Lembro que era dezembro. Uma noite quente, daquelas que convida a ir para a rua, principalmente quando você mora perto da Lapa, que naquele tempo ainda era o território da boemia carioca.
O que não recordo é se alguém me convidou ou o Facebook me sugeriu o evento, mas fiquei sabendo de um sarau que aconteceria na calçada em frente a Sala Cecília Meirelles. Sarau Ameopoema. Só por esse nome, já gostei.
Quando me aproximei do grupinho reunido na calçada, o Rômulo já foi me entregando um livro: “Ó, escolhe um poema aí pra ler”. Assim, sem nem um oi antes. Olhei a capa: Bukowski. Nunca tinha lido nada desse autor, e abri o livro aleatoriamente, como quem abre um oráculo. Meus olhos se depararam com o poema “Devorado por borboletas”.
Quem me conhece sabe o quanto amo borboletas, me identifico com elas. “É um sinal”, pensei. Empunhei o livro e li aquele poema com vontade. Quando terminei, um rapaz me aborda: “O livro é meu, mas pode continuar lendo, foi muito boa tua leitura”. Era o Conrado. Sabe aquelas pessoas de quem você se sente amigo assim que conhece? Conrado é desses.
Só sei que continuamos conversando, também troquei umas ideias com o Rômulo e o Nelsinho (figura queridíssima e emblemática da poesia de rua carioca). Naquela noite voltei pra casa com o livro do Bukowski na mochila, emprestado pelo Conrado. E com Ameopoema no coração. Dali em diante, essa “gangue poética” não sairia mais da minha vida.
Mas a história do Ameopoema começou uns anos antes de eu chegar no Rio. Mais precisamente quando o Rômulo fez uma aventura parecida com a minha e deixou Ouro Preto (MG) para se perder na cidade “da beleza e do caos”. É melhor deixar que o mineirinho mesmo conte:
“O fanzine AMEOPOEMA, que circula nacionalmente desde junho de 2010, nasceu de uma ida a BH para uma apresentação poética que estava programada dentro do evento Belô Poético. Na época eu estava lançando um livro e queria dar uns fanzines a quem o comprasse, nascia ali o AMEOPOEMA. Um material simples com 4 páginas com poemas e algumas divulgações. Ao retornar ao Rio, e após vários encontros com o pessoal que já vendia poesia nas ruas do Rio, foi-se firmando uma parceria legal, onde a galera sempre mandava seus textos, divulgava, trocava, fazia xerox do material e espalhava. Espalhou tanto que acabamos tendo ideia de fazer um sarau livre. O sarau teve como abrigo o Beco dos Barbeiros (centro do Rio) por cerca de dois anos, e sempre acontecia as primeiras terças de cada mês.”
Com o tempo, o sarau migrou para a Lapa, ora naquela calçada da Sala Cecília Meirelles, ora na Cinelândia, mais precisamente em frente ao Cine Odeon. Unindo pela poesia pessoas muito diferentes, mas com almas igualmente criativas e libertárias.
O fanzine foi ficando pequeno para tanta poesia, e Rômulo criou o Suplemento Acre, revista que sai a cada três meses, e também é construída de forma artesanal. Muita gente boa já publicou textos e desenhos na Acre. Tanto a revista quanto o fanzine seguem sendo editados de Ouro Preto, para onde meu amigo mineiro retornou, um pouco antes de eu também voltar para casa.
Mas quando ainda estávamos no Rio, o Rômulo e o Nelsinho começaram a articular uma grande mostra de fanzines, que teve chamada para envio de publicações de todo o país. Era a Mostra Grampo. Naquela onda colaborativa que guiava o Ameopoema, eles marcaram uma reunião na Praça Tiradentes, para quem quisesse colar junto na produção desse evento.
Nessa primeira reunião, só eu respondi o chamado. Então nós três, sentados numa mureta da Praça Tiradentes, começamos a desenhar o que seria a Mostra Grampo. É uma memória que guardo com carinho, ter feito parte dessa história.
Numa outra noite calorenta, nosso pedaço da Cinelândia foi ocupado com varal de zines, telão, microfone e muita poesia. Mesmo com todos os percalços, que incluíram uma caixa de som estourada e um pé quebrado, a Mostra Grampo aconteceu.
Também foram especiais as noites de Círculo de Leitura de Poemas na Rua, que embora tenha sido uma iniciativa do Conrado, reunia a gangue do Ameopoema para, com a maior naturalidade, sentar nas imediações do Museu do Amanhã, do Theatro Municipal ou da Praça XV e simplesmente ler poesia, trocar ideias…
Foi numa dessas noites que fizemos a foto acima, todos devidamente carimbados com a logo do Ameopoema. A tinta pode ter saído no banho, mas a energia daquele momento ficou marcada para sempre.
É difícil explicar o significado dos encontros do Ameopoema, mas descrevi um pouco numa poesia escrita um tempo atrás:
“Ah, você é poeta?
Já se embriagou de álcool e versos
fugindo dos chuviscos
sob as árvores da praça
iluminando as letras
com a luz dos postes
num estado de celebração
sem solenidades?
Já levou sua poesia
para as calçadas
misturando as palavras
ao barulho e à fumaça da ruas
e mesmo assim
voltando para casa
de alma lavada?”
E porque estou contando tudo isso? Porque o Rômulo está convidando outros poetas para fazer a curadoria do fanzine, e neste mês, me chamou para essa missão. Como eu sempre penso em divulgar minhas irmãs poetas, sugeri de imediato: “Podemos fazer essa edição só com as mulheres do Nós, as Poetas?”
Pois o mineiro me deu carta branca, e a proposta deu tão certo que gerou dois fanzines Ameopoema – Especial Nós, as Poetas! Meu coração se encheu de alegria ao ver dois coletivos que amo num mesmo projeto, e que ficou lindo demais.
Os zines estão nos links abaixo, para quem quiser ler, imprimir, espalhar no mundo:
https://www.slideshare.net/romulopherreira/fanzine-ameopoema-076-especial-ns-as-poetas-parte-01
https://www.slideshare.net/romulopherreira/fanzine-ameopoema-076-especial-ns-as-poetas-parte-02
Essa coluna também é pra convidar a todos para o lançamento do novo livro do Rômulo, Pôr do sol nas coisas, que ele está publicando com apoio Lei emergencial Aldir Blanc do estado de Minas Gerais. Chega lá no evento e contribua para fortalecer a poesia independente: https://www.facebook.com/events/438553857398404/
Poesia sempre!