Gravataí é um dos municípios que concentra o maior número de comunidades terapêuticas – especialmente as que se destinam à recuperação de pessoas viciadas no consumo de drogas, lícitas e principalmente as ilícitas – de todo o Brasil. Guardadas as proporções populacionais. Até o ano passado eram 17, segundo informações não oficiais. Agora, neste começo de 2020, são 16 estes centros de reabilitação.
Na semana passada, sexta-feira (24/1), a reportagem do Seguinte: foi conhecer a dura realidade da Comunidade Terapêutica Amor ao Próximo, que fica na RS-020, número 14.365, na localidade de Itacolomi e pouco antes da sede do distrito de Morungava. Fundada em 1º de Novembro de 2017, desde 13 de dezembro de 2018 funciona numa área de dois hectares cedida pela Igreja Batista Boa Notícia, de Porto Alegre.
É comandada pelo fundador e presidente, Thiago Bilhalva Linhares, casado e pai de oito filhos – das relações anteriores e com a atual esposa. É ele quem desfia o rosário de dificuldades pela falta de fontes regulares de recursos para uma despesa mensal que chega a algo em torno dos R$ 13 mil. É dinheiro para bancar energia, telefonia, técnicos e assessoramento, além de roupas de cama e, imprescindível, alimentação.
Poucas doações
No terreno, além da casa de Thiago e outra em que mora sua mãe, ficam as instalações da comunidade. A administração fica em uma peça que não tem mais do que uns três por quatro metros, totalmente à parte dos demais prédios. Em uma outra construção estão cozinha, refeitório, vestiário, banheiros e o dormitório dos acolhidos, que é como são chamados os internos em recuperação.
São quatro monitores, incluindo o próprio presidente Thiago Linhares.
— Hoje a gente (comunidade terapêutica) consegue sobreviver através de doações. As pessoas nos mandam muita roupa e alimentos. A nossa necessidade maior, mesmo, é recursos para pagar as contas — reforça Thiago.
Ele lembra que no ano passado os gastos foram maiores por conta da necessidade de pagar taxas para regularização de licenças em todos os órgãos da administração municipal, para que a comunidade pudesse funcionar sem correr riscos de interdição por parte da fiscalização, especialmente da Vigilância em Saúde.
Segundo ele, a situação financeira poderia ser menos difícil se um convênio assinado com a administração municipal, prevendo a compra de cinco vagas pela Prefeitura mediante um repasse mensal de R$ 5,5 mil, estivesse em vigor. Os órgãos do governo nunca indicaram pessoas para atendimento na comunidade Amor ao Próximo. Thiago acha que esta situação tende a se resolver em breve.
O que ameniza é o apoio de alguns.
— As contas básicas, algumas pessoas que conhecem nosso trabalho, têm nos ajudado a pagar. Estamos cheio de dívidas, porque se criou uma bola de neve, mas não vamos desistir do nosso projeto que é ajudar as pessoas a superarem estes momentos de dificuldades que enfrentaram nas ruas.
Poucos ficam
O fundador e presidente lembra que ao longo do ano passado foram acolhidas na comunidade 720 pessoas. Destas, 12 pessoas voltaram às ruas na condição de recuperadas, e já estão trabalhando. Atualmente – pelos números da quinta-feira passada – são 25 os internos que fazem parte da comunidade e lutam para se livrar do vício das drogas.
— Com exceção de um jovem que está conosco e que foi encaminhado pela própria família, todos os que chegam aqui são moradores de rua que perderam família e bens materiais. Alguns com curso superior e que se deixaram vencer pelas drogas — conta Thiago.
O baixo índice de acolhidos que permanece na comunidade até o fim do tratamento – que tem duração prevista de nove meses – é resultado da opção que cada uma destas pessoas faz quando chega ao local. Normalmente recolhidos das ruas, enfrentam nos primeiros dias o impacto da mudança de rotina e a chamada crise de abstinência. A maioria não suporta a transformação e acaba voltando para as ruas.
Thiago explica que na Amor ao Próximo os acolhidos não são obrigados a vender qualquer tipo de produto nas sinaleiras das cidades, com o forma de arrecadar dinheiro para a instituição. Boa parte das comunidades terapêuticas, segundo ele, se mantém financeiramente através deste tipo de procedimento que, de alguma forma, acaba afastando o acolhido da terapia que ele realmente precisa.
— Aqui nós temos uma rotina que envolve a estrutura psicológica, espiritual, e a parte física. Há horários estabelecidos para acordar, para se alimentar, para orar e ouvir pregações, e para os trabalhos que são necessários como cuidar da hora ou outras tarefas da comunidade — diz.
: Thiago, fundador e presidente da Amor ao próximo
O TRATAMENTO
1
Quem se dispõe a seguir a risca o cronograma do tratamento, é obrigado a permanecer na comunidade nos três primeiros meses em regime de internato. Sem poder sair para a rua.
2
Depois dos primeiros três meses, o acolhido em fase de recuperação, pode sair da comunidade para passar os finais de semana com a família. Entretanto, ficam de segunda à sexta na comunidade cumprindo rotina normal.
3
Do sexto mês em diante o acolhido ou a direção da comunidade já trabalham no sentido de obter colocação no mercado de trabalho. Neste período, do sexto ao nono mês, é trabalhada a manutenção do que foi promovido nos seis meses anteriores.
Mais antigo
O morador mais antigo da Comunidade Terapêutica Amor ao Próximo, segundo revelou o presidente Thiago Linhares, é um ex-morador de rua que vivia sob o Viaduto da Conceição, imediações da estação Rodoviária de Porto Alegre. A família de Saul Oliveira Krammer é paulista e ele chegou à comunidade há um ano e meio através do projeto Na Rua, de uma Igreja Evangélica de Cachoeirinha.
— A esposa e a filha dele continuam morando na Igreja… Ele estava com a vida completamente destruída, morando na rua já há cinco anos. Saul era militar que servia à Marinha, fala três idiomas, e hoje, depois que veio para a nossa comunidade, já fez cursos e está bem empregado, é funcionário da GM (General Motors) de Gravataí — revela Thiago.
Assista no vídeo abaixo a entrevista com o presidente da Comunidade Amor ao Próximo, Thiago Linhares, e ao depoimento de um ex-viciado, Maurício Oliveira da Silva, que, nas ruas, chegou a se prostituir para ter acesso às drogas. Clique na imagem e, depois, siga na matéria.
PARA CONHECER
Quem estiver disposto a ajudar de alguma forma a Comunidade Terapêutica Amor ao Próximo e, antes, quiser conhecer o trabalho realizado e as instalações, pode ir direto ao endereço: Estrada RS-020, 14.365, parada 90, Itacolomi. São cerca de 500 metros de estrada de chão até a sede, na primeira curva. A visita também pode ser agendada pelos telefones: (51) 9.9732.8858 ou 9.9908.3149.
O caso Thiago
— Comecei a usar drogas com nove anos, cheirando cola, por indicação de um amigo. Com 12 anos já era fumante, comprava meu cigarros. Aos 13 anos fui pai pela primeira vez, aos 15 fui pai de novo…
— Fumei crack durante cinco anos. Antes, cheirei cocaína, fumei maconha, enfim, usei todas as drogas possíveis. Só não me injetei (drogas no sistema venoso). Isso é a única coisa que não fiz.
— Quando tinha uns 22 anos de idade larguei as drogas. Foi à força, depois de três ataques cardíacos sequenciais. Uma tia me resgatou da rua e me manteve preso em casa, por uns dois anos.
O caso Maurício
— Estou na comunidade (Amor ao Próximo) como colaborador, há uns sete anos, já. A minha história. A minha história, na verdade, não foge muito à realidade da maioria dos rapazes que chegam aqui.
— Comecei novo nas drogas, no álcool, no vício, no crack. Fiz muitas coisas erradas, até abandonar a família eu abandonei por um tempo. Foi como todo moleque começa e o pai e a mãe aceitam. Hoje um cigarrinho, depois uma maconha, logo adiante já está cheirando cocaína!
— Aqui eu trabalho como uma forma de compensar a ajuda que tive. Busco tirar da rua pessoas que estão doentes, alguns com Aids, machucados… A gente limpa, dá banho, medica, e busca ensinar a eles como retomar suas vidas.
— Eu queimei muito crack, muito mesmo. Foi quando as coisas só andaram para trás. É quando a pessoa perde a noção de tempo, de espaço, e vive só para aquilo. A pessoa vive só para a droga, só pensa em conseguir a droga.
— Fiquei um bom tempo andando na rua, inclusive me prostituindo, uma forma que eu tinha para me manter no vício. Fiz coisas erradas que não agradavam a ninguém da minha família, me separei e saí de casa. Só voltei depois de um bom tempo e já recuperado.