20 DE SETEMBRO

A Lanceira de Gravataí que conta a crianças e adultos sobre os heróis negros na revolução farroupilha

Angela Xavier no Sítio de Porongos, em fevereiro de 2020

Um trabalho que reputo dos mais fantásticos produzidos no Rio Grande do Sul para o resgate do heroísmo do negro na revolução farroupilha é criação de uma professora de Gravataí: o Lanceirinho Negro.

A personagem, que virou livro primeiro para crianças, depois para adolescentes e adultos, é de autoria de Angela Maria Xavier Freitas.

Neste 20 de setembro, o Seguinte: foi ouvir a descendente de negros e indígenas, hoje presidente do Clube Literário de Gravataí, que é professora na Escola Municipal Rui Ramos, mestre em Letras, com especialização em História e Cultura Afro-brasileira e integrante de coletivos gaúchos como dos escritores negros, dos educadores antirracismo e das profes pretas.

Siga abaixo trechos da entrevista, onde a escritora mantém a firmeza de suas convicções, baseadas em pesquisas e documentos, sobre a traição aos negros, mas procura evitar polêmicas.

– A minha, a nossa luta, é estratégica. Quero levar a história dos Lanceiros a diferentes públicos. Com muita alegria busco, por exemplo, a aproximação com CTGs – explica.


Seguinte: – Como nasceu o Lanceirinho Negro?

Angela – Eu era recém formada e preparei uma aula sobre a revolução farroupilha para uma turma da noite do EJA (educação de jovens e adultos) na escola Adriano Ortiz Correâ. Uma aluna, Veridiana, de 17 anos, negra, me disse que não tinha o que comemorar, que o povo negro tinha sido sacrificado e ela conhecia a história oral dos Lanceiros, contada por seus ancestrais. Fiquei impactada. Eu, uma mulher de descendência africana e indígena desconhecia a história. Nunca tinha lido um livro que tratasse do tema. Eu, mesmo que inconscientemente, fazia parte de um sistema que mantém o negro invisível. Comecei a pesquisar e, nestes dez anos seguintes, me especializei. Desde então transformei minhas práticas pedagógicas, escrevi artigos, um esquete sobre os Lanceiros premiado no Festil com o troféu de desconstrução da história oficial até, em 2019, chegar ao conto infantil do Lanceirinho Negro, para contemplar séries iniciais onde lecionava. Como é uma temática cruel e sangrenta, usei a ferramenta da literatura e da ilustração, em parceria com o ilustrador Daniel Silveira e sua esposa Michele Santos, ambos ativistas do movimento negro. Com incentivo da lei Aldir Blanc conseguimos distribuir gratuitamente o livro para mais de 20 escolas. Com a aceitação e repercussão, educadores me pediram que abordasse o tema de forma mais objetiva, não tão lúdica, para atingir as demais séries. Criei o “Lanceirinho Negro, herança de Porongos”, com ilustrações do artista gravataiense Waldemar Max, que também ativista do movimento negro. Na obra abordamos o massacre de negros em Porongos.

Seguinte: – Como percebes a aceitação, de negros e brancos, para uma história e temática que ainda passa longe dos livros tradicionais das escolas públicas e privadas?

Angela – Fiquei impressionada. Quando lançamos o livro, que resgata o protagonismo e a representatividade do negro na História do Rio Grande do Sul, e debate o racismo, muitos acharam que as crianças, e depois adolescentes e adultos, não entenderiam. Mas a questão da liberdade, e da desumana privação dessa liberdade, é tão forte que mexe com as pessoas, negros ou brancos. Alunos compartilharam a história em casa, comunidades se envolveram e recebo muitos relatos de crianças transformadas, que se sentiram empoderadas por saber que existiram heróis negros. Recebo mensagens de todo RS. Semana passada fui a escola de Gravataí, ontem estava em Canoas, semana que vem vou a Porto Alegre, depois Torres. São relatos inclusive sobre descendentes de alemães, cabelo loiro e olhos azuis, brincando de Lanceiros Negros.

Seguinte: – Os negros foram traídos na guerra, tanto pelos imperiais, quanto pelos farroupilhas?

Angela – A questão dos escravos impedia a trégua. Há uma divisão entre historiadores, mas os indícios são claros de que os negros foram desarmados e, no Sítio de Porongos, onde haviam três acampamentos, um de brancos, um de indígenas e um de negros, apenas o dos negros foi atacado pelo Império em 14 de novembro de 1844. Lutaram bravamente até o final.

Seguinte: – Juremir Machado da Silva, autor de “História Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras”, em artigo que publicamos hoje, Até quando vamos endeusar a revolução farroupilha?, confirma a traição aos Lanceiros, lembra que a Constituição Farroupilha não previa a libertação dos escravos e Bento Gonçalves deixou escravos aos herdeiros, além de criticar a transformação da revolução farroupilha de revolta de proprietários em revolta de todos os gaúchos. A história farroupilha é contada como um conto de fadas?

Angela – Trato como guerra, não revolução ou revolta. É um fato que foi uma guerra de estancieiros, com interesses das classes dominantes em jogo. Mas a minha, a nossa luta, é estratégica. Quero levar a história dos Lanceiros Negros a diferentes públicos. Com muita alegria busco, por exemplo, a aproximação com CTGs. Citaste o Juremir, quer gosto muito, e acrescento meu preferido, o professor negro Jorge Eusébio Assunção, também pesquisador sobre Porongos. Ambos elogiaram o Lanceirinho Negro.

Seguinte: – Visitaste o Sítio de Porongos, onde ocorreu o massacre, e postaste um depoimento em teu Facebook (clique aqui para ler).

Angela – Sim, quando terminava o primeiro artigo acadêmico sobre os Lanceiros Negros. A emoção foi indescritível, tão perturbadora que não sei descrever. O vento parece um lamento, vozes sussurrando ao ouvido. Considero um lugar sagrado para o movimento negro, e que deveria ser mais valorizado por fazer parte da História gaúcha. Demorei a encontrar, fica a 35km em estrada de chão batido, em um distrito de Pinheiro Machado. Quero retornar em breve.


SERVIÇO

O Lanceirinho Negro pode ser comprado na Livraria Santos, no Gravataí Shopping Center, ou com a própria autora, pelo WhatsApp 997320615, onde também podem ser feitos contatos para apresentação em escolas.

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