3º NEURÔNIO

A geopolítica da Tempestade Al-Aqsa

Foco global acaba de se deslocar da Ucrânia à Palestina. Nova arena de confrontação irá desencadear mais competição entre os blocos Atlanticista e Eurasiano. Recomendamos o artigo do jornalista Pepe Escobar, publicado pelo Zerohedge e traduzido por Patricia Zimbres para o 247


A Operação Tempestade Al-Aqsa, do Hamas, foi meticulosamente planejada. O dia do lançamento foi condicionado por dois fatores precipitantes.

O primeiro deles foi o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, exibindo seu mapa do “Novo Oriente Médio” na Assembleia Geral da ONU, em setembro, no qual ele deletava por completo a Palestina, zombando de absolutamente todas as resoluções nas Nações Unidas sobre a questão.

O segundo foi a série de provocações na sagrada mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, incluindo a palha que quebrou a espinha do camelo: dois dias antes da Tempestade Al-Aqsa, em 5 de outubro, pelo menos 800 colonos israelenses lançaram um assalto em torno da mesquita, espancando peregrinos, destruindo lojas palestinas, sob a observação das forças de segurança israelenses.

Qualquer pessoa que tenha um cérebro minimamente funcional sabe que a Al-Aqsa é uma linha vermelha definitiva, não apenas para os palestinos, mas para todo o mundo árabe e muçulmano.

Fica ainda pior. Os israelenses, agora, invocam a retórica de uma “Pearl Harbor”. Nada pode ser mais ameaçador. A Pearl Harbor original foi a desculpa dos americanos para entrar em uma guerra mundial e desferir um ataque nuclear contra o Japão, e esta “Pearl Harbor” talvez seja a justificativa de Tel-Aviv para desencadear o genocídio de Gaza.

As parcelas do Ocidente que aplaudem a limpeza étnica que se aproxima – inclusive sionistas posando de “analistas” e alardeando que as “transferências de população” que começaram em 1948 “têm que ser completadas” – acreditam que com armamentos maciços e cobertura midiática maciça eles conseguirão reverter a situação com um mínimo esforço, aniquilar a resistência palestina e enfraquecer os aliados do Hamas, como o Hezbollah e o Irã.

Seu Projeto Ucrânia fracassou, deixando não apenas rostos poderosos passando vergonha mas também economias europeias em total ruína. Mas, quando uma porta se fecha, uma outra se abre: pulem do aliado Ucrânia para o aliado Israel e mirem o adversário Irã em vez de o adversário Rússia.

Há boas razões para partir para o ataque. Um Oeste Asiático pacífico significa a reconstrução da Síria – na qual a China está agora oficialmente envolvida; a retomada do desenvolvimento do Iraque e do Líbano; o ingresso do Irã e da Arábia Saudita nos BRICS 11; a parceria estratégica Rússia-China plenamente respeitada e interagindo com todos os atores regionais, inclusive aliados importantes dos Estados Unidos no Golfo Pérsico.


Incompetência. Estratégia deliberada. Ou ambos


Isso nos leva aos custos de lançar essa nova “guerra ao terror”. A propaganda está a todo o vapor. Para Netanyahu em Tel Aviv, o Hamas é o ISIS. Para Volodymyr Zelensky em Kiev, o Hamas é a Rússia. Por todo um fim de semana de outubro, a guerra da Ucrânia foi totalmente esquecida pela mídia convencional do Ocidente. Os Portões de Brandemburgo, a torre Eiffel, o Senado brasileiro são todos israelenses agora.

Os serviços de inteligência egípcios afirmam ter avisado Tel Aviv sobre um ataque iminente do Hamas. Os israelenses preferiram ignorar, da mesma forma que fizeram com os exercícios de treinamento do Hamas observados por eles nas semanas anteriores, preferindo a autocomplacência de seu conhecimento superior de que os palestinos jamais teriam a audácia de lançar uma operação de liberação.

O que quer que venha a acontecer a seguir, a Tempestade Al-Aqsa já destruiu de forma irremediável a sólida mitologia pop sobre a invencibilidade do Tsahal, da Mossad, do Shin Bet, do tanque Merkava, do Domo de Ferro e das Forças de Defesa de Israel.

Apesar de ter abandonado as comunicações eletrônicas, o Hamas se beneficiou do flagrante colapso dos multibilionários sistemas de eletrônicos de Israel no monitoramento da fronteira mais vigiada do planeta.

Drones baratos palestinos atingiram diversas torres de sensores, facilitaram o avanço de uma infantaria em parapentes e abriram caminho para que tropas de assalto vestidas de camisetas e portando AK-47 fizessem buracos no muro e cruzassem uma fronteira que nem gatos de rua ousavam cruzar.

Israel, como seria inevitável, passou a massacrar a Faixa de Gaza, uma jaula cercada de 365 quilômetros quadrados superlotados com 2,5 milhões de moradores. O bombardeio indiscriminado de campos de refugiados, escolas, prédios residenciais civis, mesquitas e favelas começou. Os palestinos não possuem marinha, aeronáutica, veículos armados de combate nem exército profissional. Eles contam com pouco ou nenhum acesso a vigilância de alta tecnologia, ao passo que Israel conseguiria acessar dados da OTAN, se quisesse.

O Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, proclamou “um cerco completo à Faixa de Gaza”. Não haverá eletricidade, comida, combustíveis, tudo será fechado. Estamos lutando contra animais humanos e agiremos na mesma medida”.

Os israelenses podem, despreocupadamente, se lançar a castigos coletivos porque, tendo embolsado três vetos garantidos do Conselho de Segurança da ONU eles sabem que se safarão ilesos.

Não faz a menor diferença que o Haaretz, o jornal mais respeitado de Israel, afirme sem rodeios que “na verdade, Israel é o único responsável pelo que aconteceu” (a Tempestade Al-Aqsa) por negar direitos aos palestinos.

Os israelenses são inegavelmente coerentes. Ainda em 2007, o então Chefe da Inteligência Defensiva de Israel, Amos Yadlin, disse que Israel ficaria felizo Hamas dominasse Gaza, porque a Defesa israelense então poderia tratar Gaza como um estado hostil”.


A Ucrânia envia armas aos palestinos


Há apenas um ano, o comediante de camiseta suada de Kiev falava de transformar a Ucrânia em um “grande Israel”, e foi devidamente aplaudido por um bando de robôs do Conselho Atlântico.

Bem, o que aconteceu foi coisa bem diferente. Como uma fonte da velha-escola do Estado Profundo acaba de me informar: “As armas destinadas à Ucrânia acabam nas mãos dos palestinos. A pergunta é que país está pagando por isso. O Irã acaba de fechar um acordo de seis bilhões de dólares com os Estados Unidos, e é pouco provável que o país arrisque comprometer esse acordo. Tenho uma fonte que me deu o nome do país, mas não posso revelá-lo. O fato é que as armas ucranianas estão indo para a Faixa de Gaza e que estão sendo pagas, mas não pelo Irã”.

Após seu surpreendente ataque da semana passada, um espertíssimo Hamas já havia assegurado mais capacidade de negociação que os palestinos haviam conseguido em décadas. É significativo que as conversações de paz contem com o apoio da China, Rússia, Turquia, Arábia Saudita e Egito – Tel Aviv se recusa. Netanyahu é obcecado com a ideia de reduzir Gaza a pó, mas se isso acontecer uma guerra regional mais ampla é praticamente inevitável.

O Hezbollah do Líbano – um forte Eixo de Resistência aliado à resistência palestina – preferiria não ser arrastado para a guerra, que poderia ser devastadora em seu lado da fronteira, mas isso poderia mudar caso Israel venha de fato a perpetrar genocídio em Gaza.

O Hezbollah tem em seu poder pelo menos 100.000 mísseis balísticos e foguetes, desde o Katyusha (alcance: 40 km) ao Fajr-5 (75 km), o Khaibar-1 (100 km), o Zelzal 2 (210 km), o Fateh-110 (300 km), e o Scud B-C (500 km). Tel Aviv sabe o que isso quer dizer e estremece com as frequentes advertências do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, de que sua próxima guerra com Israel será conduzida em território israelense. O que nos leva ao Irã.


Negação plausível geopolítica


A principal consequência imediata da Tempestade Al-Aqsa é que o sonho molhado dos neocons de Washington de uma “normalização” entre Israel e o mundo árabe simplesmente desaparecerá caso esta se converta em uma Guerra Longa.

Grandes partes do mundo árabe, na verdade, já vêm normalizando suas relações com Teerã – e não apenas internamente aos recentemente expandidos BRICS 11.

No impulso rumo a um mundo multipolar representado pelos BRICS 11, pela Organização de Cooperação de Xangai (OCX), pela União Econômica Eurasiana (UEEA) e pela Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) chinesa, entre outras revolucionárias instituições eurasianas e do Sul Global, simplesmente não há lugar para um estado etnocêntrico que pratica apartheid e é chegado a castigos coletivos.

Este ano, Israel se viu desconvidado da cúpula da União Africana. Uma delegação israelense apareceu mesmo assim, e foi ejetada sem a menor cerimônia do grande salão, uma imagem que viralizou. Nas sessões plenárias das Nações Unidas do mês passado, um único diplomata israelense tentou interromper o discurso do Presidente do Irã Ibrahim Raisi. Nenhum aliado ocidental ficou de seu lado, e ele também foi ejetado do local.

Como o Presidente chinês Xi Jinping diplomaticamente colocou em dezembro de 2022, Pequim “apoia firmemente a criação de um estado palestino independente que goze de plena soberania com base nas fronteiras de 1967, tendo como capital Jerusalém do Leste. A China apoia que a Palestina se torne membro pleno das Nações Unidas”.

A estratégia de Teerã é muito mais ambiciosa – oferecendo conselhos estratégicos a movimentos de resistência do Oeste Asiático, do Levante ao Golfo Pérsico: Hezbollah, Ansarallah, Hashd al-Shaabi, Kataib Hezbollah, Hamas, o Jihad Islâmico Palestino e incontáveis outros. É como se todos eles fossem parte de um novo Grande Tabuleiro supervisionado de fato pelo Grão-Mestre Irã.

As peças do tabuleiro foram cuidadosamente posicionadas por ninguém menos que o falecido Comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária Islâmica, o General Qassem Soleimani, um gênio militar desses que só aparecem uma única vez a cada geração. Ele foi instrumental na criação das fundações dos sucessos cumulativos dos aliados do Irã no Líbano, Síria, Iraque, Iêmen e Palestina, bem como na criação de condições para uma operação da complexidade da Tempestade Al-Aqsa.

Em outras partes da região, a intenção atlanticista de abrir corredores estratégicos entre os Cinco Mares – Cáspio, Negro, Vermelho, Golfo Pérsico e Leste do Mediterrâneo – vem naufragando fragorosamente.

Rússia e Irã já vêm esmagando as ambições dos Estados Unidos com relação ao Mar Cáspio – com o Corredor Internacional de Transportes Norte Sul (CITNS) – e ao Mar Negro, que está em vias de se tornar um lago russo. Teerã vem prestando cuidadosa atenção à estratégia de Moscou na Ucrânia, ao mesmo tempo em que refina sua própria estratégia para debilitar o Hegêmona sem envolvimento direto: chame-se a isso de negação plausível geopolítica.


Bye-bye corredor UE-Israel-Saudi-Índia


A aliança Rússia-China-Irã vem sendo demonizada como o novo “eixo do mal” pelos neocons ocidentais. Sua ira infantil mostra sua impotência cósmica. Esses países são Soberanos Reais com quem não se pode mexer, e caso isso aconteça, o preço a pagar será impensável.

Um exemplo importante: se o Irã, atacado por um eixo Estados Unidos-Israel, se decidisse a bloquear o Estreito de Hormuz, a crise de energia global aumentaria vertiginosamente, e o colapso da economia ocidental sob o peso de quatrilhões de derivativos seria inevitável.

O que isso significa no futuro imediato é que o Sonho Americano de interferir por todos os Cinco Mares não se qualifica sequer como uma miragem. A Tempestade Al-Aqsa acaba de enterrar o recém-anunciado e badaladíssimo corredor de transportes União Europeia-Israel-Arábia Saudita-Índia.

A China tem plena consciência de que toda essa incandescência ocorre apenas uma semana antes de seu Terceiro Fórum da Iniciativa Cinturão e Rota em Pequim. Estão em jogo os corredores de conectividade da ICR que realmente importam – cruzando o Heartland, atravessando a Rússia, mais a Rota da Seda Marítima e a Rota da Seda Ártica.

Há também o CITNS ligando Rússia, Irã e Índia – e por extensão auxiliar, as monarquias do Golfo. As repercussões geopolíticas da Tempestade Al-Aqsa irão acelerar as conexões geoeconômicas e logísticas entre Rússia, China e Irã, deixando de lado o Hegêmona e seu Império de Bases. Intensificação do comércio e movimento ininterrupto de cargas significam (bons) negócios. Em termos igualitários e com respeito mútuo – o que não é exatamente o cenário sonhado pelo Partido da Guerra para o Oeste Asiático.

Ah, as coisas que uma infantaria lenta usando parapentes e sobrevoando um muro podem acelerar.

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