a coluna da jeane

A menina que gostava de estudar

Minha mãe conta que nos primeiros anos eu chegava da escola e já queria fazer a lição de casa. Tinha até que insistir para eu trocar de roupa e comer alguma coisa antes de pegar as tarefas. Talvez já houvesse um pouco de ansiedade naquela época e eu queria resolver logo. Mas o certo é que fui uma estudante dedicada desde antes de me entender por gente.

Como sempre fui a menor da turma, sentava na primeira fileira, quase sempre perto da professora. Então, enquanto os colegas bagunçavam mais para trás, eu ficava com os olhos grudados na lousa. Era aquela criança que tinha muita sede de aprender. Tanto que comecei a escola com 4 anos! Naquela época, a gente podia ser matriculada se completasse a idade exigida até o fim do ano. Eu faria 5 anos só em dezembro, mas em março estava toda feliz com minha merendeira de casinha indo para o Jardim de Infância da Prô Sônia. No ano seguinte, frequentei o Pré com a Prô Floriza.

Então, em 1987, eu estava ansiosa por começar a primeira série e aprender a ler! Mas naquele ano houve a maior greve do funcionalismo público estadual e tivemos que esperar meses pelas aulas. Detalhe: minha mãe era uma das professoras grevistas e ia para a frente do Palácio do Governo tocar sineta para o Simon.

Tenho provas fotográficas de que eu já andava com os livros na mão bem antes de saber ler. Diz minha mãe que cheguei a decorar a história do meu livrinho preferido e fazia de conta que estava lendo. Não tenho muitas lembranças dessa época, mas pelo amor que tenho até hoje pelos livros, imagino a expectativa que eu estava para desbravar aquelas páginas sozinha. Passou abril, maio, e a greve continuava. Terminou só em julho.

Daí quando começaram as aulas a guriazinha aqui surpreendeu a professora de artes (que não era a titular da turma) quando leu o que havia escrito no quadro: “Trazer revistas velhas”. Já tinha aprendido a decifrar as palavras sozinha. Mas lembro ainda que a prô Iara contava a história da abelhinha para nos ensinar as letras, recordo inclusive do varal do alfabeto que ficava em cima da lousa.

Da infância também guardo lembranças de brincar de “aulinha”. Uma das brincadeiras preferidas, talvez por ser a profissão da minha mãe. Eu tinha um quadro pequeno e um mini-apagador que foi feito pelo meu pai. Acho que algumas vezes obriguei meu irmão a ser meu “aluno” (é, caçula sofre). Mas eu gostava tanto da brincar de professora que não me importava de ensinar uma turma imaginária. Conforme cresci e entendi o perrengue que é o magistério (apesar de ser uma profissão linda) não quis seguir esse caminho. Mas tenho jeito para ensinar, é algo que faz parte de mim.

Sabe aquela aluna que passa o recreio na biblioteca e vai passando os livros na prateleira observando “esse já li, esse já li, esse também”? Era eu lá pela quinta e sexta série. Naquele tempo, o boletim era tipo um cartão onde escreviam as notas com caneta azul (de 70 para cima) ou vermelha (abaixo de 70). Apesar de colorada, meu boletim era quase sempre gremista. Tive só dois “tropeços”: um em Matemática, que nunca foi meu forte, e outro em Educação Física porque… bem, sabe aquela menina gordinha e desajeitada? Também era eu.

Mas ser uma boa aluna, acima da média, em vez de ser motivo de admiração, se tornou logo razão para bullying e fofocas. O fato de minha mãe também ser professora na escola levava os colegas maldosos a dizer que eu tinha boas notas por ganhar algum privilégio, não pelo motivo real que era minha dedicação. Acho que foi minha primeira sensação de “o mundo está ao contrário e ninguém reparou?”. E até hoje não entendo como ser um aluno relapso pode ser considerado esperto.

Continuei sendo a menina da primeira fila, estudiosa e rata de biblioteca… mas as memórias que tenho da sétima série são de uma pressão psicológica absurda, por causa de colegas que achavam divertido me perturbar e me ver acuada. Cheguei ao ponto de voltar chorando da escola. Eu, que amava estudar, passei a achar a sala de aula um lugar horrível. Jamais faltei um dia, mas ia por obrigação. Foi um alívio imenso quando minha mãe conseguiu me matricular no Dom Feliciano para a oitava série.

Lá também havia alguns colegas maldosos (será que eu estava pagando algum carma na vida escolar?), mas eu estava estudando junto com minha melhor amiga, minha mana Josi, o que me deixava mais forte. E no meu querido “Domfa” me senti uma aluna mais “normal”, porque não era a “inteligente” da turma, havia colegas com melhores notas do que as minhas. Também foi bom estar num ambiente onde eu não era filha de uma das professoras (e a maioria me conhecia desde que nasci), mas foram tantos anos estudando no mesmo espaço de trabalho da minha mãe que eu demorei a me acostumar e conseguir me sentir livre. Ou já era a ansiedade atrapalhando minha socialização? Ou tudo isso e mais a confusão de ser adolescente!

Só no último ano do Ensino Médio foi que consegui me soltar e começar a bagunçar um pouco. Até fiquei feliz quando uma professora me chamou a atenção por estar conversando durante a aula! Para quem viveu anos num ciclo de medo de falar – se sentir um fracasso por não conseguir falar – ficar com mais medo de falar por se se sentir um fracasso, perturbar a aula teve gosto de vitória, de superação.

Até hoje não sei dimensionar o quanto as chacotas dos colegas sem-noção foram responsáveis pelas minhas dificuldades de me expressar e me relacionar, porque existem outros fatores que contribuíram para minha ansiedade social. Mas com certeza o bullying colaborou para me deixar mais fechada e insegura. E deixou marcas que me acompanham até hoje, porque tudo que acontece enquanto estamos nos entendendo como gente tem impacto eterno.

Também não culpo meus colegas, porque as crianças são reflexo do ambiente em que vivem. Então são os adultos que precisam ensinar seus meninos e meninas a respeitarem o próximo. E também a valorizarem o estudo, porque esperto é ser alguém que está sempre aprendendo coisas novas e ampliando seus conhecimentos e horizontes. Por isso a garota da primeira fila não desanimou e continuou gostando de estudar. Aprendiz sempre!

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Quero aproveitar o espaço para uma homenagem especial à poeta gaúcha Léris Seitenfus, que nos deixou essa semana vítima da Covid. Uma amiga querida e uma poeta sensível, que deixa muitas saudades.

 

CAMINHAR

Navego nos mares

de magia e acalanto

perpetuando passos

do eterno caminhar

sigo altiva

driblando a dor

e o pranto

para um dia

em poesia

poder descansar.

(Léris Seitenfus)

 

 

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