RAFAEL MARTINELLI

Advogado pede que MP analise constitucionalidade de lei que proíbe carroças em Gravataí; Por que a involução não deve prosperar

Advogado de Gravataí protocolou na Procuradoria Geral de Justiça do Ministério Público um pedido de declaração de inconstitucionalidade da lei que proíbe carroças no município, válida desde 2021.

Rene Saldanha usa como base a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 70024563785, na qual o Tribunal de Justiça gaúcho considerou “procedente em parte, por maioria”, em 2008, artigos de legislação sobre uso de veículos de tração animal aprovada em Erechim.

Lendo o acórdão, salvo melhor – ou pior – juízo, reputo a lei gravataiense não guarda motivos robustos para declaração de ilegalidade.

Há um senão, talvez.

Antes de explicar, vamos às informações.

Rene Saldanha é o advogado que fez as denúncias não comprovadas que analisei em É fake news que cavalos retirados de carroceiros de Gravataí são abandonados em ‘cemitério de animais’.

Como de regra, o gabinete do procurador Alexandre Saltz instaurou o expediente PGE 00001.000.469/2024.

No e-mail enviado ao chefe do MP, o advogado solicita agenda “para levar a conhecimento do Dr. Procurador Geral de Justiça a ‘Lei Tubiana’ em vigor na cidade de Gravataí da qual gera diversos prejuízos e transtornos no sentido de proibir a mera circulação das carroças bem como a aplicação da pena automática de perdimento do animal em consoante ao guinchamento de todo equipamento do carroceiro”.

“Todavia, em análise as decisões análogas, verifiquei o caso de Gravataí é deveras semelhante a Lei que fora declarada inconstitucional na cidade de Erechim”, conclui Saldanha, no documento compartilhado com o Seguinte:, no qual anexa as leis dos dois municípios e a decisão do TJ proferida em 29 de setembro de 2008.

Vamos à análise.

Por que considero que a lei de Gravataí resta mais protegida do que ameaçada pela decisão?

O questionamento central da Adin foi sobre a legitimidade de municípios legislarem sobre o tema. No julgamento, a constitucionalidade restou reconhecida pelos desembargadores.

A decisão parcial na Adin se deveu à lei de Erechim prever a apreensão de carroças e animais sem possibilidade de devolução aos proprietários, o que foi considerado inconstitucional por configurar “confisco”.

Foram declarados ilegais artigos que usaram as expressões “em hipótese alguma devolvido ao proprietário” e “em hipótese alguma retornarão ao seu proprietário”, relativos tanto às carroças, quanto aos animais.

Essa proibição expressa não consta na lei gravataiense, que você acessa clicando aqui.

No caso das carroças, há regramento especificado e prazo de até 90 dias para o proprietário reaver o equipamento.

Já sobre os animais, ao prever a figura do ‘fiel depositário’, a quem é concedida a guarda transitória, parece-me lógico de que a lei de Gravataí permite o entendimento de que o tutor do cavalo apreendido poderá requerer a devolução – enfrentando, por obvio, o devido processo legal em casos de suspeita de maus tratos.

(As práticas cruéis perpetradas contra animais são vedadas, no Brasil, conforme o artigo 228, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição Federal, que estabelece a proteção destes seres como uma responsabilidade concomitante entre os entes municipais, estaduais e federais).

Mas, talvez reste aí, na falta de regramento expresso sobre a devolução dos animais, o único vácuo para um questionamento judicial.

Fato é que a Lei Tubiana (4.329/2021) reduziu em 90% os casos de cavalos recolhidos com exaustão ou lesões. Desde a sanção da lei, 70 animais já foram recolhidos das ruas, do trabalho forçado e da falta de cuidados.

Ao fim, por esclarecedor, reproduzo o voto do desembargador Vasco Della Giustina, seguido em 29 de setembro de 2008 pela maioria dos desembargadores no julgamento da Adin, e, portanto, redator para o acórdão.

Difícil involuirmos 16 anos depois.

“(…)

Há que se distinguir nas leis sobre circulação de veículos, os serviços de transporte e o trânsito (ou tráfego) dos veículos.

Por evidente a competência para ditar normas gerais sobre trânsito ou tráfego (direito de trânsito), – como as do Código Nacional de Trânsito ou resoluções do Contram, – pertence à União(art. 22, XI da CF).

Apesar da competência federal, o próprio Código de Trânsito confere algumas competências normativas aos municípios, como registro e licenciamento de veículos de propulsão humana, de tração animal…

A matéria “sub judice” já foi enfrentada na ADIN nº70019809953, Relator o eminente Des.Luiz Ari Azambuja Ramos.

Porém, naquele processo havia o vício de iniciativa, o que inocorre nos presentes autos.

Não me furto, todavia, de registrar o parecer ministerial no processo acima referido, que vai, segundo se me afigura, ao encontro do posicionamento esposado no voto do eminente Relator, ao qual, neste ponto, adiro:

 “Não obstante isso, não haveria razão alguma para conferir aos municípios atribuição para regulamentar o registro, o licenciamento e a autorização para conduzir veículos de tração animal, se não se pudessem exigir, em nível municipal, certas características a esses carros, de modo a adequá-los às condições de trânsito locais. Exigência de número máximo de rodas e de pneus, por exemplo, tem a ver diretamente com a fluência do tráfego e com a proteção do revestimento viário.

“Aliás, nesse sentido, não há como deixar de concordar com Arnaldo Rizzardo acerca da ampliação das atribuições municipais em matéria de trânsito propiciada pelo novo CTB (em ‘Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro”, RT, 1998, págs. 129-130). Especificamente sobre o tema em debate, o autor observa (op. cit., págs. 384 e 414):

“(…) Aduz-se que ao Município se atribuiu competência não para permitir ou impedir a circulação dos veículos de propulsão humana, de tração animal e de ciclomotores. Incumbe ao mesmo regulamentar a circulação, e inclusive quanto ao registro de tais veículos e à licença para os mesmos trafegarem.

“(…) A circulação não pode ser proibida, mas disciplinada, com a imposição de normas sobre o tráfego, indicando as vias ou zonas permitidas, os horários e outras regras. Permite-se, outrossim, para a autorização, impor um procedimento, com a realização de testes e a vistoria dos veículos e animais.

“A fiscalização competirá aos funcionários municipais, aplicando as penalidades previstas em leis municipais. Nada impede que se forneça uma licença especial, renovável a cada ano, que será afixada no veículo.

“É de subscrever-se, em linhas gerais, a lição transcrita, com exceção da possibilidade de o município fixar infrações e sanções, pois isso já restou regulado pelo Código de Trânsito Brasileiro. A infração prevista no art. 230, V, do CTB (“conduzir o veículo que não esteja registrado e devidamente licenciado’), por exemplo, pode ter aplicação aos veículos de tração animal. A Resolução n° 13/98 definiu a autorização como documento de porte obrigatório pelo condutor do veículo. Assim, a infração definida no art. 232 do CTB (“conduzir o veículo sem os documentos de porte obrigatório referidos neste Código”) também poderá vir a ser cometida por condutores de charretes e carroças pois nada impede que o CONTRAN normatize esse assunto (art. 161). É impertinente ao deslinde do presente feito a discussão acerca da possibilidade jurídica de, por resolução, criarem-se ou ampliarem-se infrações administrativas (ver Arnaldo Rizzardo, op. cit., págs. 465/466).

“O cerne da questão, portanto, reside na delimitação do poder conferido aos municípios pela Lei Federal n° 9.503/97, bem como na sua compatibilização com as normas da Lei Maior, pois é evidente que lei infraconstitucional não pode atribuir competência legislativa em desacordo com o fixado na Constituição.

“Pois bem. Se a Constituição Federal dispõe que compete à União, privativamente, legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, Xl), permitindo que lei complementar autorize os Estados-membros a regrar essa matéria (art. 22, parágrafo único), poderia o CTB ter conferido aos Municípios competência normativa acerca de registro, licenciamento e autorização para conduzir veículos de tração animal? Certamente, o legislador entendeu ser esse um assunto de interesse eminentemente local. E, de fato, assim parece ser: não há dúvida de que a realidade, no que pertine à circulação de carroças e charretes, é flagrantemente diferente em uma pequena localidade do que em um grande centro urbano. Em todos os lugares, os veículos automotores predominam, mas existem ainda municípios em que os carros de tração animal têm considerável importância. Dai competir aos municípios, de acordo com sua dimensão e atendidas as demais particularidades locais, normatizar o assunto.

“É de todo razoável a interpretação do CTB no sentido de fixar como de interesse local dos municípios o regramento do registro, do licenciamento e da autorização para conduzir veículos de tração animal. Riscos existem de transtornos que podem advir de uma regulamentação localizada acerca da matéria. Basta imaginar duas pequenas comunas de base agrária, próximas uma da outra, mas com legislação diversa no aspecto de que ora se cuida: um cidadão que regularmente trafegue com sua carroça em uma cidade poderá ver-se impedido de circular na outra. Entretanto, a reduzida significação de tais veículos em âmbitos mais largos justifica a decisão do legislador, a qual, por isso, deve ser tida como conforme à Constituição.

“O critério do interesse local, inevitavelmente, tem de ser apurado casuisticamente, havendo a possibilidade de surgimento de situações de impasse.”

O trânsito, com ou sem fim de transporte, de veículo de tração animal, em grandes centros ou em grandes cidades, evidentemente está na contramão do progresso, sendo que o zoneamento de tal circulação atende ao espírito da Lei e ao bom-senso.

Em síntese, adiro a este pronunciamento do Relator.

Entendo que pode o Município zonear o trânsito de veículos de tração animal, justamente dentro da competência de regular matéria de seu específico interesse.

No caso dos autos, é verdade, o que se veda é o trânsito com fins de transporte. Ou seja, sequer o trânsito é proibido. Sê-lo-á, se o for com vistas a transporte ou trabalho no perímetro urbano.

Logo, se o Município pode o mais, isto é , circunscrever o trânsito de veículos em determinadas áreas, atendendo o bem comum, “a fortiori”, pode o menos, isto é, vedar o trânsito com fins de transporte.

Isto sempre atento ao princípio da razoabilidade.

Não há como negar que Erechim é um dos maiores, mais progressitas e mais importantes municípios do Estado. Todavia, alguns artigos da lei ora “sub judice”, penso, se apresentam inconstitucionais.

Refiro-me ao parágrafo único do art. 2º, ao art. 3º  e ao parágrafo único do art. 7º, pois, pela sua natureza de  confisco e apropriação indébita,  se apresentam inconstitucionais, face às prescrições dos arts.  5º, XXII e art. 170, II , todos da Carta Federal..

Já o art. 10, por igual, peca pela invalidade, pois, cria norma de isenção de responsabilidade para o município, à margem da lei e dos arts.  43 e 186 do Código  Civil.

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