3º NEURÔNIO

A capital do mundo multipolar: um diário de Moscou

“Em Moscou não se sente crise. Nenhum efeito das sanções. Nenhum desemprego. Nenhum sem-teto morando nas ruas. Inflação mínima”. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado pelo The Saker e traduzido por Patricia Zimbres para o 247


Quão sagaz era o nosso velho Lenin, modernista consumado,  quando ele refletia: “Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que acontecem décadas”. O nômade global que ora vos fala desfrutou do privilégio de passar quatro estarrecedoras semanas em Moscou, bem no cerne de uma encruzilhada histórica – que culminou com o divisor de águas que foi a cúpula geopolítica entre Putin e Xi realizada no Kremlin.

Para citar Xi, “mudanças jamais vistas em 100 anos” têm um jeito de nos afetar a todos, e de muitas maneiras.

James Joyce, um outro ícone do modernismo, escreveu que passamos a vida encontrando pessoas medianas e/ou extraordinárias, repetidamente, mas que, ao final, estamos sempre nos encontrando com nós mesmos. Em Moscou, tive o privilégio de encontrar uma gama de pessoas extraordinárias, levado por amigos de confiança ou por coincidências auspiciosas: ao final, sua alma lhe diz que elas enriquecem a você e ao momento histórico maior de maneiras que nem de longe conseguimos entender. 

Essas são algumas dessas pessoas. O neto de  Boris Pasternak, um talentoso jovem que ensina Grego Antigo na Universidade Estatal de Moscou. Um historiador com conhecimento inigualável de história e cultura russa. A classe trabalhadora tajique se aglomerando em uma chaikhana, ou casa de chá, que reproduz a atmosfera de Dushanbe.

Chechenos e  tuvanos, extasiados, dando uma volta na Grande Linha Central. Uma adorável mensageira enviada por amigos extremamente cuidadosos com questões de segurança  para discutir tópicos de interesse comum. Músicos extremamente competentes tocando nos subterrâneos da estação de Mayakovskaya. Uma deslumbrante princesa siberiana, vibrando com ilimitada energia, levando aquele lema antes aplicado ao setor de energia  – o Power of Siberia – a um nível totalmente novo.

Um amigo querido me levou à liturgia dominical na igreja  Devyati Muchenikov Kizicheskikh, a favorita de Pedro o Grande: a quintessência da pureza da Ortodoxia Oriental. Após a celebração, os padres nos convidaram para almoçar em sua mesa comunal, mostrando não apenas sua sabedoria natural como também um senso de humor hilariante.  

Em um clássico apartamento russo abarrotado com dez mil livros e uma vista para o Ministério da Defesa  – com muitas piadas incluídas – o Padre Michael, encarregado das relações da Cristandade Ortodoxa com o Kremlin, cantou o hino imperial russo, depois de uma noite inesquecível de discussões religiosas e culturais.  

 Tive a honra de encontrar alguns dos que foram particularmente visados pela máquina imperial de mentiras. Maria Butina – vilificada com o proverbial estratagema do “espião que veio do frio”, – hoje deputada na Duma. Viktor Bout – que a cultura pop metastizou no “Senhor da Guerra”, que ganhou até um filme com  Nic Cage: fiquei sem palavras quando ele me contou que lia meus textos em uma prisão de segurança máxima nos Estados Unidos, gravados em pendrives enviados por seus amigos (ele não tinha acesso à Internet). A incansável e  ferreamente determinada Mira Terada – torturada em uma prisão dos Estados Unidos, e que hoje dirige uma fundação de proteção a crianças passando por dificuldades.

Desfrutei de um valiosíssimo tempo de qualidade, quando tive discussões preciosas com Alexander Dugin – o importantíssimo russo destes tempos pós-tudo, um homem da mais pura beleza interna, submetido ao mais inimaginável sofrimento após o assassinato terrorista de  Darya Dugina, e ainda capaz de profundidade e alcance ao traçar conexões entre todo o espectro da filosofia, da história e da história das civilizações, em um nível que praticamente não encontra rival no Ocidente.  


Na ofensiva contra a russofobia  


E houve também encontros diplomáticos, acadêmicos e de negócios. Do chefe das relações com investidores internacionais do Norilsk Nickel e dos executivos do  Rosneft, para não falar do próprio Sergey Glazyev, da UEEA, acompanhado de seu principal consultor econômico  Dmitry Mityaev, recebi um curso intensivo do A ao Z da economia russa  atual – incluindo os graves problemas a serem enfrentados.

No Clube Valdai, o que houve de mais importante foram as conversas de bastidores, muito mais que os painéis oficiais: é ali que iranianos, paquistaneses, turcos, sírios, curdos, palestinos e chineses falam o que realmente lhes passa pela mente e pelo coração.

O lançamento oficial do Movimento Internacional dos Russófilos foi um evento especial dessas quatro semanas. Uma mensagem especial escrita pelo Presidente Putin foi lida pelo Chanceler Lavrov, que então proferiu seu próprio discurso. Mais tarde, na Casa de Recepções do Ministério das Relações Exteriores, quatro de nós fomos recebidos por Lavrov em uma audiência privada. Projetos culturais futuros foram discutidos. Lavrov estava extremamente relaxado, exibindo seu inigualável senso de humor. 

Trata-se de um movimento tanto cultural quanto político, destinado a combater a russofobia e contar a história russa em todas as suas imensamente ricas facetas, em especial para o Sul Global.

Sou membro fundador e meu nome consta da carta do movimento. Em minhas quase quatro décadas de correspondente estrangeiro nunca fiz parte de qualquer movimento político-cultural em nenhum lugar do mundo. Nômades independentes são uma raça feroz. Mas isto é de uma extrema seriedade: a gente irremediavelmente medíocre que hoje se autodescreve como as “elites” do coletivo ocidental querem nada menos que o cancelamento da Rússia ao longo de todo o espectro. No pasarán.


Espiritualidade, compaixão, misericórdia


Décadas acontecerem em apenas quatro semanas implicam que é necessário um tempo precioso para colocar tudo em perspectiva.

Minha intuição inicial, no dia em que cheguei, após uma caminhada de sete horas sob uma neve branda, veio a se confirmar: aqui é a capital do mundo multipolar.  Percebi isso entre os oeste-asiáticos do Valdai, conversando com visitantes iranianos, turcos e chineses, e quando mais de 40 delegações africanas ocuparam todo o espaço em torno da Duma – no dia da chegada de Xi à cidade. Percebi isso em toda a recepção por parte do Sul Global ao que está sendo proposto por Xi e Putin para a maioria esmagadora do planeta.

Em Moscou não se sente crise. Nenhum efeito das sanções. Nenhum desemprego. Nenhum sem-teto morando nas ruas. Inflação mínima. A substituição de importações em todas as áreas, principalmente na agricultura, vem tendo um sucesso retumbante. Os supermercados têm de tudo – e mais ainda – comparados aos do Ocidente. Há uma abundância de restaurantes de primeira-classe. Você consegue comprar um Bentley ou um sobretudo de cachemira impossível de encontrar na Itália. Demos boas risadas conversando sobre isso com gerentes da loja de departamentos TSUM. Na livraria BiblioGlobus, um deles me disse: “Nós somos a Resistência”.  

Por sinal, tive a honra de dar uma palestra sobre a guerra na Ucrânia na livraria mais bacana da cidade, a Bunker, mediada por meu caro amigo, o imensamente bem-informado Dima Babich. Uma imensa responsabilidade. Principalmente porque Vladimir L. estava na plateia. Ele é ucraniano e passou oito anos, até 2022, contando para uma rádio russa como as coisas realmente eram, até conseguir sair – depois de ser detido com uma arma apontada para sua cabeça  – usando um passaporte interno ucraniano. Em seguida, fomos a uma cervejaria tcheca onde ele contou em detalhes sua extraordinária história.

Em Moscou, fantasmas tóxicos estão sempre espreitando ao fundo da cena. Mas não podemos sentir outra coisa que não pena dos dementes neocons straussianos e dos conservadores neoliberais, que mal se qualificam como os míseros órfãos de  Zbig “Grande Tabuleiro” Brzezinski. 

Em fins da década de 1990, Brzezinski pontificou que “a Ucrânia, um novo e importante espaço no tabuleiro de xadrez eurasiano, é um centro geopolítico, porque sua própria existência como estado independente ajuda a transformar a Rússia. Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiano”. 

Com ou sem uma Ucrânia desmilitarizada e desnazificada,  a Rússia já mudou essa narrativa. Não se trata de voltar a ser um império eurasiano. Trata-se de liderar um longo e complexo processo de integração eurasiana – já em curso – prestando, paralelamente, apoio a uma independência verdadeiramente soberana por todo o Sul Global.

Deixei Moscou – a Terceira Roma – seguindo para Constantinopla – a Segunda Roma – um dia antes de o Secretário do Conselho de Segurança Nikolai Patrushev dar uma devastadora entrevista à Rossiyskaya Gazeta, delineando, mais uma vez, os fatos essenciais inerentes à  guerra entre a OTAN e a Rússia. 

Esse foi o trecho que particularmente me impressionou:  “Nossa cultura centenária é baseada em espiritualidade, compaixão e misericórdia. A Rússia é uma defensora histórica da soberania e da condição de estado independente de todos os países que se voltaram a ela pedindo ajuda. Ela salvou os próprios Estados Unidos pelo menos duas vezes,  na Guerra da Independência e na Guerra Civil. Mas creio que, desta vez, é impraticável ajudar os Estados Unidos a manter sua integridade”.  

Em minha última noite, antes de baixar em um restaurante georgiano, fui guiado por uma companhia perfeita em um passeio, saindo da Pyatnitskaya e seguindo ao longo do Rio Moscou, belíssimos prédios rococó feericamente iluminados, o perfume da primavera  – finalmente – pairando no ar. Foi um desses momentos “Morangos Selvagens” saídos de uma obra-prima de Bergman que nos atingem no fundo da alma. Como dominar o Tao na prática. Ou o momento perfeito em uma meditação no alto dos Himalaias, dos Pamires ou do Hindu Kush.

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