Apesar de atacar ferozmente o chavismo, o presidente brasileiro tem mais em comum com seu “inimigo preferido” do que seria capaz de admitir. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País
Nas eleições presidenciais de 1998, 56% dos eleitores venezuelanos decidiram dar uma chance ao ex-militar Hugo Chávez, um antipolítico que prometia acabar com a "velha política" e a corrupção. O discurso inflamado e as convicções autoritárias de Chávez foram a estratégia acertada em uma eleição marcada pela ampla insatisfação com o sistema político tradicional e o desejo de ruptura. No ano seguinte, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o então deputado e ex-militar Jair Bolsonaro chamou o líder venezuelano de uma "esperança para a América Latina." Foi além: "Gostaria muito que esta filosofia chegasse ao Brasil. Acho ele ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo”. De fato, apesar de declarar o chavismo como grande inimigo ao longo dos últimos anos, Bolsonaro compartilha várias características com o ex-presidente venezuelano.
Uma dos traços que o brasileiro tem em comum com o fundador do chavismo — e que não costuma ser lembrado — é uma conturbada relação com o mundo acadêmico e o pensamento crítico. Por exemplo, Bolsonaro já criticou a autonomia das universidades federais — garantida pela Constituição — e seu Governo fez ameaças de que instituições fazendo “balbúrdia” teriam suas verbas reduzidas, tendo como alvo principal as ciências humanas, área que supostamente teria forte influência de doutrinação marxista. Como um político da oposição venezuelana me disse durante minha recente visita a Caracas, "Bolsonaro é um aliado importante na luta contra a ditadura aqui, mas é claro que sua retórica me lembra a de Hugo Chávez."
Como costuma ocorrer em regimes com tendências autoritárias, o incômodo do regime chavista com o pensamento crítico e independente nas universidades venezuelanas tradicionais se revelou logo depois da primeira eleição de Chávez. Como o cientista político turco Ilhan Uzgel argumenta, "a primeira coisa que esse tipo de movimento ideológico ataca são pessoas e instituições que produzem conhecimento. Eles precisam eliminar essas áreas para estabelecer seu próprio poder. Porque elas [as universidades] representam a única força dissidente na sociedade."
Em regimes de direita com ambições autoritárias, o pensamento crítico costuma ser tachado de comunista, subversivo ou moralmente reprovável, enquanto regimes de esquerda com as mesmas pretensões geralmente o rotulam de imperialista, fascista ou ligado à velha ordem, opção abraçada pelo presidente Chávez e seus seguidores. O tipo de acusação diverge, mas o desejo de enfraquecer ou controlar centros de pensamento independente é o mesmo.
O presidente Chávez logo percebeu, porém, que confrontar diretamente as universidades tradicionais — as chamadas "universidades autônomas" — seria uma batalha difícil de vencer e causaria resistência junto às elites intelectuais, além de reprovação internacional. Optou, portanto, por uma estratégia mais sofisticada. Em nome de aumentar o acesso ao ensino superior, criou um sistema paralelo de novas universidades diretamente subordinadas ao Executivo, onde há pouco ou nenhum espaço para o pensamento que não estivesse alinhado ao do governo. A conta do Twitter de umas delas, a Universidad Bolivariana de Venezuela (UBV), por exemplo, poderia ser facilmente confundida com uma conta do Governo Maduro, constantemente compartilhando fotos de eventos e palestras do presidente. Universidades alinhadas com o pensamento oficial receberam cada vez mais financiamento público e cresceram rapidamente, enquanto instituições públicas tradicionais tiveram cada vez menos apoio financeiro do Governo.
A partir de 2010, o órgão responsável por aprovar a criação de novos cursos parou de emitir pareceres favoráveis para universidades autônomas, não alinhadas ao chavismo. Travou também o processo de nomear reitores críticos ao regime. Dois anos mais tarde, o Governo começou a interferir diretamente nas eleições de movimentos estudantis. Nessa época, forças de segurança do Estado começaram a intimidar ou prender estudantes, censurar publicações universitárias e invadir instituições de ensino superior, como ocorreu durante as manifestações de 2014 contra o Governo venezuelano. O relatório El pensamiento bajo amenaza: Situación de la libertad académica y la autonomía universitaria en Venezuela (O pensamento sob ameaça: situação da liberdade acadêmica e a autonomia universitária na Venezuela), publicado pela Coalizão de Cátedras e Centros de Direitos Humanos, liderada por acadêmicos venezuelanos, detalha a estratégia sistemática do regime chavista de suprimir a liberdade acadêmica e a autonomia universitária.
Apesar de toda a pressão e das dificuldades que o Governo tem criado para o ensino superior autônomo, porém, o regime não tem conseguido controlar os professores e principais movimentos estudantis, e as universidades se mantêm como principal espaço de pensamento independente do país. Estudantes das grandes universidades autônomas foram cruciais para explicar a derrota de Chávez no referendo sobre a mudança constitucional em 2007 e na organização dos protestos nos anos seguintes. Em retrospectiva, Chávez acertou ao enxergar no mundo universitário a maior resistência a seu projeto autoritário. Enquanto a oposição oficial está dizimada, parcialmente presa, exilada ou desorganizada, numerosos professores e grupos estudantis continuam lutando, diariamente, para preservar um espaço surpreendentemente vivo para o debate político.
Embora Bolsonaro ainda não tenha ido tão longe quanto Chávez, sua retórica e alguns dos primeiros passos do atual governo no que tange a relação com as instituições públicas de ensino superior demonstram claramente a mesma lógica chavista: inibir o pensamento crítico e não alinhado ao discurso oficial. Opositores ao chavismo com quem tive contato direto em Caracas foram explícitos ao apontar as semelhanças entre Chávez e Bolsonaro no tocante à maneira de lidar com o pensamento crítico e independente. Apesar de atacar ferozmente o chavismo, o mandatário brasileiro tem mais em comum com seu “inimigo preferido” do que seria capaz de admitir.