3º Neurônio | opinião

A ’Dossiecracia’ num Brasil de reféns: o fator militar

Um fio da “sinergia” entre Forças Armadas e Judiciário.

Semana passada ficamos sabendo que o Ministério da Justiça elaborou um dossiê sobre professores e policiais do movimento antifascista. Tal relatório foi elaborado pelo Coronel Gilson Libório de Oliveira Mendes, chefe da Diretoria de Inteligência (Dint) da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do MJ. Voltarei a este ponto. Mas antes quero registrar algo que apareceu na matéria do Marcelo Godoy hoje.

Trata-se da trajetória deste Coronel:

“Libório era major quando foi trabalhar na Casa Militar em 1998, que tinha, então, as funções do Gabinete de Segurança Institucional. Como tenente-coronel, foi designado para o gabinete do comandante do Exército, onde ficam o Centro de Informações e o de Comunicação Social (no chamado “gabinetão”) e as assessorias de pessoal, jurídica, parlamentar e de finanças do comandante (no “gabinetinho”).

Autorizado pelo general Francisco Albuquerque, então comandante do Exército, a exercer, ainda na ativa, uma função civil no Ministério da Justiça, Libório foi trabalhar em 2004 no Departamento de Recuperação de Ativos e de Cooperação Internacional (DRCI), um dos mais importantes órgãos de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado. Permaneceu ali até 2007, quando rumou para a Controladoria Geral da União. O coronel só se tornaria conhecido fora dessa comunidade quando se tornou secretário-executivo do Ministério da Justiça, em 2018, na gestão de Torquato Jardim”.

Prestemos atenção nessa ligação entre oficiais que passaram pela S2 do Comandante (a área de Inteligência) e que foram designados para operar junto a órgãos civis de Justiça exatamente nessa matéria: lavagem de dinheiro e corrupção.

O que será exatamente que as Forças Armadas queriam com isso? Cabe a elas se envolver nesse tipo de órgão/operação? Essas são perguntas vitais para entendermos no longo prazo (desde 2003, pelo menos) como foi sendo montada a “sinergia” entre militares e judiciário, e como chegamos onde estamos.

E por que 2003? Pensei nessa “data-chave” porque foi então que o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos criou a ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro. Na apresentação que encontramos agora, encontramos sua definição:

“é a principal rede de articulação para o arranjo e discussões em conjunto com uma diversidade de órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das esferas federal e estadual e, em alguns casos, municipal, bem como do Ministério Público de diferentes esferas, e para a formulação de políticas públicas e soluções voltadas ao combate àqueles crimes. O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) [N.A.: justamente onde trabalhava o Coronel Libório], vinculado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública, atua como secretaria-executiva da Enccla, por intermédio da Coordenação-Geral de Articulação Institucional do DRCI”.

Foi então que começaram as ações de intercâmbio de juízes e procuradores com departamentos dos EUA. Tudo bastante direcionado, diga-se de passagem: quando finalmente algo de relevante surgiu no caso Banestado, Thomaz Bastos deu um golpe de contrapé e enterrou a operação, como mais do que tem mostrado o Duplo Expresso no último mês. Mas a ENCCLA continuou produzindo articulações ao longo dos anos.

Em 2012, a presidenta Dilma (“não vai sobrar pedra sobre pedra”) autorizou uma decisão absolutamente sem precedentes do Ministério da Defesa: uma considerável ampliação de sua participação na ENCCLA. Segundo essa matéria do Defesanet de então, “O Ministério da Defesa (MD) DECIDIU ampliar sua participação na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla). A partir de agora, representantes das três Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – integram o grupo de representantes de órgãos e instituições que compõem a Enccla. Até então, apenas dois membros do MD faziam parte desse colegiado (…). A ampliação do fórum foi iniciativa da Secretaria de Controle Interno da Defesa (Ciset), que julgou importante a participação dos responsáveis pelo controle interno das Forças Armadas nesse processo. A intenção é fazer com que esses representantes possam conhecer ferramentas que contribuam para o desempenho das missões institucionais, principalmente, nas ações voltadas para o “combate à corrupção”, uma das vertentes da Enccla”.

Vamos então mandar uma na lata para tentar responder às perguntas feitas alguns parágrafos acima: UMA ÚNICA COISA PODE JUSTIFICAR A PARTICIPAÇÃO DE SETORES MILITARES EM ÓRGÃOS CIVIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO, QUE É A COLETA DE INFORMAÇÕES VISANDO À MONTAGEM DE “CONTROLE POR DOSSIÊ”. Vale lembrar que dentro da caserna há órgãos próprios de fiscalização e ação jurídica, como os tribunais e procuradorias militares. A sua infiltração na ENCCLA não é para tratar de casos de corrupção na caserna.

O Coronel Libório é um desses fios que a ganância militar no governo Bolsonaro deixou desencapado. Sua trajetória é uma pequena amostra de como os setores da inteligência militar infiltraram agentes na Justiça para obter informações que são úteis para um futuro controle político. Notem que não houve necessidade de “casas” e “aparelhos” como os que haviam no regime militar; é a sinergia com a Justiça e seus satélites que resolve a questão. E cada vez que alguém do PT estampar orgulho por fomentar essa autonomia dos poderes, é bom se lembrar que junto com o que se vê vem um monte de coisas operando no escuro.

Mas é bom ver que como esse fio desencapou, é necessário que se façam as perguntas certas e se olhem para as coisas certas, vendo além da ameaça aos professores e policiais em questão (o que aliás é um fato grave e importante, mas é a reta final de uma vicinal em um sistema de comunicações e vias). Uma delas é a sombra que Moro deixou tanto na ENCCLA (junto com seu time de procuradores) quanto no Ministério da Justiça. Mais um trecho da matéria de Godoy, para fechar:

“Com Bolsonaro no poder, Libório foi parar na Advocacia-Geral da União (AGU). De lá voltou para a Justiça, acompanhando o chefe terrivelmente evangélico. Foi quando a Seopi mudou. E virou – segundo os críticos – uma “Abin paralela”. Na época de Moro, a secretaria não produzia relatórios sobre inimigos do presidente ou anexava fotos de professores a papeluchos policiais. Seu trabalho era “integrar operações policiais contra crime organizado, pedofilia, homicidas e crimes cibernéticos”. “Foi ela a responsável por coordenar a transferência dos líderes do PCC para presídios federais”, afirmou um integrante da equipe do ex-ministro”.

Tá dada a dica.

PS: Licio Monteiro, o lado de lá:

“Corrupção internacional vira prioridade A mudança na carreira de Leslie acompanhou uma mudança de foco do Departamento de Justiça e do FBI na última década. A partir de uma percepção de que a lavagem de dinheiro ajudava o financiamento do terrorismo, os agentes americanos passaram a se dedicar cada vez mais a casos de corrupção transnacional e lavagem de dinheiro usando a legislação FCPA, que tem jurisdição ampliada para o mundo todo. Hoje, a maioria dos casos de FCPA não tem nada a ver com terrorismo. A mudança trouxe dividendos para o DOJ e possibilitou uma renovada parceria com polícias e Ministérios Públicos de todo o continente americano. E se solidificou. Em 2017, pela primeira vez a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos — já sob o governo de Donald Trump — incluiu o “combate à corrupção estrangeira” como prioridade para a segurança interna dos cidadãos americanos. Antes dele, a estratégia definida por Barack Obama em 2015 já mencionava a corrupção internacional como ponto de atenção — mas ela não tinha uma lista de “ações prioritárias””.

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