Discurso furado
Mário Quintana disse, certa vez, que preferia ser alvo de um atentado do que de uma homenagem, pois os atentados são mais expeditos (rápidos) e não têm discursos.
Eu também não tenho paciência alguma com discursos e fujo das solenidades como o diabo da cruz. Se dependesse de mim, já teriam desinventado o Cerimonial, o Protocolo e a Lista de Precedentes, que estabelece a ordem de importância das autoridades e personalidades presentes em um evento.
Mas, numa dessas, estive em uma sessão solene da Câmara de Vereadores de Cachoeirinha em que seriam homenageados os Cidadãos Honorários do ano.
De repente, foi chamado à frente, para receber seu troféu, um catarinense que mantinha uma escolinha de futebol na cidade, e o vereador que havia proposto a homenagem fez um discurso imenso, justificando a escolha de seu nome.
Argumentou que aquele cidadão merecia o título que estavam lhe oferecendo porque já haviam passado pelo seu projeto centenas de “criancinhas carentes”; que, graças àquela iniciativa, essas “criancinhas carentes” não haviam ido para o mau caminho; que poderiam, naquele momento, estar consumindo drogas, roubando ou até ter caído nas garras de traficantes.
Eu não estava concordando com uma palavra do que dizia o tal vereador e me dei conta que o mesmo ocorria com o homenageado.
Então, passaram-lhe o microfone, para que fizesse seu agradecimento, e ele aproveitou para colocar os pingos nos is: “Agradeço por terem lembrado do meu nome, mas gostaria de esclarecer que eu não recebo, na minha escolinha de futebol, “criancinhas carentes”. Eu recebo crianças, e posso lhes garantir: sobre um campo de futebol todas as crianças são iguais.”
Como temos de ter paciência com nossos políticos, não é?
As razões do artista
Sempre que vejo um “entendido” querendo impor a outras pessoas sua interpretação a respeito de uma obra de arte lembro de uma entrevista de Gabriel García Márquez que li algum tempo atrás.
Ele disse, nessa entrevista, que ficara surpreendido ao saber que, em prova aplicada em uma escola da Colômbia, uma das questões indagava o que ele tinha querido dizer com um determinado trecho de um de seus livros, e que os alunos deveriam assinalar a resposta correta entre quatro opções.
Ao saber do assunto, ele classificara a questão como uma “pendejada” (babaquice), pois nenhuma das quatro razões havia passado por sua cabeça.
Tudo muito engraçado, não fosse o fato de que, certamente, vários alunos se ferraram naquela prova, por não terem conseguido adivinhar o sentido atribuído por seu professor à leitura daquele trecho.
É preciso ter muito paciência com alguns professores, não é?
Encontro casual
Lá na década de 70, saí, um dia, do trabalho, para almoçar na Rua da Praia (antiga Rua dos Andradas, de Porto Alegre), e, de repente, me vi sugada por uma manifestação de estudantes contra o Regime Militar.
Depois de alguns momentos, a manifestação se dispersou (era muito arriscado protestar por mais do que alguns minutos naquela época), e um jovem com quem havia trocado duas ou três palavras, por ali, perguntou-me se já havia lido o Thiago de Mello.
Respondi que não, e ele me puxou pelo braço até a Livraria do Globo e me deu de presente um exemplar do Poesia comprometida com a minha e a tua vida.
Pouco depois, seguimos cada uma para o seu lado e, embora tivesse anotado seu nome (Jorge Moogen) e o ano (1975), na página de rosto do livro, nunca mais o encontrei, nem tentei encontrá-lo.
No entanto, aquele encontro foi um dos mais marcantes da minha vida de leitora, pois me levou a mergulhar de cabeça naqueles versos pungentes, escritos no exílio, pelo poeta amazonense, e, a partir dali, eu nunca mais seria a mesma.
Sim, há livros que transformam vidas…