Anúncio de Francisco não rompe com postura da Igreja Católica sobre a interrupção da gravidez, mas abre possibilidade para o acolhimento. O Seguinte: reproduz a reportagem da Carta Capital
– Para que nenhum obstáculo exista entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a todos os sacerdotes a faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto – declarou Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, por meio da carta apostólica Misericordia et Misera.
A possibilidade de absolvição sinalizada pelo pontífice jesuíta alcança mulheres e profissionais da saúde que por ventura tenham alguma participação na interrupção de uma gravidez, após a confissão.
Antes desse gesto, o aborto só poderia ser perdoado com a anuência de uma autoridade maior, um bispo, por exemplo. A janela do perdão havia sido aberta, de forma provisória, em setembro de 2015, por ocasião do Jubileu da Misericórdia, mas agora é permanente.
A decisão do papa foi vista como um alento progressista em meio ao turbilhão conservador de 2016. Não se trata, porém, de uma ruptura com a tradicional postura católica, que considera o momento da concepção como início da vida humana e condena até mesmo o uso de métodos contraceptivos.
No mesmo documento em que propõe o perdão, Francisco diz de forma clara:
– Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente.
Antes de assumir o mais alto posto da hierarquia eclesiástica, Bergoglio posicionava-se duramente contra a interrupção da gravidez.
Em setembro de 2012, o então arcebispo de Buenos Aires criticou uma sentença da Suprema Corte argentina que autorizou abortos decorrentes de estupro, após analisar o caso de uma menina de 15 anos violentada pelo padrasto.
– Uma legislação que não protege a vida favorece uma ‘cultura da morte’ – afirmou à época.
Para Rosângela Talib, uma das coordenadoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, o gesto não muda a postura conservadora da Igreja sobre os direitos reprodutivos da mulher, mas demonstra uma abertura para as mulheres católicas, em especial, encontrarem acolhimento espiritual.
– Esse gesto faz uma diferença significativa no imaginário das mulheres católicas, porque alivia a culpa delas – diz a psicóloga.
– A abertura é o que se espera da Igreja, acolhimento e perdão. Mas, quando dizemos ‘perdoar’, está implícito que é errado.
Com ou sem perdão, o aborto é uma realidade no Brasil. Segundo uma pesquisa nacional desenvolvida pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), uma em cada cinco brasileiras realizou ao menos um aborto antes de completar 40 anos.
– A interdição religiosa e legal do aborto não faz diferença, pois o número de abortamentos continua estável no País. É uma proibição inócua (da Igreja), que não muda o comportamento – diz Talib.
As visões institucionais do catolicismo a respeito do tema flutuaram ao longo da História.
– A Igreja envolveu suas declarações sobre o aborto com uma aura de infalibilidade, apesar de ela mesma, na realidade, não argumentar infalivelmente sobre o assunto – observa a professora do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Virgínia, Jane Hurst, no livro Uma História Não Contada – A história das ideias sobre o aborto na Igreja Católica, no qual discorre sobre os diferentes tratamentos que a interrupção da gravidez recebeu na doutrina católica.
No século V, Santo Agostinho avaliou que o aborto não deveria ser “considerado homicídio, pois não se pode dizer que existe uma alma viva em um corpo que carece de sensações”. No século XIII, Santo Tomás de Aquino reafirmou que o embrião não é um ser humano antes dos 40 dias de vida. O Concílio de Trento, 300 anos depois, cristalizou essa ideia na doutrina oficial.
Foi muito contestada, porém, por teólogos que defendiam a existência desde a fecundação. Essa tese acabou por prevalecer. A primeira orientação explícita do papado sobre a interrupção da gravidez aconteceu em 1869, quando Pio IX recomendou a excomunhão para o aborto praticado em qualquer circunstância.
Segundo a coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir, a Igreja precisa repensar a questão do uso de contraceptivos e da interrupção da gravidez. Em nações como o Brasil, os abortos inseguros vitimam, sobretudo, as mulheres negras de classes mais baixas.
– Enquanto a Igreja não discutir essas questões, continuamos nesse vazio.
A discussão e as divergências sobre o aborto em 2016 não se restringiram ao Vaticano. Em outubro, milhares de polonesas vestidas de preto realizaram protestos massivos contra um projeto de lei que proibia totalmente o aborto no país, atualmente governada pelo conservador Partido da Lei e Justiça.
Uma das nações mais católicos do mundo, 87% da população, a Polônia tem uma das mais restritas legislações da Europa sobre o tema. Atualmente, só é permitido em casos como estupro, incesto, se a vida da mulher estiver em risco por causa da gravidez ou, ainda, por malformação do feto. A pressão popular levou à rejeição do projeto pelo Parlamento.
Nos Estados Unidos, a eleição do republicano Donald Trump, com apoio de grupos religiosos, também acendeu o sinal amarelo para mulheres e organizações feministas. Além de se posicionar ambiguamente sobre o tema ao longo da campanha, seu vice-presidente, Mike Pence, é um ferrenho opositor da interrupção da gravidez.
Em debates com a democrata Hillary Clinton, o bilionário comprometeu-se a nomear juízes contrários ao aborto para a Suprema Corte. À rede CBS, Trump afirmou que, caso haja revogação da lei, o veredicto caberá a cada estado.
Sinal dos tempos. Nessa quadra da história universal, o pequeno ajuste do discurso papal até pode soar progressista.