união homoafetiva

Anne e Michele vão se casar

Já teve festa, viagem de lua de mel e foto oficial da união de Michele (esquerda) e Anne. Assinatura da certidão é às 10h desta sexta-feira

— Quem quer ser respeitado tem que ter respeito pelas outras pessoas. É por isso que a gente evita a exposição exagerada e não pratica ações de intimidade em público.

É com este pensamento que a operadora de telemarketing Anne Caroline Gularte Moraes, de 32 anos, começa falando com a reportagem do Seguinte: sobre homossexualidade, preconceito entre família, amigos e no trabalho, e da sua união oficial com a agente de segurança pública Michele da Silva Flores, 28 anos.

A união oficial das duas vai ser nesta sexta-feira (12/5) no Cartório de Registro Civil de Cachoeirinha, na parada 59 da avenida Flores da Cunha. A bem da verdade, a assinatura dos papéis vai ser o último ato de um processo que já teve a festa no sábado dia 8 de abril, e lua de mel com uma viagem ao Rio de Janeiro na última semana de abril.

Anne e Michele são simples.

Ambas estão desempregadas desde janeiro e moram em uma casa cujas paredes são revestidas com embalagens de leite, abertas, um artifício empregado como isolante térmico. Fica no bairro Águas Mortas, último cantinho de Gravataí entre a avenida Marechal Rondon e a RS-118.

As duas, porém, têm histórias diferentes.

Anne, que tem curso superior incompleto como Educadora Física, nasceu em Porto Alegre e há 27 anos habita Gravataí e Cachoeirinha. Os pais, e dois irmãos, moram no centro de Cachoeirinha. Ela chegou a ter um namorado que apresentou à família e outros relacionamentos breves e sem maiores envolvimentos com o sexo oposto.

Michele, também natural de Porto Alegre, conta que só nasceu na capital e toda sua vida se desenvolveu em Gravataí. Ela já foi casada por sete anos e desta relação cria dois filhos, um de nove e outro de cinco anos. E ainda mora na casa dos pais, agora com Anne.

 

: Em casa, Anne com suas tradições: boné, camiseta do grêmio e chimarrão, ao lado de Michele

 

A foto e a térmica

 

A relação de Anne e Michele começou há cerca de um ano, quando se conheceram em um encontro de família. As duas foram apresentadas por uma sobrinha de Michele que, até então, não havia se descoberto como homossexual. Foi a mesma parente quem, um ou dois dias depois, ‘meio sem querer’ usou o telefone de Michele para enviar uma mensagem para Anne.

— Foi amor à primeira foto — se diverte Michele contando sobre o repentino interesse que lhe despertou quando viu a foto de Anne no celular.

O próximo passo foi convidar para um jantar em casa. Mais três dias e Anne voltou. E não saiu mais de lá. Só vai ao centro de Cachoeirinha, atualmente, para visitar a família. E rolou até mesmo um pedido de namoro ao pai de Michele enquanto a pretendida se escondia dentro de casa, roendo as unhas, temendo pela reação.

— Foi tudo tranquilo, ele disse que já sabia do namoro da gente e que só estava esperando que alguém contasse. E aceitou numa boa, com naturalidade — conta a operadora de telemarketing.

O segundo passo foi um presente que Anne deu a Michele. Como as duas são apaixonadas por chimarrão e a garrafa térmica da namorada recém havia quebrado, Anne a presentou com uma nova térmica para que sempre tivessem água quente para o bom e quente amargo a base de erva-mate.

 

Nem tudo foram flores

 

No âmbito familiar, Michele assegura que teve boa aceitação dos pais e de dois dos três irmãos. Um deles, entretanto, afastou-se de casa e não mantém contato com a família desde que o namoro das duas deslanchou de vez. Ela diz que foi com Anne que se descobriu atraída pela primeira vez por uma pessoa do mesmo sexo, embora no seu círculo de amizade sempre estivesse gays e lésbicas.

O filho mais velho dela, de nove anos, exigiu uma boa conversa mas assimilou a situação depois de uma boa explicação. Hoje, literalmente ‘enche a boca’ para dizer na escola e aos amigos que tem duas mães. O mais novo, de cinco anos, nunca apresentou sinais que indicassem qualquer problema de relacionamento. E chama Michele e Anne de mãe.

Pelo lado de Anne, as maiores dificuldades foram enfrentadas no meio familiar até o dia em que assumiu sua condição sexual, aos 20 anos. Ela garante que depois da revelação da sua homossexualidade a vida entre os parentes melhorou bastante.

— Nossa! Se eu soubesse teria assumido antes. Depois que a gente conversou e eu contei, ou confirmei o que para alguns já era uma suspeita, a convivência familiar passou a ser outra, muito melhor.

Anne e Michele têm um comportamento de um casal heterossexual durante a entrevista. Anne é mais falante, não larga a cuia de chimarrão e faz questão de manter-se com a camisa do seu clube do coração, o Grêmio. Michele é colorada, um pouco mais reservada e fez um cafezinho de primeira para este repórter.

 

E o preconceito?

 

É o mesmo comportamento que têm quando estão em locais públicos, sem afetações.

— Eu já sou mais experiente do que ela (Michele), então sei bem como funciona e quais os problemas que a gente pode enfrentar. Nunca tive problema porque evito a super-exposição. A gente não fica de abraços com maiores intimidades em uma festa, por exemplo. Quem quer ser respeitado tem que respeitar os outros — reforça.

As duas não falam abertamente sobre preconceito, sobre as dificuldades enfrentadas na rua, no trabalho. Nem mesmo creditam à convivência homossexual o fato de terem dificuldades para se reposicionarem no mercado de trabalho. São discretas até neste aspecto.

Mas Michele não deixa de alfinetar pessoas que por suas atitudes provocam o preconceito.

— A mídia hoje expõe muito esta questão da homossexualidade, do mundo dos gays e das lésbicas. Tanto que em qualquer rodinha de meia dúzia de guriazinhas (referência às adolescentes) cinco vão dizer que são lésbicas, mas não sabem sequer o que significa a palavra e o que isso quer dizer na sociedade.

 

Os detalhes

 

1

Michele é umbandista praticante. Anne é católica não praticante e diz que quando quer ajuda espiritual procura as igrejas evangélicas, especialmente aos domingos quando as celebrações são voltadas às famílias.

Michele é colorada. Anne é gremista e fez questão de ostentar a camisa do tricolor na hora das fotos para o Seguinte:.

 

2

Anne se revelou homossexual aos 20 anos e, entre outros relacionamentos, chegou a morar junto com outra mulher por cerca de quatro anos. Michele teve um marido por sete anos e seu primeiro relacionamento com uma mulher foi justamente com Anne.

 

3

A festa que comemorou a união das duas foi no começo de abril, restrita aos familiares. A viagem de lua de mel para o Rio de Janeiro foi presente dos pais de Anne, ele um bancário e ela uma técnica em enfermagem.

 

: Foto à esquerda: Anne, que não dispensa seu boné, e Michele, no Pontal do Leme, no Rio de Janeiro. Na foto à direita, Anne com a atriz Carol Duarte, que vive da novela Força do Querer (Rede Globo, 21h) a personagem Ivana, uma adolescente que está vivendo o processo de descoberta da sua sexualidade.

 

4

A operadora de telemarketing não pensa em submeter-se à cirurgia para mudança de sexo. Mas admite, gostaria de ter barba. Já pensou em tomar hormônios para que crescessem os pelos mas afirma que ainda não teve coragem. Tanto que algumas fotos em seu perfil pessoal no Facebook fez uso de um aplicativo que a fazem aparecer com barba no rosto.

 

5

Anne revela: por ser uma homossexual assumida é alvo constante do assédio masculino. Segundo ela, 70% das ‘cantadas’ que recebe são de homens. Ela credita isso ao fato de a maioria dos homens se rotularem héteros mas fantasiarem uma relação com alguém do mesmo sexo. É um fetiche, diz.

 

6

Michele e Anne têm (mais um) objetivo em comum, que é ter filhos. Pelo menos um filho. E não é adoção. Elas pensam em realizar inseminação mesmo que isso implique na possibilidade de fecundar mais de um óvulo ao mesmo tempo.

 

Sexualidade e religião

 

— Se fosse uma opção, com certeza a gente não escolheria a mais difícil — diz Anne Moraes, antes de comentar a condenação religiosa à homossexualidade, à relação e à união entre pessoas de um mesmo sexo. Essa rejeição a incomoda muito.

E ela argumenta.

— As pessoas utilizam a bíblia, que já é contraditória se a gente analisar o que dizem o primeiro e o segundo testamentos, para apontar um dedo acusatório às outras pessoas.

E vai mais longe.

— Não dá para entender que cada religião de um nome diferente aos mesmos santos, cultuem estes mesmos santos, mas umas aceitam e outras não a vida dos gays, lésbicas e travestis. Essa diferença é que além de não ser compreensível, não é admissível!

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Receba nossa News

Publicidade