3º NEURÔNIO

A grande crise é inevitável

O economista que previu o colapso de 2008 aponta: dívidas privadas dispararam. Juros muito baixos e emissão de dinheiro em favor dos mais ricos impediam um colapso. Mas agora a inflação frustrou o remendo e tudo pode estar por um triz. Recomendamos o artigo de Nouriel Roubini, no Project Syndicate, traduzido por Antonio Martins para o Outras Palavras


A economia mundial está caminhando para uma confluência sem precedentes de crises econômicas, financeiras e de dívida, após a explosão de déficits, empréstimos e alavancagem.

No setor privado, a montanha de dívidas inclui famílias (endividadas em hipotecas, cartões de crédito, empréstimos para automóveis, empréstimos estudantis, empréstimos pessoais), empresas e corporações (empréstimos bancários, títulos de dívida e dívida privada) e o setor financeiro (passivo de instituições bancárias e não bancárias). No setor público, estão os títulos dos governos centrais, subnacionais e locais, além de outros passivos formais e dívidas implícitas – como passivos não financiados dos sistemas de pensão por repartição e de atendimento à saúde. Tudo isso continuará a crescer à medida que as sociedades envelhecem.

Olhando apenas para as dívidas explícitas, os números são impressionantes. Globalmente, a dívida total dos setores público e privado como parcela do PIB aumentou de 200% em 1999 para 350% em 2021. A proporção é agora de 420% nas economias avançadas e de 330% na China. Nos Estados Unidos, é 420%, maior do que durante a Grande Depressão e após a Segunda Guerra Mundial.

Por certo, a dívida pode impulsionar a atividade econômica, se os tomadores de empréstimos investirem em novo capital (máquinas, residências, infraestrutura pública) que gere retornos superiores ao custo dos juros. Mas muitos empréstimos são simplesmente para financiar recorrentemente as famílias que consomem acima de sua renda das famílias – o que é uma receita para a falência. Além disso, os investimentos em “capital” também podem ser arriscados, em casos como o de uma família que compra uma casa a um preço artificialmente inflado, uma corporação que tenta crescer -se muito rápido, independentemente dos retornos ou um governo que desperdiça o dinheiro em “elefantes brancos”. (projetos de infraestrutura extravagantes, porém inúteis).

Esses empréstimos em excesso vêm ocorrendo há décadas, por vários motivos. A “democratização” das finanças permitiu que as famílias com poucos rendimentos financiassem o consumo com dívidas. Governos de centro-direita têm persistentemente cortado impostos sem também cortar gastos, enquanto governos de centro-esquerda gastam generosamente em programas sociais que não são totalmente financiados por impostos insuficientes. E as políticas fiscais que favorecem a dívida em detrimento do patrimônio, auxiliadas pelas políticas monetárias e de crédito ultra flexíveis dos bancos centrais, alimentaram um aumento das dívidas dos setores público e privado.

Anos de flexibilização quantitativa (QE), [em que os bancos centrais emitiram trilhões de dólares, em favor de um punhado de credores da dívida pública (Nota da Tradução)] e de crédito barato mantiveram os custos dos empréstimos próximos de zero e, em alguns casos, até negativos (como na Europa e no Japão até recentemente). Em 2020, a dívida pública com rendimento negativo era de US$ 17 trilhões e, em alguns países nórdicos, até as hipotecas tinham taxas de juros nominais negativas.

 A explosão de índices insustentáveis de dívida ​​significava que muitos tomadores de empréstimos – famílias, corporações, bancos, bancos paralelos, governos e até mesmo países inteiros – eram “zumbis” insolventes sustentados por baixas taxas de juros (que mantinham os custos do serviço da dívida administráveis). Durante a crise financeira global de 2008 e a crise da covid-19, muitos agentes insolventes que teriam ido à falência foram resgatados por políticas de taxa de juros zero ou negativa, flexibilização quantitativa e resgates fiscais definitivos.

Mas agora, a inflação – alimentada pelas mesmas políticas fiscais, monetárias e de crédito ultra flexíveis – pôs fim a este amanhecer financeiro dos mortos. Com os bancos centrais forçados a aumentar as taxas de juros, em um esforço para restaurar a estabilidade de preços, os zumbis estão experimentando aumentos acentuados nos custos do serviço da dívida. Para muitos, isso representa um golpe triplo, porque a inflação também está corroendo a renda familiar real e reduzindo o valor dos bens familiares, como casas e ações. O mesmo vale para corporações, instituições financeiras e governos frágeis e super endividados: eles enfrentam custos de empréstimos em alta acentuada, rendas e receitas em queda e valores de ativos em declínio, tudo ao mesmo tempo.

Pior, esses  eventos estão coincidindo com o retorno da estagflação (inflação alta junto com crescimento fraco). A última vez que as economias avançadas experimentaram tais condições foi na década de 1970. Mas naquela época, pelo menos os índices de endividamento eram muito baixos. Hoje, enfrentamos os piores aspectos da década de 1970 (choques estagflacionários) ao lado dos piores aspectos da crise financeira global. E, desta vez, não podemos simplesmente cortar as taxas de juros para estimular a demanda.

Afinal, a economia global está sendo atingida por persistentes choques negativos de oferta de curto e médio prazo que estão reduzindo o crescimento e aumentando os preços e custos de produção. Isso inclui as interrupções pela pandemia no fornecimento de mão de obra e bens, bem como o impacto da guerra da Rússia na Ucrânia sobre os preços das commodities; A política de covid zero da China; e uma dúzia de outros choques de médio prazo – de mudanças climáticas a desenvolvimentos geopolíticos – que criarão pressões estagflacionárias adicionais.

Diferente da crise financeira de 2008 e dos primeiros meses do covid-19, simplesmente socorrer agentes privados e públicos com macropolíticas frouxas jogaria mais gasolina no fogo inflacionário. Isso significa que haverá um pouso forçado – uma recessão profunda e prolongada – além de uma grave crise financeira. À medida que as bolhas de ativos estouram, os índices de serviço da dívida disparam e as rendas das famílias, corporações e governos caem, a crise econômica e o colapso financeiro se alimentam mutuamente.

Certamente, as economias avançadas que tomam empréstimos em sua própria moeda podem usar um surto inesperado de inflação para reduzir o valor real de algumas dívidas nominais de longo prazo com taxa fixa. Com os governos relutantes em aumentar impostos ou cortar gastos para reduzir seus déficits, a monetização dos déficits dos bancos centrais será mais uma vez vista como o caminho de menor resistência. Mas não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo. Assim que o gênio da inflação sair da garrafa – que é o que acontecerá quando os bancos centrais abandonarem a luta diante do iminente colapso econômico e financeiro – os custos nominais e reais dos empréstimos aumentarão. A mãe de todas as crises de dívida estagflacionária pode até ser adiada, não evitada.

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