JEANE BORDIGNON

Abortos e abutres

Uma menina de 11 anos sofre violência sexual, como consequência engravida. E na busca pelo aborto, legal nessa circunstância, sofre segunda violência de uma juíza que a pressiona sobre manter a gestação e a falar sobre o suposto “pai” (a despeito dos riscos físicos e psicológicos de uma gravidez tão precoce).

Uma jovem de 21 anos sofre violência sexual, como consequência engravida. Descobre a gestação já no final, e decide entregar o bebê para adoção. No hospital, ainda lidando com a dor de parir o fruto de estupro, sofre segunda violência dos profissionais de saúde que a ridicularizam e julgam, além de vazar a informação para um colunista de fofoca. E quando ela pensava que poderia seguir em frente, sofre mais uma violência, de “comunicadores” que expuseram sua história e julgaram sua decisão de não ficar com o bebê.

Abutres são aves que se alimentam de animais mortos, de carniça… a palavra também é usada para se referir a pessoas que se alimentam da desgraça alheia, como a juíza, a enfermeira, o pseudo-jornalista e a pseudo-atriz/blogueira que pisotearam nas dores da menina e da moça, já tão destroçadas pela violência sexual. Essa gente que gosta é de sangue e lágrimas, não de vida.

Se realmente defendessem a vida, iriam querer proteger a criança de apenas 11 anos que teve sua infância interrompida. E se alegrariam do bebê da jovem de 21 ter ido para um lar onde será muito amado. Há mulheres que optam por criar filhos nascidos de estupro, mas cada uma sabe seu limite.

Ser mulher é pesado, desgastante, doloroso. É não poder viver sua dor e resolver as consequências de um abuso sem um monte de dedos apontados, prontos para inverter o jogo e transformar a vítima em culpada. “Algo ela fez para provocar…”, sempre há uma língua maldosa para soltar o veneno.

Pior é quando o julgamento vem de outra mulher, como a juíza que quis convencer a menina a manter o bebê, ou a enfermeira que vazou sobre a adoção do outro. Essas duas realmente merecem sofrer as consequências dos seus atos… mas no fundo, acho que são alienadas a uma verdade em que acredito: toda mulher já passou por alguma situação de abuso ou assédio; quem acha que não passou, apenas ainda não reconheceu.

Pode levar anos para entender que a atitude de um namorado foi abuso. Até porque somos ensinadas a normalizar muitas coisas dentro de uma cultura patriarcal e machista. E a aceitar outras tantas, para sermos compreensivas e dóceis. Tem atitudes que levei quase 40 anos para entender que eram abusivas, e não vou mais tolerar de homem nenhum.

Num mundo ideal não haveria aborto nem bebês entregues para adoção. Também não haveria estupros nem homens que acham que nossos corpos estão a disposição deles. Por que tanta crítica e tanto julgamento em cima das mulheres, das vítimas, e tanto silêncio sobre os verdadeiros criminosos?

É tão cansativo ser mulher! Evitar roupas, evitar lugares, voltar mais cedo para casa, muitas vezes deixar de ir a evento que gostaria muito porque não se sente segura, ter receio até ao pegar um ônibus… Exagero? Tem homens que se masturbam dentro dos transportes coletivos! É um mundo bem difícil de se viver.

A gente só quer viver em paz, poder viver nossa rotina sem estar em constante vigilância. É pedir muito? Ninguém tem direito sobre nossos corpos, nem sobre nossas vidas. Muito menos de julgar nossas escolhas, principalmente as mais dolorosas.

Ser mulher é ser resistência.

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