“Enquanto a Rússia e a China forem as potências dominantes na região, o Heartland continuará como alvo de ameaças, subornos e revoluções coloridas”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado no Asia Times e traduzido por Patricia Zimbres para o 247
Samarcanda, Uzbequistão – O Heartland histórico – ou Ásia Central – já é e continuará sendo o principal campo de batalha do Novo Grande Jogo travado entre os Estados Unidos e a parceria estratégica China-Rússia.
O Grande Jogo original, que opôs os impérios britânico e russo em fins do século XIX, na verdade jamais terminou: ele apenas se metastizou na entente Estados Unidos-Reino Unido contra a URSS e, subsequentemente, nos Estados Unidos-União Europeia contra a Rússia.
Segundo o jogo geopolítico projetado por Mackinder e conceituado pela Britânia Imperial em 1904, o Heartland é o proverbial “pivô da História”, e seu papel histórico reenergizado no século XXI é tão relevante quanto o foi nos séculos passados: um importante motor da multipolaridade emergente.
O Grande Jogo original, que opôs os impérios britânico e russo em fins do século XIX, na verdade jamais terminou: ele apenas se metastizou na entente Estados Unidos-Reino Unido contra a URSS e, subsequentemente, nos Estados Unidos-União Europeia contra a Rússia.
Segundo o jogo geopolítico projetado por Mackinder e conceituado pela Britânia Imperial em 1904, o Heartland é o proverbial “pivô da História”, e seu papel histórico reenergizado no século XXI é tão relevante quanto o foi nos séculos passados: um importante motor da multipolaridade emergente.
Não é de admirar, portanto, que todas as grandes potências estejam em ação no Heartland/Eurásia Central: China, Rússia, Estados Unidos, União Europeia, Índia, Irã, Turquia e, em menor grau, o Japão. Quatro dos cinco “istãos” da Ásia Central são membros plenos da Organização de Cooperação de Xangai (OCX): Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Tajiquistão. E alguns, como o Cazaquistão, podem em breve se tornar membros do BRICS+.
O principal choque geopolítico direto por influência nas terras do Heartland opõe os Estados Unidos à Rússia e China em uma miríade de frentes políticas, econômicas e financeiras.
O modus operandi imperial privilegia – o que mais seria? – ameaças e ultimatuns. Há apenas quatro meses, emissários estadunidenses do Departamento de Estado, do Departamento do Tesouro e do Escritório de Controle das Questões Externas (OFAC) visitaram vários países do Heartland trazendo todo um pacote de “presentes”, significando ameaças explícitas ou tenuamente disfarçadas. O cerne da mensagem era: se vocês “ajudarem”, ou até mesmo fizerem comércio com a Rússia da forma que for, vocês serão punidos com sanções secundárias.
Conversas informais com empresários de Samarcanda e Bucara, no Uzbequistão, revelam um padrão: todos parecem ter consciência de que os Estados Unidos partirão para um vale-tudo para manter o Heartland/Ásia Central sob ameaça armada.
Os reis das Antigas Rotas da Seda
Dificilmente haveria um lugar melhor em todo o Heartland que Samarcanda, a lendária Roma do Oriente, para observarmos o atual jogo de poder. Aqui estamos no coração da antiga Sogdiana – a histórica encruzilhada comercial entre China, Índia, Pártia e Pérsia, um nó Leste-Oeste de tendências culturais de imensa importância, amalgamando zoroastrismo e vetores pré e pós islâmicos.
Do século IV ao VIII, foram os sogdianos que monopolizaram o comércio de caravanas entre Leste Asiático, Ásia Central e Oeste Asiático, transportando algodão, ouro, prata, cobre, armas, aromas, peles, tapetes, roupas, cerâmica, vidro, porcelana, ornamentos, pedras semipreciosas, espelhos. Os ardilosos mercadores sogdianos usavam a proteção das dinastias nômades para solidificar o comércio entre a China e Bizâncio.
A meritocrática elite chinesa, que raciocina em termos de longuíssimos ciclos históricos, tem plena consciência de todo o citado acima: esse é um dos principais motores por trás do conceito das Novas Rotas da Seda, oficialmente conhecidas como ICR (Iniciativa Cinturão e Rota), tal como anunciado há cerca de dez anos pelo Presidente Xi Jinping em Astana, no Cazaquistão. Pequim planeja se reconectar com seus vizinhos ocidentais como caminho necessário para o aumento do comércio e da conectividade paneurasianos.
Pequim e Moscou têm focos complementares no que se trata das relações com o Heartland – sempre sob o princípio de cooperação estratégica. Ambas estão engajadas em segurança regional e cooperação estratégica com a Ásia Central desde 1998. Criada em 2001, a OCX é produto da estratégia comum China-Rússia, sendo também uma plataforma para um diálogo ininterrupto com o Heartland.
Os “istãos” centro-asiáticos reagem a isso de diferentes maneiras. O Tajiquistão, por exemplo, economicamente frágil e fortemente dependente do mercado russo como provedor de mão-de-obra barata, mantém oficialmente uma política de “portas abertas” a todos os tipos de cooperação, inclusive os provenientes do Ocidente.
O Cazaquistão e os Estados Unidos criaram um Conselho de Parceria Estratégica (sua última reunião foi em fins do ano passado). O Uzbequistão e os Estados Unidos mantêm um “diálogo de parceria estratégica”, estabelecido em fins de 2021. A presença empresarial estadunidense é altamente visível em Tashkent, com um imponente centro comercial, para não falar da Coca e da Pepsi, vendidas em lojinhas de esquina de qualquer vilarejo uzbeque.
A União Europeia tenta acompanhar o passo, em especial no Cazaquistão, onde mais de 30 por cento do comércio exterior (39 bilhões de dólares) e dos investimentos (12,5 bilhões de dólares) vêm da Europa. O presidente uzbeque, Shavkat Mirziyoyev – extremamente popular por ter aberto o país há cinco anos – descolou nove bilhões de dólares em acordos comerciais quando visitou a Alemanha há três meses.
Desde a criação da ICR chinesa há uma década, a União Europeia, comparativamente, investiu cerca de 120 bilhões de dólares no Heartland: nada mau (40 por cento do total dos investimentos externos), mas ainda abaixo dos compromissos chineses.
Qual é mesmo a da Turquia?
O foco imperial no Heartland, previsivelmente, é o Cazaquistão, em razão de seus vastos recursos de petróleo e gás. O comércio Estados Unidos-Cazaquistão representa 86 por cento de todo o comércio estadunidense com a Ásia Central, que totalizou a nada impressionante cifra de 3,8 bilhões de dólares no ano passado. Compare-se esse total a apenas sete por cento do comércio dos Estados Unidos com o Uzbequistão.
Vale argumentar que a maior parte desses quatro “istãos” centro-asiáticos na OCX praticam uma “diplomacia multifacetada”, na tentativa de não atrair uma indesejada ira imperial. O Cazaquistão, de sua parte, prefere a “diplomacia equilibrada”, que faz parte de seu Conceito de Política Externa 2014-2020.
Em um certo sentido, o novo lema de Astana expressa alguma continuidade com o anterior, de “diplomacia multivetorial”, concebido durante o reinado de quase três décadas do ex-presidente Nursultan Nazarbayev. O Cazaquistão, sob o presidente Kassym-Jomart Tokayev, é membro da OCX, da União Econômica Eurasiana (UEEA) e da ICR simultaneamente, mas ao mesmo tempo tem que ficar em alerta permanente contra as maquinações imperiais. Afinal, foi Moscou e a pronta intervenção do Organização do Tratado da Segurança Coletiva (OTSC), liderado pela Rússia, que salvaram Tokayev de uma tentativa de revolução colorida, em inícios de 2022.
Os chineses, de sua parte, investem em uma abordagem coletiva, solidificada, por exemplo, em reuniões de alto nível, tais como a Cúpula 5+1 China-Ásia Central, realizada há apenas três meses.
Há, também, o caso extremamente curioso da Organização dos Estados Túrquicos (OET), anteriormente Conselho Túrquico, que une Turquia, Azerbaijão e três “istãos” da Ásia Central, Cazaquistão, Uzbequistão e Quirguistão.
O objetivo geral do OET é “promover uma cooperação ampla entre os estados de língua túrquica”. Na prática, os resultados não são muito visíveis no Heartland, fora os outdoors esparsos promovendo produtos turcos. Uma visita ao secretariado em Istambul, na primavera de 2022, não resultou exatamente em respostas sólidas, além de vagas referências a “projetos nas áreas de economia, cultura, educação, transporte” e, o que é mais importante, questões alfandegárias.
Em novembro último, em Samarcanda, a OET assinou um acordo “sobre a criação de um corredor alfandegário simplificado” . É cedo demais para saber se isso seria capaz de fomentar uma espécie de mini Rotas da Seda turca cruzando o Heartland.
Mesmo assim, é útil ficar de olho no que eles farão a seguir. A Carta da OET privilegia “o desenvolvimento de posições comuns em questões de política externa”, “a coordenação de ações de combate ao terrorismo internacional, ao separatismo, ao extremismo e aos crimes transfronteiras”, e a criação de “condições favoráveis para o comércio e os investimentos”.
Acontece que o Turcomenistão – o idiossincrático “istão” centro-asiático, que insiste veementemente em sua absoluta neutralidade geopolítica – é membro observador da OET. Também chama a atenção um Centro de Civilizações Nômades sediado em Bishkek, a capital quirguiz.
Matando a charada Rússia-Heartland
As sanções ocidentais contra a Rússia acabaram por beneficiar um bom número de atores do Heartland. Como as economias da Ásia Central estão estreitamente ligadas à Rússia, as exportações tiveram um aumento vertiginoso – tanto quanto, aliás, as importações da Europa.
Um bom número de empresas europeias se reinstalou no Heartland após deixar a Rússia – com o processo correspondente de compra de ativos russos por alguns magnatas centro-asiáticos. Paralelamente, devido à mobilização de tropas russas, seria possível afirmar que dezenas de milhares de russos relativamente ricos se mudaram para o Heartland, enquanto um outro tanto de trabalhadores centro-asiáticos conseguiram novos empregos, principalmente em Moscou e São Petersburgo.
No ano passado, por exemplo, remessas para o Uzbequistão dispararam, atingindo polpudos 16,9 bilhões de dólares: 85 por cento dessa quantia (cerca de 14,5 bilhões) vindas de trabalhadores morando na Rússia. Segundo o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, as economias de todo o Heartland irão apresentar um saudável crescimento de 5,2 por cento em 2023, e de 5,4 em 2024.
Esse impulso econômico é claramente visível em Samarcanda: a cidade é hoje um gigantesco canteiro de obras – e de reconstrução. Impecavelmente novas, amplas avenidas vêm surgindo por toda a parte, muitas com paisagismo luxuriante, canteiros de flores, fontes e calçadas largas, tudo brilhando de tão novo. Não se veem vadios, moradores de rua nem usuários de drogas. Visitantes vindos das decadentes metrópoles ocidentais ficam totalmente estarrecidos.
Em Tashkent, o governo uzbeque está construindo um imenso e deslumbrante Centro da Civilização Islâmica, fortemente focado em negócios paneurasianos.
Não há a menor dúvida de que o principal vetor geopolítico em todo o Heartland é a relação com a Rússia. O russo continua sendo a língua franca em todas as esferas da vida.
Comecemos com o Cazaquistão, que compartilha uma enorme fronteira de 7.500 quilômetros com a Rússia (embora não haja disputas de fronteira). Nos tempos da URSS, os cinco “istãos” da Ásia Central eram, de fato, denominados Ásia Central e Cazaquistão”, porque uma vasta parte do Cazaquistão fica ao sul da Sibéria Oriental e próximo à Europa. O Cazaquistão vê a si mesmo como quintessencialmente eurasiano – e não é de admirar que desde os anos Nazarbayev Astana venha privilegiando a integração eurasiana.
No ano passado, no Fórum Econômico de São Petersburgo, Tokayev, em pessoa, disse ao Presidente russo Vladimir Putin que Astana não reconheceria a independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. Diplomatas cazaques sempre ressaltam que eles não podem se dar ao luxo de usar o país como um portal para contornar as sanções ocidentais – embora, nas sombras, é isso que aconteça em muitos casos.
O Quirguistão, de sua parte, cancelou os exercícios militares “Forte Irmandade-2022” da OTSC programados para outubro do ano passado – vale mencionar que o problema, nesse caso, não foi a Rússia e sim uma questão de fronteira com o Tajiquistão.
Putin propôs a criação de uma união de gás Rússia-Cazaquistão-Uzbequistão. No pé em que as coisas andam, nada aconteceu e talvez não venha a acontecer.
Tudo isso deve ser visto como contratempos de menor importância. No ano passado, Putin visitou todos os cinco “istãos” da Ásia Central pela primeira vez em um bom tempo. Espelhando a China, eles realizaram uma cúpula 5+1 também pela primeira vez. Diplomatas e empresários russos ocupam-se em tempo integral das rotas que cruzam o Heartland. E não esqueçamos que os presidentes dos cinco “istãos” estiveram presentes em pessoa na parada da Praça Vermelha realizada em Moscou no Dia da Vitória, em maio.
A diplomacia russa sabe tudo o que há para saber sobre a grande obsessão imperial de retirar os “istãos” da Ásia Central da influência russa.
Isso vai muito além da Estratégia dos Estados Unidos para a Ásia Central 2019-2025 – e atingiu o status de histeria após a humilhação sofrida pelos Estados Unidos no Afeganistão e a iminente humilhação da OTAN na Ucrânia.
Quanto à crucial frente energética, poucos são o que hoje se lembram que o gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI), posteriormente reduzido a TAP (a Índia se retirou), era uma prioridade da Nova Rota da Seda Americana (itálicos meus), urdida no Departamento de Estado e vendida pela então Secretária de Estado Hillary Clinton, em 2011.
Nada de prático ocorreu com aquele conto da carochinha. O que os americanos conseguiram, recentemente, foi acabar com o desenvolvimento de um concorrente, o gasoduto Irã-Paquistão (IP), forçando Islamabad a cancelá-la, na esteira de todo um escândalo de lawfare destinado a eliminar o primeiro-ministro Imran Khan da vida política paquistanesa.
Mesmo assim, a saga dos gasodutos TAPI-IP está longe de ter terminado. Com o Afeganistão liberto da ocupação americana, a Gazprom russa e empresas chinesas estão muito interessadas em participar da construção da TAPI: o gasoduto seria um nó estratégico da ICR, ligado ao Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), nos grandes cruzamentos entre a Ásia Central e do Sul.
O Coletivo Ocidental ‘estrangeiro’
Tanto quanto a Rússia é – e continuará a ser – uma moeda conhecida por todo o Heartland, o modelo chinês é insuperável como exemplo de desenvolvimento sustentável capaz de inspirar uma série de soluções nativas da Ásia Central.
O que o Império teria a oferecer, comparativamente? Resumindo: Dividir para Dominar, por meio de seus minions terroristas localizados, tais como o ISIS-Khorasan, instrumentalizados para fomentar desestabilização política nos nós centro-asiáticos mais frágeis, do vale do Ferghana à fronteira afegã-tajique, por exemplo.
Os múltiplos desafios enfrentados pelo Heartland foram discutidos em detalhe em reuniões como a Conferência Centro-Asiática do Clube Valdai.
Rustam Khaydarov, especialista do Clube Valdai, pode ter cunhado a avaliação mais precisa das relações Ocidente-Heartland:
“O Coletivo Ocidental é estranho a nós tanto em termos culturais quanto de visão de mundo. Não há sequer um único fenômeno, acontecimento ou elemento da cultura moderna que possa servir de base a uma relação ou reaproximação entre os Estados Unidos e a União Europeia, por um lado, e a Ásia Central, por outro. Americanos e europeus não fazem a menor ideia sobre a cultura, a mentalidade e as tradições dos povos da Ásia Central, de modo que eles não poderiam nem seriam capazes de interagir conosco. A Ásia Central não vê a prosperidade econômica associada à democracia liberal do Ocidente, que é essencialmente um conceito estranho aos países da região”.
Considerando esse cenário, e no contexto de um Novo Grande Jogo que vem se tornando cada vez mais incandescente a cada dia que passa, não é de admirar que alguns círculos diplomáticos do Heartland estejam muito interessados em uma maior integração da Ásia Central aos BRICS+. Essa é uma questão que fatalmente será discutida na cúpula dos BRICS a ter lugar na África do Sul, na próxima semana.
A fórmula estratégica seria Rússia + Ásia Central + Sul da Ásia + África + América Latina – mais um exemplo de integração do “Globo Global” (para citar Lukashenko). Tudo pode começar com o Cazaquistão sendo o primeiro país do Heartland a ser aceito como membro do BRICS+.
Afinal de contas, o mundo é um palco para a volta de um Heartland reenergizado em termos de transportes, logística, energia, comércio, manufaturas, investimentos, tecnologia da informação, cultura e – por último mas não menos importante, no espírito das Rotas da Seda, antigas e novas – “trocas de pessoas a pessoas”.