e acaba de terminar um novo livro. Vive um bom momento: as memórias que publicou originalmente nos anos oitenta, Afetos Ferozes (Todavia, 2019), foram traduzidas para 13 línguas nos últimos quatro anos e foram aclamadas pela crítica e também, entre outros, por apaixonados leitores em português e espanhol, que finalmente a descobriram.
Depois da publicação da segunda parte de suas memórias, The Odd Woman and the City (A Mulher Singular e a Cidade, ainda sem edição no Brasil) uma antologia também foi traduzida recentemente na Espanha: Mirarse de Frente. Nos textos reunidos neste último livro ela lembra os verões que passou trabalhando nos Catskills e descobrindo as relações de poder que regem o mundo; explica o que o feminismo significa para ela; relembra a sufocante vida acadêmica nos campi universitários e reflete sobre a postura política implícita na decisão de viver sozinha.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, uma história oral que escreveu décadas atrás sobre os comunistas norte-americanos está prestes a ser reeditada, e tem um novo livro. Em Unfinished Business: Notes of a Chronic Re-reader (Negócios Inacabados: Notas de um Re-leitor Crônico, ainda sem edição do Brasil), Gornick retoma sua faceta de crítica literária certeira e faz um balanço das leituras que mais a marcaram e de como a passagem dos anos mudou sua atitude em relação a esses textos. A imprensa norte-americana apontou que “tem a clareza do observador imparcial, inclusive quando sente o zelo de um convertido”; suas opiniões nunca são mornas. Mordaz e surpreendentemente sincera aos 84 anos, essa autora, que nunca escondeu quanto lhe custa escrever, está em ótima fase.
Como repórter comprometida do lendário semanário The Village Voice, Gornick cobriu nos anos setenta o mesmo movimento de libertação feminista em que acabou militando, a chamada Segunda Onda. Diz que isso lhe deu a chave para ver e entender o mundo de uma maneira diferente, de um prisma radicalmente feminista, político e pessoal. Plasmou tudo isso em sua escrita de ensaios memorialísticos, gênero –no qual convergem a análise do mundo e a subjetividade do ponto de vista– pelo qual optou quando ainda era algo difuso e pouco explorado.
Aguda, engraçada e direta, Gornick tem imensos olhos azuis que poderiam deixar qualquer um perturbado, um sotaque nova-iorquino franco e claro e uma gargalhada fácil que enfatiza a audácia e a força, que mantém intactas. Fala sobre a “síndrome da resposta aproximada” para explicar que, em vista de sua natural veemência, muitas vezes encontrou adesões mornas às suas opiniões, algo que a exasperava, e reconhece que, embora na juventude a única coisa que lhe importava era ganhar uma discussão, hoje prefere não ter razão e não ferir ninguém.
Pergunta. A senhora tratou o feminismo como um movimento social e também na escala íntima e pessoal. Como vê as mudanças desde os anos setenta que descreve como eletrizantes?
Resposta. Aqueles anos foram um momento revolucionário, descobrimos que ser mulher implicava ser cidadão de segunda e que havia uma longa história de subjugação e opressão feminina. Para nós esse ponto de vista era algo original e novo, mas a verdade é que não estávamos inventando a roda. E, no entanto, acho que fomos visionárias porque usamos um marco amplo, existencial e filosófico em nossa análise. Ou seja, via que nossa condição de mulher era emblemática de algo que afetava o conjunto da condição humana.
P. Em Mirarse de Frente recorda um verão em que trabalhou como garçonete e da bronca que um cliente deu em seu chefe, e como compreendeu então que todos nós estamos presos a algum tipo de submissão.
R. Sem o feminismo eu não teria entendido isso. Aprofundar o que implicava a condição de mulher, reconhecer e descobrir isso, me permitiu entender as lutas de poder que governam a vida. Foi muito estimulante abrir os olhos e ter uma perspectiva ampla das coisas; de repente víamos exemplos em todos os lugares. Foi como uma conversão.
P. O que aconteceu depois?
R. Depois os tempos da revolução se apagaram, os anos sessenta terminaram e o momento político dos anos oitenta evaporou. Aceitamos que tudo o que tínhamos exposto havia ficado ali e deveria ser desenvolvido em nível individual, pessoa a pessoa. Não havia um movimento porque não se pode ser ativista durante 50 anos. Fizemos o que fizemos, progredimos o que progredimos e isso foi tudo, embora não tenha sido nem remotamente suficiente. Nas gerações seguintes foi interessante ver essas mulheres que entenderam a mensagem separadamente e viveram isso cada uma à sua maneira da melhor maneira possível. Isso aconteceu em todo o mundo, inclusive na Europa, onde o sentimento de injustiça não se enraizava.
P. Acredita que o feminismo na Europa demorou mais para se consolidar?
R. Nos últimos anos viajei bastante por causa da publicação de Afetos Ferozes e em todos os lugares vi jovens que me falavam de suas relações pessoais ou profissionais, como nós fazíamos 40 anos atrás. É verdade que muitas ocupam postos que as mulheres não alcançavam antes; hoje, no setor editorial, existem tantas mulheres brilhantes e profissionais que poderiam dirigir o mundo ou começar a Terceira Guerra Mundial, e isso me deixou orgulhosa, mas cada uma delas me disse que se sente subjugada pelos homens com quem vive ou trabalha. Tudo está muito vivo.
P. Também nos Estados Unidos houve um forte terremoto feminista.
R. Depois dos ares de mudança, houve uma reação contrária e uma desaceleração. Quando o MeToo chegou, fiquei surpresa com o pouco progresso feito em relação ao assédio sexual, algo que é crime há 50 anos. Não se tratava apenas de Harvey Weinstein, mas de todos aqueles homens comuns que de forma comum faziam essas mesmas coisas que já faziam em qualquer trabalho quando eu tinha 20 anos. Não havia um único escritório em que algum homem não estivesse te tocando ou te fazendo alguma proposta. Era constante, você ia ao escritório com um nó no estômago porque sabia que alguém te faria isso. Acontecia com todas nós, nós aceitávamos e não falávamos sobre isso.
P. Esse silêncio foi rompido.
R. Ao ouvir essas mulheres que trabalham em escritórios, fábricas e restaurantes ou em Hollywood, não pude acreditar. Estavam furiosas porque durante todo esse tempo não tinha havido mudanças suficientes na cultura, na maneira como homens e mulheres interagiam. Queriam colocar o mundo abaixo, queriam sangue, as cabeças desses caras, degolem-nos!
P. E o que pensa disso?
R. Estou surpresa, mas entendo isso historicamente. Quando as coisas não avançam o suficiente, a irritação cresce até se tornar algo assassino. É como se estivessem ao lado do cadafalso na Revolução Francesa, pedindo que cortassem as cabeças. [Risos] Simpatizo imensamente com isso e ao mesmo tempo me horroriza. Conheço homens que receberam punições muito mais severas do que mereciam e isso me dói. Também existe algo de política parapolicial, de hipervigilância, quando na realidade as mulheres são frequentemente cúmplices.
P. Parece que ninguém ousa falar sobre isso. Apontar excessos não é politicamente correto.
R. Bem, eu digo. Quando começamos nos anos oitenta, nos acusavam de ser dogmáticas e nos tornamos dogmáticas muito rapidamente. O politicamente correto aflorou, embora não fosse tão forte quanto hoje. Muitas que não eram feministas, mulheres normais e comuns, se sentiram intimidadas porque dizíamos que ser dona de casa era não ter vida.
P. A senhora escreveu que uma ideia passa a ser teoria, a teoria passa a ser uma postura, e a postura, dogma. Esse dogmatismo também existe hoje?
R. Quanto menos se avançava, mais a irritação acumulada crescia e mais politicamente correto tudo se tornava. Mas é preciso lutar contra essas coisas, cada uma tem que fazer essa batalha. A ensaísta Meghan Daum escreveu agora um livro sobre o controle dominador exercido pelo politicamente correto, e é um livro corajoso porque, como ela diz, está se arriscando. Eu nunca deixei de abrir a boca. Desde o início, há 40 anos, me levantava e dizia o que parecia errado para mim se sentisse que muitas de nós tínhamos tanta culpa quanto os homens a quem apontávamos e explicava que não estava no negócio de odiar os homens. Hoje muita gente não se atreve, mas eu continuo dizendo e escrevendo o que quero. O campo está minado, mas é preciso falar.
P. Acredita que a vitória de Trump, que se gabava de assediar mulheres, influenciou o MeToo?
R. Tudo o que o levou à Casa Branca foi cozido nos últimos 40 anos. Sua base, a direita religiosa nos odiava, gritavam contra o aborto e o casamento homossexual. Os Estados conservadores e o Tea Party já existiam antes. Eram a oposição e, quanto pior as coisas ficavam, mais aumentava o politicamente correto. Trump é o fim disso.
P. O fim?
R. O politicamente correto começou com os próprios movimentos de libertação com os quais me identifico, a luta dos negros, das mulheres e dos homossexuais. Abrimos a caixa de Pandora e todos os problemas saíram, mas essa irritação que brotou fortaleceu o politicamente correto. Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: libertação e repressão, porque as revoluções contêm isso, e tudo depende de quem ganha. Na União Soviética havia comunistas que acreditavam e eram honestos ao lado de assassinos e cínicos. Estes últimos se impuseram. Não sabemos o que acontecerá nos Estados Unidos.
P. Na conversa das mulheres dos últimos tempos houve alguns desencontros entre gerações. Existe algo que a surpreendeu no feminismo de hoje?
R. As jovens do movimento MeToo estão furiosas, respondem de maneira emocional, mas acredito que nós tínhamos uma visão mais política. Elas vivem em um mundo que eu não habito porque não estou na Internet, a cultura delas é tão diferente da minha que não posso criticá-las.
P. A senhora refletiu sobre a renúncia ao amor romântico. Esse sentimento aparece como a antítese da busca do caminho próprio. Isso ainda é assim?
R. Continua sendo assim para milhões de mulheres, mas também há muitíssimas delas que tem isso claro hoje em dia, elas sabem que o trabalho deve ser central; isto é, sabem o que os homens já sabiam. Quando eu crescia, não havia uma única mulher que não dissesse que a coisa mais importante na vida era o casamento e os filhos. Havia brilhantes exceções nos negócios, na política ou nas artes, mas, exceto elas, ninguém contradizia esse princípio.
P. Hoje parece que se deve ter sucesso em várias frentes, na familiar e na profissional.
R. Essa pressão pelo sucesso sempre existiu. É terrível, mas ninguém em nenhuma sociedade é alheio à ideia do sucesso.
P. A senhora descreve a vida como um constante recordar de coisas que já sabia.
R. Quantas vezes uma mulher diz a si mesma “não farei isso de novo” e depois se esquece e repete esse mesmo “nunca mais farei isso”? Não podemos evitá-lo porque as emoções te puxam em seis direções diferentes ao mesmo tempo, é o caos. É isso a que eu me refiro.
P. Em um de seus ensaios a senhora fala sobre uma amiga que desprezava os homens e ao mesmo tempo precisava da atenção e do reconhecimento deles. Uma batalha sem fim?
R. Até os 70 anos ela queria ter sucesso sexual a cada minuto. Precisava ter um amante o tempo todo para se sentir viva, algo que, por outro lado, acontece com milhões de homens. Veja todos os que vão para a cama com mulheres que realmente não lhes importam para se renovarem sexualmente e se sentirem vivos e bem-sucedidos.
P. A senhora descreve como presenciou “a morte do apego sentimental” entre os sexos em um jantar, quando essa mesma amiga deu um corte brutal em um homem. O que foi aquilo?
R. É algo que aconteceu nos primeiros anos do despertar feminista, como acontece agora com o MeToo, porque tenho certeza de que as mulheres estão dizendo coisas tremendas aos homens. Antes dos anos oitenta as mulheres não se atreviam e desculpavam o pior comportamento masculino dizendo que os egos deles eram tão frágeis que era preciso protegê-los. Isso era o apego sentimental. Minha amiga naquela noite decidiu que nunca mais levaria isso em consideração; estava disposta, se necessário, a derrubar com um chute a mesa em que jantávamos.
P. Esse apego, empatia ou terreno comum, foi reconstruído?
R. Isso melhorou com o tempo. No começo, tudo era confronto, as pessoas se odiavam por toda a vida. Hoje há mais compreensão mútua. Mas, por outro lado, existe a cultura do hookup, ou do caso de uma noite. Eles vão para a cama em dois segundos e depois ficam irritados, se sentem magoados. Um dos homens que conheço, que foi acusado pelo MeToo e perdeu o emprego, só era culpado de ser mulherengo. Nunca saiu com uma mulher que não quisesse sair com ele, nem foi para a cama com nenhuma que não quisesse fazer isso. Ia a uma festa e rapidamente conhecia alguém, ficavam bêbados, iam para a cama e no dia seguinte ou em algumas semanas rompia. Ele ocupava uma posição de poder e elas não, e acredito que todas pensavam que poderiam conseguir algo e, quando ele as deixava, ficavam furiosas. A cultura do hookup implica muita permissividade e muitos castigos.
P. As dinâmicas de poder nos casais podem ser bastante complexas, como o arquétipo do homem poderoso que sente que uma mulher exerce um forte controle sobre ele na intimidade.
R. É complexo porque muitas vezes não nos vemos como iguais. A prova disso é que falamos de “homem poderoso” e não de ser humano. Nós usamos uns aos outros. E é isso que queremos que mude. Se chegarmos a um ponto em que nos percebemos como semelhantes e quando vejo um homem, em primeiro lugar, o vejo como um ser humano equipado com as mesmas fraquezas que eu, os mesmos medos, as mesmas vulnerabilidades… bem, então talvez a primeira coisa que desapareça do mundo seja a excitação erótica. [Risos]
P. A senhora afirma que foi uma atitude política que a levou a combater o medo da solidão. Como a política se encaixa na decisão de estar sozinha?
R. Com o feminismo, uma das primeiras coisas que entendemos é que as pessoas resistem em casamentos infelizes porque têm medo de ficar sozinhas. O que propusemos foi que, se você ficasse em um casamento infeliz, estaria se rebaixando. Portanto, o respeito por si mesma era algo fundamental para enfrentar a infelicidade de estar sozinha. Isso é uma postura política.
P. A infelicidade não faz parte da vida, estando sozinha ou em casal?
R. Algo tem que pesar mais. Você toma decisões a cada minuto do dia e tudo tem um preço, então precisa pensar com o que pode viver e com o que não. Isso é tudo. Não é que você queira ficar sozinha, é que você não quer ter um relacionamento em que se sinta diminuída ou exilada. Casei-me com pressa duas vezes. Me diziam para aguentar, mas eu não pude porque era puro impulso.
P. A senhora escreve sobre uma amiga com quem passava horas conversando sobre o casamento dela.
R. No final, ela ficou com o marido.
P. Explicou que estar sozinha lhe permitiu pensar e fazer, e que o amor interrompia isso.
R. Quando você está sozinho, ocupa todo o espaço sem interrupção. Ficar sozinho é bom, mas sentir-se sozinho não tanto.
P. É quando se deve sair para passear?
R. Bem, as calçadas de Nova York estão cheias de teatro de rua e você pode ouvir todo tipo de coisa. Você caminha?