Engana-se quem pensa que as mobilizações para não pagar pedágio na região são novidades. Por aqui, isso é mais velho do que a própria cidade de Cachoeirinha. Lá pela metade do século XIX, quando acabara de ser erguida a primeira ponte sobre o Rio Gravataí, o governo da província estabeleceu ali, no caminho entre Porto Alegre e Conceição do Arroio (atual Osório) um posto de arrecadação de impostos sobre os tropeiros que faziam a rota. Mas a arrecadação era ínfima.
— Os tropeiros buscavam partes mais rasas do rio para passar e evitar o posto de arrecadação. Exatamente como se faz hoje para escapar dos pedágios — conta o historiador Guilherme Dias da Silva, da Secretaria da Cultura, de Cachoeirinha.
Isto no verão. No inverno, quando a cheia do Gravataí, ainda com seu curso praticamente intocado e a queda d'água, que dá nome ao município ainda na paisagem, tudo ficava alagado. Aí, nem cabia cobrar dos tropeiros que seguiam para a Capital.
: Relatório de 1856 mostrava o fracasso na cobrança do pedágio na Ponte da Cachoeira
A curiosidade sobre a ponte de pedra, com três arcos, erguida para cruzar o Gravataí é uma das preciosidades que Guilherme e o colega Marcos Leandro Monteiro contam no livro "Fragmentos: da colonização à emancipação de Cachoeirinha", lançado há um ano pela prefeitura e que, nesta quarta, terá sessão de autógrafos, às 18h30min, na Feira do Livro de Porto Alegre.
O livro é um dos principais instrumentos que hoje impulsionam os historiadores locais a desvendarem o legado dos Baptista. Um verdadeiro tesouro cultural que guarda a história da cidade. A Ponte da Cachoeira, construída entre 1835 e 1859, foi obra do comendador João Baptista Soares da Silveira e Souza. Um empreendedor, nascido nos Açores, e que veio para cá no começo do século XIX. Recebeu praticamente todo o atual território onde está Cachoeirinha, e ganhou notoriedade.
Entre as obras feitas por ele está o Teatro São Pedro, a Ponte de Pedra, em Porto Alegre, e o Edifício Malakoff (o primeiro arranha-céu do Rio Grande do Sul), no centro da Capital. No então primeiro distrito da Aldeia dos Anjos, João Baptista ergueu a sua estância, a Casa dos Baptista, dentro da área conhecida como Mato do Júlio. O processo de tombamento do imóvel e de uma área de 10 hectares (4% do total do Mato do Júlio) ao seu redor está em andamento na justiça. Enquanto isso, o que os pesquisadores descobrem no casarão hoje encravado no centro urbano da cidade é fascinante.
— Já foram mais de sete mil documentos recolhidos dentro da casa e do porão. O material ainda não foi analisado por completo e catalogado, mas já sabemos que há ali, por exemplo, livros contábeis da movimentação da estância e de praticamente todas as atividades dos Baptista no século XIX. Dados como o controle do número de escravos, pagamentos por obras, negociações de terras. Em resumo, estamos diante da origem de Cachoeirinha documentada, e que precisa ser preservada — valoriza Guilherme.
Severino: a liberdade e o norte de Cachoeirinha
O comendador era um homem bastante poderoso. Conhecido como o "senhor de mil escravos". Os documentos, é claro, não apontam este número, até porque, em 1870, A Freguesia da Aldeia dos Anjos tinha 5.855 habitantes, sendo 1.161 escravos. Em seus registros, João Baptista contabilizava 72. Entre eles, Severino, a quem o comendador alforriava e lançava em seu testamento como herdeiro, junto com a esposa, de toda a fatia de terras que hoje formam o norte de Cachoeirinha, em direção à RS-118.
O livro, disponível online no site da prefeitura de Cachoeirinha, aguça a curiosidade por buscar ainda mais conhecimento sobre as origens da cidade. O historiador assegura que muito mais está por vir.
— Com o processo de tombamento da Casa dos Baptista, temos deparado com uma série de informações que dão sequência à nossa pesquisa. Há documentações dos herdeiros como, por exemplo, todo o loteamento da Vila City, a primeira área loteada da cidade, feita toda pelos herdeiros dos Baptista — conta Guilherme.
Depois, veio a ponte de ferro
Entre os dados que ele ainda pesquisa está o destino daquela ponte de pedra original. Não há registros fotográficos daquela ponte publicados até hoje, mas Guilherme acredita que existam em algum arquivo da antiga secretaria de obras do Estado. É que a ponte foi dinamitada no começo do século XX, assim como a cachoeira que deu nome à cidade. Era uma necessidade para a navegação pelo Rio Gravataí, já que os arcos da antiga ponte não permitiam a passagem.
: Ponte de ferro tornou-se o primeiro cartão-postal da localidade | DIVULGAÇÃO
No lugar dela, foi construída pelo governo a ponte de ferro, no começo do século XX.
Quem ficou com o casarão foi um dos sobrinhos do comendador: José Baptista Soares da Silveira e Souza. E, posteriormente, o filho dele, Lydio Baptista Soares. Quando morreu, em 1942, herdaram a fazenda os seus filhos: Júlio Baptista Soares e os irmãos. Daí o nome de Mato do Júlio, a única terra não desmembrada pelos herdeiros do Baptista.
Um Malbec da safra de… Cachoeirinha
Já no começo do século XX, outra granja colocaria Cachoeirinha em evidência. Imagne se a cidade tivesse se notabilizado como um dos polos produtores de vinho no Rio Grande do Sul?
Pois Alberto Bins, nome expoente do Partido Republicano Riograndense, na Granja Progresso (atual área do Irga), passou a produzir, entre 1910 e 1920, vinhos do tipo Merlot, Bourdeaux e Malbec, e depois os vinhos brancos (Rheno) a partir da uva Traminer. Com um sistema avançado para a época, Bins ainda deu início ao plantio do arroz.
: A produção de uvas na Granja Progresso | DIVULGAÇÃO
A granja era como um local de repouso para o político, e chegou a ser ponto de encontro dos poderosos que chegariam ao poder no Brasil em 1930, mas Alberto Bins não prosperou. Quando se opos ao controle do partido hegemônico, com Getúlio Vargas à frente, ficando ao lado de Flores da Cunha, Alberto Bins pagou o preço com uma perseguição política.
Ele era o responsável pela feira do centenário da Revolução Farroupilha, um dos primórdios da Expointer, e foi acusado de desviar recursos no momento de prestar contas. Como resultado deste processo, o Estado lhe tomou a Granja Progresso e instalou ali, posteriormente, o Irga. Ironicamente, dando sequência à promissora produção de arroz que Alberto Bins dera início.
— O que procuramos com o livro é chamar atenção para uma história que precisa ser documentada e construída. É nossa missão reorçar o sentimento de identidade, pertencimento e cidadania na população. Por exemplo, de que adianta as pessoas passarem diariamente pelo Mato do Júlio e desconhecerem o valor daquilo ali para a origem da sua cidade. Quem toma contato com isso, naturalmente, vai cuidar muito mais do que é seu, muito mais da cidade — acredita o historiador.
: Presidente Washington Luís, ao centro, ao lado de Borges de Medeiros, com um menino, e Alberto Bins à esuqerda, ao lado do filho, em visita à Granja Progresso
FIQUE ATENTO
: Sessão de Autógrafos do livro "Fragmentos: da colonização à emancipação de Cachoeirinha", com os historiadores Marcos Leandro Greff Monteiro e Guilherme Dias da Silva, na Feira do Livro de Porto Alegre
: O livro, lançado em 2017, está disponível para leitura no site da prefeitura de Cachoeirinha.