Recomendamos o artigo do advogado Luiz Carlos da Rocha, publicado no Consultor Jurídico, O ConJur
A força de uma ideia pode ser medida pela fragilidade das objeções conceituais e principiológicas que se levantam contra ela e, via de consequência, pelo desmascaramento dos interesses reais dos seus adversários. Por outro lado, uma ideia que ganhe força à medida em que é submetida à crítica no espaço público mostra ter raízes mais profundas que meras conveniências de conjuntura.
É que acontece com a ideia do presidente da República de indicar ao Senado a recondução do procurador-geral da República.
O regramento constitucional é claro ao prever a recondução:
“Compete privativamente ao presidente da República nomear, após aprovação pelo Senado Federal, o Procurador-Geral da República (artigo 84, XIV, CF)”
“O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução.” (artigo 128, § 1º)
A primeira questão que salta aos olhos na tentativa de interesses localizados de impor veto à recondução do atual procurador-geral é de natureza lógico-formal. Na defesa do veto à recondução, perfilham-se alguns dos que se opõem também à lista tríplice da corporação (Associação Nacional dos Procuradores da República), que o fazem sob o argumento de que a lista representa uma restrição indevida à liberdade constitucionalmente assegurada de escolha pelo presidente, a ele conferida pela soberania popular.
Todavia, contraditoriamente, pregam veto a Aras e, com isso, pretendem limitar o exercício da mesma prerrogativa presidencial que dizem defender. É uma contradição afirmar-se que o titular máximo do exercício da soberania popular é livre para escolher qualquer um desde que não seja Augusto Aras. O presidente não pode ser livre a meias. É livre para indicar à aprovação do Senado qualquer cidadão que preencha os requisitos constitucionais, inclusive o atual procurador-geral.
Um segundo aspecto, este já de conteúdo, é que o arsenal de argumentos utilizados para vetar a recondução, que era supostamente imenso e estridente, esvaiu-se com o tempo, obrigando os defensores do veto a aferrarem-se a um suposto “bolsonarismo” do procurador-geral.
Esse recuo dos defensores do veto a Aras, que se lançam agora sôfregos a “bolsonarizá-lo”, vem do reconhecimento entre os juristas e políticos da coragem e espírito público que o procurador-geral demonstrou ao desarticular o esquema perverso da “lava jato”. Há poucos dias, quando lhe perguntaram a respeito do assunto, Lula foi claro: “Depois com essa quadrilha que esse Dallagnol montou, eu perdi muita confiança [no MP]. É um bando de aloprados que achavam que podiam tomar o poder. Estavam atacando todo mundo ao mesmo tempo. Eles fizeram a sociedade refém durante muito tempo.”
Antes de analisarmos o argumento do “bolsonarismo” do procurador-geral, fixemo-nos no fato de que a posição do futuro indicado perante a “lava jato” será ponto central na definição do presidente Lula. Logo, um veto a Aras somente poderia ser objeto de séria consideração se demonstrado que a sua recondução favoreceria o retorno do ainda insepulto lavajatismo.
Mas, ao revés, a recondução de Aras não representa qualquer risco neste sentido, antes pelo contrário. Daí que não é razoável nem justo que se pretenda impor veto à recondução do procurador-geral que — para atender ao comando do artigo 127 da Constituição, que comete ao Ministério Público defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos individuais e sociais indisponíveis — confrontou e desmontou o esquema lavajatista.
Diante disso, a última cartada do lavajatismo é “bolsonarizar” o procurador-geral, embora seja público e notório que Aras não tenha nenhuma ligação orgânica com o bolsonarismo e venha de uma família de longa tradição de esquerda na Bahia, razão pela qual boa parte do PT nacional e a totalidade do PT baiano, Jaques Wagner e Rui Costa à frente, defendam abertamente sua recondução.
Viveu a política pela mão de seu pai, Roque Aras, falecido recentemente, aos 90 anos. Roque Aras foi uma das lideranças políticas de luta contra a ditadura na Bahia, tendo sido vereador, deputado estadual e deputado federal pelo MDB, na linha combativa do lendário Francisco Pinto, partido do qual foi presidente do diretório estadual. Com o fim do bipartidarismo, filiou-se ao PDT seguindo a liderança de Leonel Brizola. Depois filiou-se ao PT, tendo sido candidato a senador em 1986 pelo partido.
Daí que não é contra um imaginário “bolsonarismo” de Aras que o esquema midiático do lavajatismo move céus e terra, mas por sua própria sobrevivência. Não nos enganemos. A restauração republicana do Ministério Público iniciada pelo atual procurador-geral está inconclusa e reserva ainda capítulos dramáticos. O próximo procurador-geral precisará a mesma determinação e desassombro que Augusto Aras provou ter na desarticulação do esquema que se iniciou na chamada República de Curitiba, se estendeu para o Rio de Janeiro e hoje contamina amplos setores do MP, das polícias e do Judiciário.
Como observou com tino analítico e prospectivo Luis Costa Lima, no Brasil 247: “O Exército mercenário confronta-se com o Estado democrático de Direito como sua Corte Marcial e ao próximo procurador-geral, ou a um Augusto Aras fortalecido pela recondução, caberá executar as sentenças.”
Um terceiro aspecto a ser observado é que a insistência em atribuir um suposto “bolsonarismo” ao procurador-geral cria um grave problema para o lavajatismo: para “bolsonarizar” Aras, a mídia lavajatista precisa lógica e inevitavelmente também “bolsonarizar” Lula. O lavajatismo não tem como escapar da armadilha argumentativa em que se meteu: ao repetir à exaustão que Aras protegeu Bolsonaro da responsabilização por ilícitos e que, por isso, sua recondução é inaceitável, está sugerindo que, ao considerar fortemente a hipótese reconduzir Aras, o que Lula quer é ser protegido das consequências legais por futuros malfeitos. É como se a recondução do procurador-geral representasse um Habeas Corpus preventivo para Lula. É a volta do grito de guerra lavajatista de “Lula ladrão”.
Ou seja, para convencer Lula a não reconduzir Aras, a mídia lavajatista chafurda — ainda que sob a forma de grotescos e covardes sussurros — na perfídia que levou Lula à prisão: o “Lula ladrão” sepultado pela Justiça e pela História. Se não reconduzisse o procurador-geral por temor dessa covarde insinuação, Lula estaria dando razão aos que lhe acusam de querer um procurador-geral para chamar de seu.
Tendo sofrido a dor e a indignação da prisão injusta, engana-se quem pense que Lula se ajoelhará diante do verdugo lavajatista ainda insepulto que quer lhe retirar a prerrogativa de indicar à aprovação do Senado um procurador-geral independente e capaz de enfrentar campanhas de uma mídia (mal) acostumada a pautar as autoridades.
Aras desce ao play
A campanha de “bolsonarização” de Aras, pedra de toque da tentativa de opor veto à sua recondução, terá de se haver com os fatos. Na arte da guerra — e da política — mostra sabedoria o general que impõe ao inimigo o terreno onde se desenvolverá a batalha.
Ao invés de limitar-se a conversas de bastidores para defender o Ministério Público de acusações de desvio de sua missão constitucional na pandemia, o procurador-geral anuncia para breve um livro sobre o seu legado no esforço nacional de luta contra a Covid. Demonstrando coragem política e segurança sobre o valor de sua obra, Augusto Aras convoca os seus oponentes para o debate à luz do dia. Tal iniciativa, convenhamos, não condiz com a imagem de um soturno e temeroso engavetador ou um ardiloso prevaricador.
Com o lançamento do livro, o PGR oferece à sociedade a possibilidade de promover o cotejo entre a acusação genérica de que “se omitiu na pandemia” e “protegeu Bolsonaro” e a intensa atividade extrajudicial e judicial perante o Supremo Tribunal Federal para que governadores e prefeitos pudessem atuar na defesa dos interesses das suas populações durante a pandemia.
Outra contradição evidente é que os setores que clamam a Lula que não reconduza o procurador-geral por seu suposto “bolsonarismo” não se opõem a que o presidente forme sua base com os partidos e grupos políticos que no Congresso “protegeram” Bolsonaro mesmo quando este levava à frente suas políticas negacionistas. Sem tais forças, com as quais Lula acertadamente pactua alianças de governabilidade, Bolsonaro não teria terminado o seu mandato. Seria cansativo enumerar aqui as dezenas de pedidos de impeachment do ex-presidente por sua atuação na pandemia e que não foram processados pelo presidente da Câmara dos Deputados:
1.1. Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (artigo 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia. (ADPF 378 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-043 DIVULG 07-03-2016 PUBLIC 08-03-2016)
Assim, o Congresso considerou que não havia fundamentos políticos para o impeachment do ex–presidente por sua condução das políticas de combate à pandemia. Ao procurador-geral da República somente cabia abrir investigações e movimentar a persecução penal contra o ex-presidente em caso de cometimento de atos que atentassem contra a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses individuais e sociais indisponíveis (artigo 127 da CF). O juízo político não é atribuição do procurador-geral da República. Não existe lavajatismo “do bem”.
Logo, do ponto de vista da estabilidade institucional e dos interesses maiores da República, o presidente precisa do Congresso para a governabilidade e o país precisa de um procurador-geral que não permita que o Ministério Público desborde de sua missão constitucional, claramente fixada no artigo 127 da Constituição. Uma vez que o atual procurador-geral atende a esse requisito constitucional e político, qualquer objeção lavajatista ao seu nome (ainda que sob a máscara hipócrita de veto “antibolsonarista”) é impertinente.
Dias após o presidente dizer que escolherá um procurador-geral que “não faça denúncia falsa” e que seja “o melhor para o Brasil”, o procurador-geral da República, como que fazendo coro, disse na abertura dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal, em 1º de agosto, que a PGR tem “submissão só às leis” e que atua com “respeito às instituições”, “para um ambiente de estabilidade nacional”. E para que o seu legado na pandemia confirme tal profissão de fé, o procurador-geral da República lança livro com exposição detalhada de sua atuação na luta contra a Covid.
Alea jacta est, pois. Lula observará atentamente o confronto de ideias e fatos entre a mídia lavajatista e o procurador-geral. Do intrépido movimento de Aras, resultará, de duas, uma: ou ficará confirmado que ele foi um engavetador bolsonarista e Lula não deve indicá-lo à recondução ou se revelará que ele é o procurador-geral que, como quer Lula, não faz “denúncia falsa” (daí o arquivamento de inúmeras denúncias apressadas e sem fundamento contra o ex-presidente Bolsonaro), sendo, por isso, “o melhor para o Brasil”.
É preciso que os democratas compreendam que não será possível um combate seguro contra o bolsonarismo com o lavajatismo à espreita. A tarefa central do futuro imediato no âmbito do Ministério Público é a erradicação das práticas punitivistas do lavajatismo, de modo que a criminalização da política não retorne jamais. Diante da grandeza estratégica do que está em jogo, ao presidente Lula tem que ter respeitada a mais ampla liberdade de escolha, inclusive reconduzir o procurador-geral sem ser acusado da infâmia lavajatista de que pretende um Ministério Público domesticado.