Acho que já tinha esquecido de alguns sons. Não lembrava do barulho do saco plástico quando tiro o pão, do barulhinho das teclas do teclado do computador, até do ruído que meus passos fazem no chão. Eu já sabia que tinha perda auditiva de leve a moderada, com indicação de uso de aparelho, mas ainda achava que dava para “ir levando”.
Não que eu esquecesse do problema, o zumbido quase constante não deixava. E também as dificuldades crescentes de comunicação. “Hã?” “O quê?”, seguidos de pedidos para que o interlocutor repetisse a frase estavam cada vez mais frequentes. Se a pessoa falasse rápido, eu não entendia metade (sendo otimista).
Assistir a um filme ou a uma série já não era mais um momento de descanso (na verdade nunca é, pois como pretensa roteirista, tudo é estudo), porque precisava cada vez mais do apoio das legendas para não perder a maioria dos diálogos. E se não usasse legenda, às vezes tinha que voltar a cena duas ou três vezes para compreender o que o personagem falou, e nem sempre conseguia, eu ia em frente na história sem entender mesmo.
Já havia feito um breve teste com aparelho no ano passado, mas o valor era alto para minhas possibilidades, e os problemas dentários (minha velha saga) eram mais urgentes. E meus dentes capengas foram o foco até março, onde finalmente voltei a mastigar como uma pessoa “quase normal” (contém ironia). Não que a saga tenha terminado, ainda tem coisa para consertar nessa boca remendada, mas a situação melhorou muito e os próximos passos podem ser dados com muito mais calma. Até porque, ao contrário do que meu sobrinho caçula acha, não tenho uma fábrica de dinheiro…
Então, com a situação dentária praticamente resolvida, as dificuldades de audição começaram a “gritar”, Já estava batendo um desânimo frequente porque qualquer atividade envolvia fazer esforço para compreender o que as pessoas falavam, e muitas vezes em vão. Até nos saraus que eu tanto amo, parte das poesias me soavam incompreensíveis, um emaranhado de sons. E aí eu ficava cada vez mais dispersa, fugindo para o celular. Não sei se chego a “cronicamente online”, mas fico bastante nas redes sociais. Nem percebi que estava usando como válvula de escape. Uma forma de me distrair e esquecer que não estava conseguindo acompanhar certos momentos à minha volta.
Talvez o “empurrão” que faltava tenha sido não conseguir nem entender a voz da professora de yoga na etapa de relaxamento que sempre encerra as aulas. Ela pensou que eu tinha dormido, mas simplesmente não tinha entendido quando avisou para sentar novamente. Só ouvia um murmúrio incompreensível. Naquele dia saí da aula com vontade de chorar. E comecei a ruminar que precisava encontrar um jeito de adquirir meus aparelhos.
Decidida a pesquisar preços e possibilidade, fui ao nosso amigo Google procurar alternativas aqui na cidade. Parece que, quando a gente toma uma decisão, as coisas confluem para onde tem que ir. No domingo pesquisei, na segunda marquei a avaliação, e na terça já saí com os aparelhos de teste. Com a sensação de que o mundo ficou mais claro e leve. Mais vivo. Ainda estou maravilhada com as vozes mais nítidas. E foi tão bom quando me dei conta que tinha atravessado um dia inteiro sem pedir nenhuma vez para que alguma fala fosse repetida mais devagar.
Não foi só a audição que mudou. Estou mais feliz e disposta, cheia de vontade de fazer mil coisas. Sinto como se antes estivesse dentro de uma bolha onde os sons chegavam com dificuldade, e agora estou realmente integrada ao mundo. Na primeira aula de yoga com aparelhos auditivos, parecia que era a primeira vez que eu aproveitava a atividade como deve ser. Nem tinha me dado conta, mas eu ficava tão tensa por passar o tempo todo fazendo esforço para entender as orientações da professora, que isso não deixava meu corpo se entregar aos exercícios. E o relaxamento foi muito melhor. Saí da aula até emocionada.
Na verdade, eu aceitei que essa é a minha realidade daqui pra frente: eu uso aparelhos auditivos. E que bom que existe essa possibilidade! Meus aparelhinhos são um investimento considerável, mas qualidade de vida não tem preço. E cuidar de si é importante demais. Às vezes, no ritmo do dia a dia, esquecemos de nós mesmos, apenas vamos “tocando o barco”. Autocuidado é um ato de amor à pessoa que a gente mais deve amar. Os outros afetos são consequência.
Agora que estou ouvindo o mundo, parece que estou escutando melhor também as vozes internas. E elas me dizem que a vida pode ser boa. E que tem muita música e muita conversa com os amigos ainda para eu aproveitar pelos próximos anos. Viva la vida, sonora e barulhenta!