Bastião do financismo global, o Fundo Monetário é pragmático: para sair da crise, será preciso flexibilizar “austeridade”, ampliar gastos públicos e tributar os super-ricos. Mas o ministro insiste em fórmulas ultrapassadas e prepara um desastre. O Seguinte: reproduz o artigo publicado pelo El País
A profundidade e o ineditismo da crise social e econômica, em razão da pandemia do coronavírus, tem provocado a ampliação de um certo consenso em torno das medidas de política econômica necessárias para fazer face às dificuldades da conjuntura. Porém, há muito tempo sabemos da recusa do superministro da economia em encarar o problema da forma com que a gravidade do momento exige.
Paulo Guedes permanece alheio à trágica realidade que o Brasil enfrenta e mantém o discurso irresponsável do personagem austericida fiscalista a todo custo. De acordo com sua visão conservadora, tudo será resolvido no tempo certo, a partir da simples conjugação das forças de mercado. Basta esperar que a articulação dos vetores do lado da oferta se articulem com aqueles relativos à demanda para que o equilíbrio mágico seja enfim atingido. Porém, a realidade é muito mais complexa do que esses modelitos ultrapassados da ortodoxia neoliberalóide. 153 mil mortes pela doença? Desemprego superior a 13 milhões de pessoas? Maior recessão da História prevista para o presente ano? Esses dados pouco importam na cabeça de planilha.
O old chicago boy mantém uma verdadeira obsessão com a questão do garrote fiscal. Antes mesmo do surgimento da covid-19, Guedes anunciava sua disposição em manter as bases da austeridade herdada do trabalho sujo efetuado pela duplinha Temer & Meirelles entre 2016 e 2018. Em especial, refiro-me à EC 95. Foi por meio dessa aberração que ficou estabelecido no texto constitucional o congelamento das despesas não financeiras do orçamento público pelo longo período de 20 anos. Entenda-se a proibição de aumento nos gastos com saúde, assistência social, educação, previdência social e outras rubricas consideradas secundárias pelo mestre. A única autorizada a crescer sem limites refere-se aos recurso para pagamento de juros da dívida.
Flexibilizar o austericídio é a regra lá fora
No entanto, a realidade das economias dos próprios países desenvolvidos sofreu um grande baque a partir dos efeitos necessários ao combate da pandemia. A novidade reside na combinação de exigências múltiplas no plano de políticas públicas. A chegada da crise coloca na pauta, de forma urgente, medidas na área da saúde e da pesquisa, com o objetivo imediato de impedir o alastramento da doença e do contágio. Por outro lado, passam a ser também emergenciais decisões para atenuar os efeitos sobre a população mais carente e que teve suas condições de vida e trabalho bastante afetadas negativamente. Além disso, as autoridades econômicas desses países reconhecem a importância de medidas de auxílio às empresas, como isenção e desoneração tributária ou ainda subsídios na concessão de empréstimos e financiamentos.
Ora, não é difícil imaginar como esse conjunto de opções afeta diretamente as finanças públicas. Trata-se de elevações das despesas governamentais em uma conjuntura onde a redução das atividades econômicas de forma generalizada tende a reduzir também as receitas tributárias. Mas esse descompasso conjuntural das contas governamentais não pode servir como argumento para a paralisia da ação do Estado em um momento crucial. Aqui entra em cena a abordagem que fala da necessidade de medidas contracíclicas, ainda que isso vá contra a noção do senso comum de que não se poderia gastar ainda mais quando o déficit já é alto. Essa é uma das muitas diferenças de essência entre um indivíduo, uma família ou mesmo uma empresa em relação ao Estado. Este último tem uma série de capacidades que permitem adiantar recursos sob a forma de impostos, endividamento público, emissão monetária e outros instrumentos de política econômica.
O problema é que a ortodoxia nunca aceitou esse tipo de alternativa. Assim, as políticas oficiais de governos comandados por esse tipo de coalizão ou mesmo as agendas dos organismos multilaterais quase nunca incluíam esse tipo de medida. Tudo começou a mudar com a crise de 2008/9, quando houve um importante movimento de flexibilização dessa pauta da austeridade nos Estados Unidos e mesmo na União Europeia. A retomada do crescimento econômico e a tentativa de evitar a quebra de grandes conglomerados internacionais da área industrial e financeira foram a tônica de medidas que deixariam qualquer adepto do financismo de cabelo em pé até a véspera de seu anúncio.
Até o FMI se rende às evidências
Agora em face da crise da pandemia, volta à cena esse debate a respeito da necessidade de alternativas que provocam aumento da despesa e do endividamento públicos. Os governos estão adotando esse tipo de medida, muito em função da emergência do momento e sem que esse novo “consenso” tenha sido objeto de reflexões mais fundamentadas. A agenda foi sendo tocada ao ritmo de um grande pragmatismo, ditado pela urgência da crise.
O inesperado para o momento foi a entrada do Fundo Monetário Internacional (FMI) no centro do palco. Essa instituição sempre foi conhecida pelo seu profundo enraizamento junto aos interesses do financismo global, com a consequente orientação de política econômica enviesada pelo conservadorismo e pela ortodoxia. Mas eis que o Fundo acaba de divulgar a edição de outubro do documento “Informes de perspectivas da economia mundial”, com algumas análises e recomendações bastante distintas de sua conhecida linha de defesa do establishment. O texto não esconde sua preocupação com a gravidade do momento e aponta saídas que não combinam em nada com o receituário tradicional do FMI. Pelo contrário, ali está explicitada a proposta de que o mais ricos passem a contribuir para os cofres públicos de seus países:
(…) “Ainda que seja difícil a adoção de novas medidas de receitas fiscais durante a crise, os governos talvez devam colocar-se a possibilidade de incrementar os impostos progressivos aplicados aos agentes do setor privado mais privilegiados e aos setores que estejam relativamente menos afetados pela crise (por exemplo, elevando as alíquotas de impostos para as categorias de renda mais alta, para as propriedades mais valiosas, para os ganhos de capital e os patrimônios), assim como a possibilidade de modificar a tributação das empresas para garantir que as mesmas paguem impostos de acordo com seus ganhos. Os países também deveriam cooperar com o desenho da tributação internacional das empresas para responder aos desafios da economia digital.” (…)
Em outra passagem, o documento reconhece a necessidade de flexibilizar as medidas de austeridade fiscal em razão da emergência da crise da pandemia. Assim, sugere que as mesmas sejam suspensas, ainda que provisoriamente.
(…) “Se as regras fiscais limitam a margem de manobra, a situação oferece justificativas para suspendê-las provisoriamente, comprometendo-se por sua vez a seguir uma trajetória gradual de consolidação uma vez superada a crise, para restabelecer o cumprimento das regras no médio prazo. Poderia ser criada uma margem de manobra para as necessidades imediatas de gasto, priorizando as medidas adotadas contra a crise e reduzindo os subsídios improdutivos e mal focados” (…)
Seria mesmo ingenuidade imaginar que tal mudança na orientação do FMI se deva alguma transformação mais profunda em sua estrutura ou suas funções. Mas o fato é que o inédito da situação e a gravidade da crise leva seus membros a refletirem o receio de consequências incontroláveis caso nada seja feito. Há riscos de amplificação dos efeitos da pandemia e da recessão. As previsões do órgão falam em -5,8% de queda no PIB das economias desenvolvidas, -8,3% no espaço europeu e -4,3% nos Estados Unidos. O único país na lista a oferecer crescimento econômico em 2020 é a China, com 1,9%. Ora, frente a esse quadro de descalabro, o FMI parece ter preferido ceder no principismo doutrinarista para reduzir as perdas no mundo capitalista.
Baile da Ilha Fiscal, versão 2020
Ora, no Brasil esse tipo de impedimento atende pelo nome de EC 95 e o conjunto de medidas implementadas pela equipe de Paulo Guedes, cujo foco no balanço fiscal é obtuso e irredutível. O responsável pela equipe econômica parece pouco disposto a aceitar alguma flexibilização em sua agenda de destruição do Estado e desmonte das políticas públicas.
O conhecido complexo de vira-latas das elites tupiniquins parece ter um limite. Os elogios e a incorporação das receitas e práticas vindas do centro do financismo esbarram no quesito redução das desigualdades e no chamamento a oferecer algum tipo de contribuição (pedir “sacrifício” seria mesmo um exagero) para o futuro do País. Abrir mão de sua tradicional arrogância e concordar com a tributação da renda e do patrimônio dos super-ricos não combina com sua postura desde os tempos coloniais. Arejar suas mentes e aceitar alguma flexibilização no ideário importado da ortodoxia já ultrapassada tampouco lhes parece razoável.
Essa é a razão pela qual segue o Baile da Ilha Fiscal em sua versão do século XXI. Nossas classes dominantes preferem seguir obedientes às senilidades demenciais de Paulo Guedes, enquanto pelo mundo afora suas congêneres parecem ter aprendido a dançar pelo ritmo que o próprio FMI incorporou em sua última atualização de músicas recomendadas.