Um trabalho que reputo dos mais fantásticos produzidos no Rio Grande do Sul para o resgate do heroísmo do negro na revolução farroupilha é criação de uma professora de Gravataí: o Lanceirinho Negro.
A personagem, que virou livro primeiro para crianças, depois para adolescentes e adultos, é de autoria de Angela Maria Xavier Freitas.
Neste 20 de setembro, o Seguinte: foi ouvir a descendente de negros e indígenas, hoje presidente do Clube Literário de Gravataí, que é professora na Escola Municipal Rui Ramos, mestre em Letras, com especialização em História e Cultura Afro-brasileira e integrante de coletivos gaúchos como dos escritores negros, dos educadores antirracismo e das profes pretas.
Siga abaixo trechos da entrevista, onde a escritora mantém a firmeza de suas convicções, baseadas em pesquisas e documentos, sobre a traição aos negros, mas procura evitar polêmicas.
– A minha, a nossa luta, é estratégica. Quero levar a história dos Lanceiros a diferentes públicos. Com muita alegria busco, por exemplo, a aproximação com CTGs – explica.
Seguinte: – Como nasceu o Lanceirinho Negro?
Angela – Eu era recém formada e preparei uma aula sobre a revolução farroupilha para uma turma da noite do EJA (educação de jovens e adultos) na escola Adriano Ortiz Correâ. Uma aluna, Veridiana, de 17 anos, negra, me disse que não tinha o que comemorar, que o povo negro tinha sido sacrificado e ela conhecia a história oral dos Lanceiros, contada por seus ancestrais. Fiquei impactada. Eu, uma mulher de descendência africana e indígena desconhecia a história. Nunca tinha lido um livro que tratasse do tema. Eu, mesmo que inconscientemente, fazia parte de um sistema que mantém o negro invisível. Comecei a pesquisar e, nestes dez anos seguintes, me especializei. Desde então transformei minhas práticas pedagógicas, escrevi artigos, um esquete sobre os Lanceiros premiado no Festil com o troféu de desconstrução da história oficial até, em 2019, chegar ao conto infantil do Lanceirinho Negro, para contemplar séries iniciais onde lecionava. Como é uma temática cruel e sangrenta, usei a ferramenta da literatura e da ilustração, em parceria com o ilustrador Daniel Silveira e sua esposa Michele Santos, ambos ativistas do movimento negro. Com incentivo da lei Aldir Blanc conseguimos distribuir gratuitamente o livro para mais de 20 escolas. Com a aceitação e repercussão, educadores me pediram que abordasse o tema de forma mais objetiva, não tão lúdica, para atingir as demais séries. Criei o “Lanceirinho Negro, herança de Porongos”, com ilustrações do artista gravataiense Waldemar Max, que também ativista do movimento negro. Na obra abordamos o massacre de negros em Porongos.
Seguinte: – Como percebes a aceitação, de negros e brancos, para uma história e temática que ainda passa longe dos livros tradicionais das escolas públicas e privadas?
Angela – Fiquei impressionada. Quando lançamos o livro, que resgata o protagonismo e a representatividade do negro na História do Rio Grande do Sul, e debate o racismo, muitos acharam que as crianças, e depois adolescentes e adultos, não entenderiam. Mas a questão da liberdade, e da desumana privação dessa liberdade, é tão forte que mexe com as pessoas, negros ou brancos. Alunos compartilharam a história em casa, comunidades se envolveram e recebo muitos relatos de crianças transformadas, que se sentiram empoderadas por saber que existiram heróis negros. Recebo mensagens de todo RS. Semana passada fui a escola de Gravataí, ontem estava em Canoas, semana que vem vou a Porto Alegre, depois Torres. São relatos inclusive sobre descendentes de alemães, cabelo loiro e olhos azuis, brincando de Lanceiros Negros.
Seguinte: – Os negros foram traídos na guerra, tanto pelos imperiais, quanto pelos farroupilhas?
Angela – A questão dos escravos impedia a trégua. Há uma divisão entre historiadores, mas os indícios são claros de que os negros foram desarmados e, no Sítio de Porongos, onde haviam três acampamentos, um de brancos, um de indígenas e um de negros, apenas o dos negros foi atacado pelo Império em 14 de novembro de 1844. Lutaram bravamente até o final.
Seguinte: – Juremir Machado da Silva, autor de “História Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras”, em artigo que publicamos hoje, Até quando vamos endeusar a revolução farroupilha?, confirma a traição aos Lanceiros, lembra que a Constituição Farroupilha não previa a libertação dos escravos e Bento Gonçalves deixou escravos aos herdeiros, além de criticar a transformação da revolução farroupilha de revolta de proprietários em revolta de todos os gaúchos. A história farroupilha é contada como um conto de fadas?
Angela – Trato como guerra, não revolução ou revolta. É um fato que foi uma guerra de estancieiros, com interesses das classes dominantes em jogo. Mas a minha, a nossa luta, é estratégica. Quero levar a história dos Lanceiros Negros a diferentes públicos. Com muita alegria busco, por exemplo, a aproximação com CTGs. Citaste o Juremir, quer gosto muito, e acrescento meu preferido, o professor negro Jorge Eusébio Assunção, também pesquisador sobre Porongos. Ambos elogiaram o Lanceirinho Negro.
Seguinte: – Visitaste o Sítio de Porongos, onde ocorreu o massacre, e postaste um depoimento em teu Facebook (clique aqui para ler).
Angela – Sim, quando terminava o primeiro artigo acadêmico sobre os Lanceiros Negros. A emoção foi indescritível, tão perturbadora que não sei descrever. O vento parece um lamento, vozes sussurrando ao ouvido. Considero um lugar sagrado para o movimento negro, e que deveria ser mais valorizado por fazer parte da História gaúcha. Demorei a encontrar, fica a 35km em estrada de chão batido, em um distrito de Pinheiro Machado. Quero retornar em breve.
SERVIÇO
O Lanceirinho Negro pode ser comprado na Livraria Santos, no Gravataí Shopping Center, ou com a própria autora, pelo WhatsApp 997320615, onde também podem ser feitos contatos para apresentação em escolas.