RAFAEL MARTINELLI

A morte do bêbe de Gravataí como reflexão: quando 130km separam a criança do leito que poderia salvá-la

Vamos exercitar uma penitência coletiva e uma ode à impotência? O choro abafado que ecoou nos corredores de uma UPA de Gravataí não é apenas de uma família dilacerada. É o grito silencioso de um sistema de saúde metropoliano em colapso, exposto de forma brutal pela morte de uma criança de oito meses.

A tragédia desta semana não é um incidente isolado, caso idêntico ocorreu em Viamão, outro em Passo Fundo, mesmo todos os protocolos técnicos tenham sido seguidos à risca pelos governos (veja íntegra da nota da Prefeitura no fim deste artigo). É a face mais cruel de uma crise anunciada, histórica, um retrato em escala humana de um fracasso coletivo.

A prefeitura explica que “toda assistência foi prestada” e que a “inviabilização da transferência foi consequência direta da gravidade clínica extrema”. Sim, a criança estava em estado grave. Nem foi possível a transferência. Porém, o fato de o sistema estadual de regulação de leitos ter encontrado uma vaga, não em Porto Alegre ou na região metropolitana, mas em Lajeado, a 130 quilômetros de distância, é a primeira e mais gritante evidência do colapso. No caso de Viamão, a UTI estava a 400 quilômetros. Essa distância geográfica é a medida concreta da escassez abissal de leitos.

Falta ar saber que, tivesse Gravataí UTIs neonatal ou pediátrica, os leitos estariam ocupados, e com fila, como mostram os dados oficiais num estado de calamidade pública em saúde decretada.

Os números são irrefutáveis e aterradores: embora Gravataí invista quase 25% em saúde, acima do mínimo constitucional de 18%, o Sindicato Médico do RS (Simers) aponta 130 cidades sem pediatras, mais de 30 maternidades fechadas nos últimos cinco anos e uma redução de 16% nas vagas de UTIs neonatal e pediátrica desde 2019.

A Secretaria Estadual considera que os 370 leitos neonatais atendem “em média” à demanda quando confrontados com 10,2 mil nascimentos mensais.

O decreto de emergência em saúde pública assinado pelo governador Eduardo Leite em 19 de maio, focado na SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), é um reconhecimento da tempestade perfeita. As internações pediátricas por SRAG dispararam, quase duplicando em poucos dias, sobrecarregando emergências e expondo a fragilidade extrema da infraestrutura voltada às crianças.

A epidemia de dengue e a circulação agressiva de vírus como Influenza e VSR agravam o cenário, mas não o criaram. Elas apenas detonaram uma bomba-relógio armada por anos de desinvestimento e falta de planejamento estratégico, no qual a medida judicial compete vagas com o sistema regulatório.

A baixíssima cobertura vacinal contra a gripe em Gravataí – apenas 31,5% do público-alvo imunizado, longe da meta de 90% – é mais um sintoma. Não, não somos uma ilha de loucos negacionistas e negligentes: essa é a média nacional.

Caberia aqui outro artigo, sobre os danos provocados pelos antivax, os criminosos ou seus cúmplices desavisados que ajudam a apavorar famílias, que deixam de acreditar na ciência e não levam seus filhos vacinar.

Só um em cada três vacinaram, mesmo com horários estendidos em unidades de saúde e campanha municipal pela vacinação.

Apelo, não vejamos a morte da criança de oito meses em Gravataí apenas como uma fatalidade clínica, mesmo assim tenha sido. Observemos o contexto. É um símbolo de um sistema que não consegue garantir o mais básico: o leito certo, no lugar certo, na hora certa. Quando uma vaga de UTI pediátrica precisa ser buscada a 130km de distância, o sistema já entrou em colapso.

É preciso ampliação urgente de leitos de UTI pediátrica e neonatal na região metropolitana, ou compra de vagas na rede privada. Antes que a próxima transferência impossível se transforme em luto evitável.

A nota da Prefeitura

A prefeitura de Gravataí, primeiramente, lamenta o falecimento da criança na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Abílio Alves dos Santos nesta terça-feira, dia 3 de junho. A prefeitura reforça que toda a assistência prestada seguiu rigorosamente os protocolos técnicos vigentes, com envolvimento integral das equipes multiprofissionais, acionamento tempestivo da regulação e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). 

A inviabilização da transferência foi consequência direta da gravidade clínica extrema e rápida deterioração do quadro respiratório, mesmo com todos os recursos disponíveis aplicados.

Em relação à necessidade de UTI Neo, a prefeitura reitera que cada caso de criança que necessita de um suporte intensivo de cuidados é de extrema importância e tratado pelas equipes com a necessidade, urgência e relevância necessárias. É importante lembrar que UTI Neo é diferente de UTI Pediátrica, tendo em vista que a UTI Neo serve apenas a recém-nascidos, de forma que todas as demais crianças que possam necessitar de uma unidade intensiva não seriam absorvidas por esse tipo de suporte assistencial. 

A prefeitura reforça que Gravataí possui ampla abrangência na rede de atenção básica, com quadro de ginecologistas obstetras e pediatras que atendem a população de forma eficaz e qualificada. A partir do momento em que se identifica a gestação de alto risco, as pacientes são encaminhadas para serviços que possuem toda capacidade de atendimento, desde o parto até a garantia de assistência total ao recém-nascido.

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