RAFAEL MARTINELLI

Aceitem o fato: Bolsonaro assina atentado; e tolice polarização-pacificação

Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo em seu artigo, Aceitem o fato: Bolsonaro assina atentado; e tolice polarização-pacificação. Sigamos no texto.

O ex-presidente Jair Bolsonaro resolveu assinar a obra do terrorista Francisco Wanderley Luiz. Anda ouvindo maus conselheiros, mas não serei eu a me apresentar para orientá-lo nos círculos do inferno. Já me basta combater essa estupidez da suposta “polarização”. Entre democratas e fascistas, é isso? Não por acaso, os fascistas passaram a falar em “pacificação”.

A reação do ex-presidente nas redes sociais aos eventos protagonizados por “Tiü França” impressiona pela parvoíce. Está perturbado. Viu ruir uma construção mental. Parece que tinha começado a acreditar na fantasia da anistia, desde sempre impossível.

Dados os eventos estarrecedores de quarta à noite, detalhados ao longo desta quinta, ele se sentiu compelido a dizer alguma coisa. Sua assessoria, então, resolveu elaborar uma versão reduzida do texto que assinou na Folha.

Ocorre que uma coisa era aquele artigo num ambiente de certa desmemória, como se a patuscada golpista de 8 de janeiro de 2023 tivesse se perdido nas dobras do tempo; outra, bem distinta, é lê-lo à luz do atentado. A prudência recomendaria que ficasse em silêncio. Mas, alçado a pensador, houve por bem se embrenhar na mata, para ele sempre escura, da reflexão.

Produziu, então, o que segue em negrito, na pontuação original, com comentários meus em sempre abaixo.

Pela pacificação

Lamento e repudio todo e qualquer ato de violência, a exemplo do triste episódio de ontem na Praça dos Três Poderes.

Quem não lamentaria, não é? Sendo impossível a hipótese do aplauso, dispensa-se a lamúria formal e obsequiosa. Adiante.

Apesar de configurar um fato isolado, e ao que tudo indica causado por perturbações na saúde mental da pessoa que, infelizmente, acabou falecendo, é um acontecimento que nos deve levar à reflexão.

Opa! Os atentos ao estilo sabem que é preciso tomar cuidado quando um período começa com uma oração adversativa: “apesar de configurar…” Trata-se, não raro, de uma tática diversionista. O que realmente interessa vem nas outras orações que com ela formam uma unidade: “é um acontecimento que nos deve levar à reflexão”. Huuummm… “Que nos deve levar”, é? Com essa anteposição do pronome? Seu “ghostwriter” tem alguma ambição de refinamento intelectual, embora possa ser um tanto imprudente.

Nas orações intercaladas, há a afirmação, sem que se conheça a fonte, de que “Tiü França” tinha os parafusos soltos. Quem disse? Só se for o trema no “Tiü”… Já cheguei a achar que ser bolsonarista era um sintoma. Eu estava errado. Não raro, é só um traço de caráter. O remédio é bem mais difícil.

Voltemos ao conjunto relevante: “Apesar de configurar um fato isolado, é um acontecimento que nos deve levar à reflexão”.

Não posso deixar de fazer a ressalva lógica: fosse mesmo um fato isolado, reflexão para quê? Melhor seria tomar um Chicabon. Se isolado é, não há por que fazer digressões sobre excepcionalidades, que nem servem para que se estabeleçam leis gerais.

Ocorre que o autor do texto — para todos os efeitos, Bolsonaro… — sabe que isolado não é. E só por isso ele se dispõe a refletir. E aí se explica aquela adversativa diversionista: quer preparar o nosso espírito. Já havia uma pista nas duas palavras iniciais, vazadas na forma de uma exortação: “pela pacificação”.

Vamos seguir com ele(s).

Já passou da hora de o Brasil voltar a cultivar um ambiente adequado para que as diferentes ideias possam se confrontar pacificamente, e que a força dos argumentos valha mais que o argumento da força. A defesa da democracia e da liberdade não será consequente enquanto não se restaurar no nosso país a possibilidade de diálogo entre todas as forças da nação.

Eita! Mas onde estava escondida essa pomba da paz, que nunca havia se manifestado nem no quartel — os registros sobre seu desempenho, feitos por seus superiores, eram péssimos — nem na vida pública?

Como é? Bolsonaro agora quer conviver com “ideias diferentes”, que se confrontem “pacificamente”? É isso o que fazem os seus esbirros no Congresso? Quando seus bate-paus na CCJ da Câmara levam adiante a pauta anti-Supremo — escandalosamente inconstitucional, note-se —, não me digam que estão em busca de um diálogo institucional maiúsculo…

O golpista que nos convidou a aceitar a democracia no artigo da Folha se sai agora com a máxima da “força do argumento contra o argumento da força”.

Leiam com atenção. Bolsonaro nos convoca à reflexão, certo? Se ele diz que “é hora de voltar a cultivar” um ambiente de diálogo entre pessoas que divergem, está a dizer que tal ambiente hoje não existe. Se é ele a fazer a exortação “pela pacificação”, os recalcitrantes seriam seus adversários. Como está fora do poder há apenas um ano e dez meses, haveríamos de supor que, na Presidência da República, fez-se notável pelo diálogo e pela tolerância. Acho que vocês me dispensam de demonstrar o contrário. O que aberra não exemplifica.

Vamos lá. O homem fala em “diálogo”, em “pacificação”. Entre quem e quem? A mediação entre democratas e golpistas é feita pelo sistema de Justiça. E os primeiros recorrem aos instrumentos legais para mandar os outros para a cadeia.

Ocorre que Bolsonaro quer a anistia para os protagonistas do 8 de janeiro de 2023 e para si mesmo. Trata os criminosos como vítimas do STF, que teriam caído numa “armadilha da esquerda”. Assim, os verdadeiros responsáveis por aquele desatino seriam seus adversários. Se notarem, a operação mental de agora é a mesma: “Tiü França” — embora protagonista de fato isolado e, segundo ele, meio maluco — também seria vítima, ora vejam!, de seus adversários.

Cumpre observar que fala em “voltar a cultivar um ambiente adequado”. Então já teria existido. Adivinhem quando… Adiante.

E as instituições têm um papel fundamental na construção desse diálogo e desse ambiente de união. Por isso, apelo a todas as correntes políticas e aos líderes das instituições nacionais para que, neste momento de tragédia, deem os passos necessários para avançar na pacificação nacional. Quem vai ganhar com isso não será um ou outro partido, líder ou facção política. Vai ser o Brasil”.

Quem diria! Bolsonaro, o pacificador! E o que devemos fazer para isso? Ora, promover a impunidade dos criminosos. Este senhor está a nos dizer: “Se vocês não se entenderem comigo e não me livrarem das penas decorrentes dos meus crimes, será assim; sempre existirão os Franciscos Wanderleys. A condição para que não existam é que vocês garantam a impunidade a mim e aos meus”.

Um ser lógico poderia responder: “Ei, Bolsonaro, nem você nem seus sequazes nasceram atrelados às penas; elas derivaram dos crimes que vocês cometeram; assim, é falso que a violência deriva da Justiça; ao contrário, ela certamente recrudesceria se houvesse impunidade”.

A “pacificação” é a solução bastarda para uma impostura chamada “polarização”. O senador Ciro Nogueira (PP-PI), que nem se deu ao trabalho de lamentar o atentado terrorista, saiu-se com esta:

“A polarização que existe e segue aumentando no Brasil em nada contribui para solução dos problemas reais da população. E seus efeitos se mostram ameaçadores. Ao invés de atribuir culpa de parte a parte, faríamos bem em reduzir a temperatura do debate político, trazendo de volta o diálogo como regra básica”.

Ah, entendi… Como a culpa seria da “polarização”, então a solução só pode vir com a “pacificação”. Mas esperem: é preciso que se diga quem polariza com que se saiba quem se pacifica com quem, certo?

Nem Lula nem seu governo são de extrema-esquerda. Tampouco o são os ministros do Supremo. Mas sabemos onde está a extrema-direita, conhecemos os crimes que cometeu e temos todas as evidências dos atos golpistas que praticou.

Se essa extrema-direita golpista é um dos polos, o outro são os democratas? Uma pax entre esses lados compreenderia o quê? A conversão dos fascistoides à democracia ou a submissão dos democratas aos facistoides?

Se Ciro Nogueira põe “Tiü França” na conta da polarização e se é ele a apontar o mal, supõe-se que se exclua, então, da causa geradora de desatinos e esteja a dizer aos adversários: “Enquanto vocês continuarem assim, essas coisas vão acontecer…”

Mas “assim” como? São os adversários de Ciro que escolhem os extemos? Acho que não. Seu partido é titular de um ministério no governo do centrista Lula. Tenha, quando menos, mais pudor analítico, senador!

Encerro.

O país vai se pacificar quando todos os que resolveram empreender uma guerra contra as instituições pagarem por seus crimes.

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