Se, em princípio, sátira e humor são libertadores de tensões, no caso específico do Brasil, seria melhor que os poderosos levassem a sério as profecias lançadas por Bolsonaro, que são mais do que um simples jogo de ameaças. O Seguinte: reproduz o artigo de Juan Arias, publicado pelo El País
As manifestações golpistas a favor de Bolsonaro no Dia da Independência foram tensas no país por medo de que o presidente pudesse aproveitar-se delas para dar o golpe de Estado que tanto almeja. Foi por isso que a intervenção do ex-presidente Michel Temer para convencê-lo a pedir desculpas e fazer elogios à democracia foi aplaudida, embora muitos duvidem da sinceridade de Bolsonaro.
Por isso, o banquete organizado dias depois por Temer com um grupo de empresários amigos dele, todos homens, no qual o humorista André Marinho os divertiu imitando Bolsonaro, o que provocou gargalhadas de Temer e de seus comensais, causou surpresa na opinião pública e viralizou nas redes.
Banalizar uma situação tão grave como a que vive a democracia brasileira é duplamente perigoso. E ainda mais quando a população mais desassistida sofre o flagelo de uma economia em frangalhos que gera desemprego, fome e morte. A visão de um grupo de grandes empresários e o ex-presidente Temer durante um banquete rindo à vontade com a imitação jocosa do golpista Bolsonaro, nestes momentos em que as bases da democracia estremecem e cresce a política despótica e golpista, evidencia o perigo de converter uma tragédia em humor.
Quem me lê há anos sabe que sempre fui um defensor inveterado da sátira política, que considero liberadora de tensões, como o humor em geral, incluindo o chamado humor negro. E pude constatar que os grandes estadistas nunca se incomodaram nem mesmo com a mais feroz sátira contra eles. Sabem que faz parte do jogo da dialética. Só os políticos medíocres temem o humor porque se sentem inseguros.
Neste caso específico em que o Brasil vive momentos tensos que podem arrastar o país para uma guerra civil e que remetem ao livro Como as democracias morrem, a cena de Temer rindo de Bolsonaro às gargalhadas ultrapassa todos os limites do humor. Não que o presidente golpista sequer se importasse, pois sabe muito bem que sua famosa conversão escrita por Temer é falsa e que não tardará muito para voltar às suas ameaças autoritárias.
Sem dúvida, quem mais perdeu é o ex-presidente Temer, que provocou o impeachment de Dilma. Se em um primeiro momento foi aplaudido porque o texto de desculpas preparado para Bolsonaro parecia uma jogada em favor da democracia ameaçada abertamente na manifestação bolsonarista, o banquete por ele organizado com os empresários e a cena de humor exibida foi um balde de água fria naqueles que acreditavam que Temer havia realizado o milagre de converter o presidente disposto a dar o golpe.
Tanto é assim que Bolsonaro encarou a cena burlesca com tranquilidade, já que na realidade seu aparente pedido de desculpas por seus arroubos golpistas com o texto de Temer era apenas uma farsa. Antes das risadas pela conversão do mito no célebre banquete, ele é quem deve ter rido sozinho. Trata-se, de fato, de um golpista empedernido ao longo de toda sua vida, que respira o autoritarismo e a impossibilidade existencial de compreender os valores da liberdade.
Banalizar, mesmo com o humor, o momento de crise que vive este país e que preocupa o restante do mundo civilizado e democrático é duplamente perigoso, pois não estamos lidando com um político normal, capaz de encarar a sátira como parte do jogo democrático e da liberdade de expressão, mas com uma tragédia anunciava que a qualquer momento poderia explodir como um incêndio difícil de apagar.
Vários colunistas deste jornal já alertaram para o perigo que a democracia corre neste momento, por isso é perigoso qualquer deslize que dê ao tirano oportunidade para fortalecer sua psicopatia. No final, quem vai perder mais, como em todos os países dominados por ditaduras, são os mais indefesos, quem mais sofre na carne com a dor e o abandono. Nunca, em nenhum regime ditatorial de direita ou de esquerda, perdem os poderosos que acabam confraternizando com a tirania.
Se, em princípio, a sátira e o humor são libertadores de tensões, no caso específico que o Brasil vive hoje, seria melhor que os poderosos levassem a sério as profecias lançadas todos os dias por Bolsonaro, que são mais do que um simples jogo de ameaças. A sua guerra à democracia, a sua paixão pela ditadura, o seu carácter negativista, a sua total ausência de sentimento de compaixão pela dor dos outros e mesmo sua chacota com a morteo tornam imune a qualquer tipo de conversão.
É bom que mesmo os políticos democráticos que se julgam mais espertos não se esqueçam disso, pois o que está em jogo é um perigo real de retrocesso democrático que deveria ser combatido sem mais demora porque talvez amanhã seja tarde demais. Todos os medos de tomar medidas drásticas para não enfurecer a besta poderão ser duplamente perigosos.
Há momentos na história dos povos em que tentar brincar com o fogo ou minimizá-lo pode levar à catástrofe. Foi assim com o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini, difíceis de compreender e analisar depois de tantos anos e que parecem ressuscitar disfarçados de modernidade, o que os torna duplamente perigosos.