Gaúchos descendentes de imigrantes europeus, principalmente dos colonos alemães e italianos, deveriam conhecer detalhes inquietantes da história dos seus ancestrais.
A intensificação da colonização europeia fazia parte da estratégia do Império de povoar regiões sem ocupação, ao redor do que é hoje Porto Alegre e, mais tarde, em direção ao norte do Estado.
Mas não é só isso. O governo estava certo de que os europeus livres, que se transformariam em agricultores autônomos, seriam um contraponto à escravidão da metade sul.
É quando os escravistas têm uma ideia. Os charqueadores do sul, já com problemas na gestão dos seus escassos escravos, na metade do séculos 19, enviaram uma sugestão ao governo da província.
Os colonos, que chegavam pelo porto de Rio Grande, poderiam ocupar o lugar dos escravos negros. Seriam seus escravos brancos.
“Os proprietários de escravos viam a colonização como a ruína da economia escravista”, escreveu Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, de 1962.
O governo rejeitou a ideia. A opção, como está em documentos do então presidente da província, Fernandes Leão, é pela colonização como forma de ocupar e modernizar o Estado e interromper o escravismo.
São os braços livres dos brancos que deflagram o que seria o capitalismo no Rio Grande do Sul, enquanto as charqueadas definham.
A opção é excludente. Em 1847, três anos antes da decretação do fim do tráfico negreiro, um relatório assinado pelo presidente da Província deixa claro:
”Na opinião geral, é considerada a colonização a necessidade mais palpitante do Império. Há uma vastidão das terras desertas, que não quereis sem dúvida povoar com negros e que não é possível povoar pelo lento e gradual crescimento da população”.
Quem não quer os negros é o governo. É preciso branquear o Estado. O branco vai mudar o modo de produção e o negro será excluído da distribuição de terras e de todo o processo de modernização.
Com outro detalhe importante: os colonos alemães chegaram a ser donos de escravos, em meados do século 19, quando leis municipais passaram a impedir que negros trabalhassem para os que ainda eram considerados estrangeiros europeus.
Repetiu-se o que aconteceu no século 18 com os colonos açorianos. Também há casos de escravismo de negros entre eles.
São os brancos europeus que, como destaca Fernando Henrique, passam a liderar o processo “regenerador e civilizador” do Rio Grande do Sul. “A colônia simbolizava a Canaã do trabalho livre”.
Os descendentes desses colonos, tanto alemães como italianos, apresentados como civilizadores precisam ser confrontados agora com a realidade da região da Serra.
Eles precisam entender sua história para refletir sobre o fato de que três vinícolas estão envolvidas na contratação de trabalho escravo, que chamam hoje de análogo à escravidão.
Não há como escapar desse confronto de memória e realidade atual, em meio ao debate sobre um caso devastador para a imagem da região e de seus moradores. É preciso enxergar o escravismo que rondou seus ancestrais.
A escravidão esteve presente como ameaça à vida dos colonos. Que não eram, como muitos pensam, a elite da Europa.
Os colonos eram os excluídos das transformações da revolução industrial. Não havia entre eles nada que pudesse indicar qualquer conceito de superioridade econômica e social.
Seus descendentes devem saber que os primeiros colonos eram considerados pelos ‘brasileiros’ subcidadãos e identificados por décadas como estrangeiros.
Eram discriminados até pela fala e considerados seres inferiores pelas elites locais que se consideravam nacionais.
É perturbador que, quase um século e meio depois do começo da colonização italiana, ainda prevaleça, em vastos contingentes das regiões colonizadas, a percepção de que os brancos descendentes dos europeus seriam superiores étnicos.
É a mesma percepção enganosa de descendentes de outras etnias, entre as quais os alemães, que chegaram bem antes, no começo do século, e os portugueses, os pioneiros, que viraram escravagistas.
Muitos tomados pelo sentimento de superioridade, quando essa era a imposição dos locais em relação aos seus antepassados, que lutaram muito para serem admitidos como brasileiros.
É constrangedor que três vinícolas com fama nacional, Aurora, Garibaldi e Salton, tenham submetido, através da terceirização de contratos, mais de 200 nordestinos a uma relação de trabalho primitiva e violenta.
Descendentes de imigrantes devem lembrar sempre que, lá no começo, quando seus antepassados sobem do litoral sul em direção ao centro do Estado, os escravocratas desejavam que eles ficassem no meio do caminho.
O sonho do sinhozinho gaúcho era esse mesmo. Escravizar os brancos que chegavam aqui sem nada, como banidos da seleção dos mais aptos pelo avanço do capitalismo.
É preciso ter essa História sempre presente, para que herdeiros de famílias que modernizaram o Estado não sejam agora patrocinadores do seu atraso.
Os colonos europeus fizeram o Rio Grande do Sul avançar e contribuíram para que aqui o fim da escravidão, mesmo que com controvérsias, acontecesse em 1884, quatro anos antes da Abolição.
Uma minoria dos seus descendentes não pode fazer agora o caminho inverso na História.
Devem respeitar os que abriram boa parte dos caminhos civilizatórios, enquanto os negros eram alijados dessa caminhada.