Pura pornografia
Anos atrás, recebemos, na Feira do Livro de Porto Alegre, cuja equipe executiva integro, um grupo de escritores africanos, dentre os quais Craveirinha, considerado, na época, o maior poeta de Moçambique.
Além de seu porte altivo e de sua alinhada túnica branca com gola indiana, chamaram minha atenção, em um primeiro contato, as enormes unhas de suas mãos, que, segundo os demais poetas do grupo, eram, naquela região da África, um troféu reservado a anciãos que se destacavam por sua sabedoria.
Uma noite, levei o grupo para jantar em uma churrascaria, e, ao ver as dezenas de opções oferecidas no bufê e os garçons borboleteando incessantemente pelo salão com espetos de carne, para servir a clientela, ele exclamou: “Isto não é um jantar! É pura pornografia este desperdício de comida! Vocês não têm ideia da fome que há na África!”.
E, depois de ter silenciado o burburinho da mesa com seu rompante, levantou-se, encaminhou-se ao bufê com seu prato e voltou com uma banana e dois bolinhos de arroz, que foram todo seu jantar.
No dia seguinte, fomos a outro restaurante da cidade, e o mal-estar de Craveirinha foi ainda maior. Ocorre que, naquele tempo, ainda não era proibido fumar em recintos fechados e, bem ao lado da nossa mesa, dezenas de membros da Confraria do Charuto de Porto Alegre se pavoneavam com seus “puros” adquiridos a preço de ouro.
Aí sim não houve como salvar o almoço. Foi um fracasso.
O dia em que quase conheci Fidel Castro
Pois é, em 1984, uma amiga brasileira que também vivia no Equador e eu nos inscrevemos para participar de uma excursão do Clube Photo, da Aliança Francesa, de Quito, do qual ela participava, e lá fomos nós para um congresso internacional de fotografia em Havana.
Na época, o Brasil ainda não havia retomado as relações diplomáticas com Cuba, cortadas por imposição dos Estados Unidos na época do Bloqueio Econômico, e, como minha amiga era casada com um diplomata brasileiro e eu trabalhava na Embaixada do Brasil no Equador, nossa viagem foi meio secreta, o que só contribuiu para lhe dar mais sabor.
Nosso primeiro voo foi para o Panamá, o paraíso dos consumidores frenéticos, entre os quais jamais me inclui, e, dali, embarcamos, em outro, para Havana, onde já sabíamos que era possível pedir que os vistos de entrada e de saída fossem concedidos à parte, e não no passaporte, para que não tivéssemos problemas na volta.
Eu estava animadíssima. Depois de décadas ouvindo e lendo informações totalmente divergentes a respeito da Revolução Cubana, ia, finalmente, poder tirar minhas próprias conclusões a respeito, mas isto é assunto para outra coluna.
O que quero contar, aqui, é sobre o dia em que deixei de conhecer Fidel Castro. Pois é, em uma das nossas fugidas do guia da Cubatur colocado à disposição do grupo, minha amiga e eu fomos parar na praia de Varadero, onde ficamos até o dia seguinte.
Quando voltamos ao tal congresso, soubemos que, na véspera, Fidel havia aparecido de surpresa por lá, como fazia, por questões de segurança, em todos os eventos que ocorriam no Palácio de Convenções de Havana.
Algumas colegas de viagem nos relataram o impacto que ele tinha causado sobre a plateia: "Imaginem vocês que estávamos aqui, tranquilos, e, de repente, entra Fidel, flutuando sobre nuvens…".
Em 12 de agosto de 1988, tive, afinal, a oportunidade de vê-lo de perto. Foi na festa de aniversário que lhe ofereceu o pintor equatoriano Osvaldo Guayasamín quando ele esteve em Quito para participar da posse do presidente Rodrigo Borja.
Era, realmente, uma figura imponente, com seu 1,90m de altura, sua farda verde e aquele vozeirão que ecoava pela casa, chamando a atenção de todos. E, como de praxe, fez um discurso interminável, recheado de tiradas humorísticas, que alguns convidados adoraram e muitos abominaram.
Foi assim — como direi? —, um discurso para acabar com a harmonia de qualquer festa.