a coluna do fernie

Caça ao Tesouro – 2º dia, parte 2

Os três jantaram cedo, como de costume. Pouco depois do jantar, Gabriela disse que estava com vontade de sair, e acabou saindo sozinha. Rosa não estava entusiasmada com a ideia, e Pedro achou que seria uma boa ideia ficar com ela em casa. Rosa refugiou-se em seu quarto, com seu walkman e seus fones de ouvido tocando Yes (uma fita cassete com Fragile gravado em um lado e Relayer no outro), e seu caderno de desenho, cheio de desenhos, rascunhos e estudos feitos a lápis.

Enquanto ela rabiscava uma paisagem da praia de Arroio do Sal, baseado no que ela lembrava, ela pensou em como poderia conversar com Carlos sobre essas duas outras atividades das quais ela tanto gostava: desenho e rock progressivo. Afinal, leitura não era um interesse tão profundo assim, enquanto o desenho era algo a que ela podia dedicar-se inteiramente. Ela podia desenhar paisagens que ela tivesse visto uma única vez. Claro, não eram reproduções perfeitas—sempre havia um errinho aqui e outro ali—mas era algo relativamente fácil, e ela não entendia como as outras pessoas podiam ter tanta dificuldade em fazer isso. Parecia tão natural.

Pedro entrou no quarto, desajeitado. Os três dormiam naquele quarto: Gabriela em sua cama, e os outros dois em colchões colocados no chão. Rosa não notou a presença dele até que ele se sentou na cama. Ela estava em seu colchão, ao lado da cama. Pedro ficou olhando para ela, até que ela tirou um dos fones do ouvido.

— Tá tudo bem contigo? — ele disse.

— Tá sim — ela disse.

Ele se esticou um pouco para tentar enxergar o que ela estava desenhando. Era difícil, pois ela tinha o caderno inclinado, apoiado sobre as pernas dobradas.

— Fiquei preocupado contigo depois de ontem.

— Não precisa mais — ela disse.

— Não imaginei que tu fosse sair com aquele cara de novo.

— O nome dele é Carlos.

— Que seja — ele disse. — Depois do que ele te fez ontem, achei que tu não ia querer mais saber dele.

— Ele não me fez nada demais — ela disse. — Eu percebi que ele é uma boa companhia.

— Tu tá gostando dele?

Rosa suspirou. — Tô sim.

Pedro acenou com a cabeça, tentando esconder a frustração, ouvindo o ruído de Rosa batendo no seu caderno com os dedos. Aquele tac-tac-tac ritmado começava a incomodá-lo. — Tu acha que ele gosta de ti de verdade?

— Acho — ela disse.

— O que ele tem de tão interessante?

A pergunta incomodou Rosa um pouco. Ela começava a achar que Pedro estava sendo um pouco impertinente; mas ele era seu amigo, e talvez essa preocupação fosse natural. — Ele é inteligente e gosta de conversar comigo, dentre outras coisas.

— Tu já conhece outros caras que gostam de conversar contigo.

— Poucos — ela disse. — Na verdade, além de ti, eu não me lembro de mais ninguém.

— Hm, pode ser — ele disse, fingindo não saber. — Mas, tipo, tu acha que isso é motivo pra tu já sair e ficar junto com ele, assim, tão de repente?

Ela deu de ombros. — Pra mim, parece adequado.

Pedro estava perplexo com a calma de Rosa. É fato que ela costumava ser muito pouco emocional na maior parte do tempo, mas ele esperava que ela estivesse um pouco mais exaltada. Talvez, talvez, os dois tivessem apenas conversado mesmo? Talvez não houvera nada de mais entre eles.

— Eu acho que tu tem que tomar cuidado com esses caras — ele prosseguiu. — Muitas vezes, a única coisa que te espera no final é uma tremenda decepção.

Ela cogitou por um segundo. Por algum motivo, isso não a preocupava nem um pouco. — Eu acho que é um risco que eu corro. Eu nunca vou saber se eu não tentar.

Rosa tinha razão; e isso o deixava ainda mais perturbado.

— Mas tu acha que esse risco vale a pena? — ele insistiu. — Pôxa, esses caras não querem saber quem tu realmente é. Eles só querem te usar e te jogar fora quando cansar. Tu precisa de alguém que te respeita, Rosa.

— Tu acha que o Carlos é assim?

Pedro temeu que ele estivesse indo rápido demais. Era melhor ir com calma. Fora isso, ele ainda sentia-se enojado de ouvir Rosa citar o nome daquele cara.

— Eu não sei. Talvez ele não seja. Pode ser que ele não seja nada disso, quem sabe. Mas, tipo, se ele for, ele pode te machucar de verdade.

— Talvez não — ela disse. — Se eu não esperar demais dele, dificilmente ele vai me decepcionar.

De novo, Rosa estava fazendo sentido. Isso era preocupante. Ele já estava ficando sem o que dizer.

— Mas pra que correr o risco? Não seria melhor pra ti ficar com uma pessoa em quem tu já confia, que tu saiba que te respeita?

Rosa largou o caderno, tirou o outro fone do ouvido, e largou o lápis sobre a cama. — Tu tá falando de ti mesmo?

Pedro titubeou. Xeque.

— Não, não, capaz — ele disse, gaguejando. — Tu sabe que eu sou teu amigo, eu te respeito…

— Pedro, o que isso tem a ver com respeito? Por que tu repete tanto essa palavra?

— Porque, Rosa, ora, como assim, o que tem a ver? — ele disse. — Tu sabe que eu jamais faria algo que tu não queira.

— Mas se tu realmente me respeita, não seria mais correto então tu respeitar as minhas escolhas? — ela disse. — Porque eu tenho a impressão de que tu tá tentando me impedir de fazer algo que eu acho que é certo.

— Mas eu me preocupo contigo — ele disse. — Eu sou teu amigo, eu gosto de ti de verdade, e eu não quero que tu te decepcione com um cara qualquer.

— Pedro — Rosa disse, criando uma coragem que ela jamais tivera —, sob o risco de ser pretensiosa, por acaso tu tem algum interesse em mim além de amizade? Porque se tu tiver, é melhor ser sincero e falar.

Xeque de novo. Ele esfregou o rosto. O tac-tac havia parado, mas ele ainda conseguia ouvi-lo dentro da cabeça.

— Não, não é isso — ele disse. — Eu não… quer dizer, não é que… Eu não posso fazer isso, Rosa.

— Não pode fazer o quê?

Pedro estremeceu. Má escolha de palavras.

— Rosa, eu não posso te induzir a nada. Tu sabe que eu te respeito, e…

— De novo essa palavra? — ela interrompeu, subitamente irritada. — Pedro, eu não tô te entendendo.

Frustrado, Pedro levantou-se da cama. — Eu não posso fazer isso. Eu jamais chegaria e te diria, “eu tô a fim de ti”, porque não é assim que as coisas funcionam. Não é assim que tem que ser.

— Tem que ser como, então?

Ele bufou, percebendo que já não conseguiria desvencilhar-se daquela situação tão facilmente. Agora que ele já estava enfiado nessa conversa, o melhor seria ir até o fim.

— Eu não posso te dizer o que fazer — ele disse.

— Mas não tem que ser assim — Rosa respondeu. — Eu acho que tu deveria dizer qual é o teu interesse em mim.

— Rosa, tu é inteligente, tu deveria entender — ele disse, caminhando em círculos pelo quarto.

— O que isso tem a ver com inteligência?

Ele parou e virou-se para ela. — Eu não posso dizer o que eu sinto; não eu.

Rosa levantou-se do colchão, cada vez mais perplexa, concluindo que aquela conversa não poderia terminar bem. — Tu quer dizer que eu é que teria que dizer?

— Rosa, tu sabe que eu gosto de ti — ele disse. — Eu preciso que… que tu tenha essa iniciativa, só dessa vez. Eu não quero ter que ouvir, depois, que eu não te agradei, ou que eu não sou o que tu queria… ou o que quer que seja…

— Mas por que tu tá pensando nisso agora? — ela disse, um pouco alarmada. — Se a gente ficasse junto, nós dois deveríamos nos esforçar pra que isso não acontecesse, não é? Um relacionamento a dois envolve um comprometimento mútuo e bilateral, pois, caso contrário, isso geraria uma sobrecarga…

— Sim, sim, sim, eu sei, — ele disse, interrompendo-a —, mas não é assim que as coisas funcionam na prática. Se eu te dissesse o que eu sinto, eu teria que atender às tuas expectativas, e, tipo, eu… eu não… eu acho que não…

— Então se eu disser… eu é que tenho que te satisfazer, é isso?… É como se eu tivesse que provar que eu sou boa o suficiente pra ti?

Ele apenas tentava respirar e formar palavras.

— Tu quer que eu tenha a obrigação de te satisfazer, e não tu a mim, é isso?

Xeque-mate.

— É esse tipo de relacionamento que tu deseja pra mim? — ela disse. — Tu acha que tu merece que eu faça todo o esforço pra te agradar, só porque eu é que quis começar o relacionamento?

— Rosa, entende o meu lado…

— Por quê? Tu nem mesmo entende que eu esteja interessado em outro rapaz — ela disse, interrompendo-o.

— Por favor, Rosa, pensa em tudo que a nossa amizade foi até agora — ele insistiu. — Pensa em tudo que eu fiz por ti… É desse jeito que eu mereço ser tratado?

Rosa pensou em responder, mas, de súbito, ela percebeu que não havia resposta alguma para isso. Quanto mais ela pensava nessas palavras, mais assombrada ela ficava.

— Então toda a nossa amizade… eu sou um prêmio pra ti, é isso?

Ele bufava e gesticulava, frustrado. — Rosa, entende… Pensa bem, Rosa, pensa. Tu é inteligente. Tu acha que isso é justo comigo? Que tu vá e fique com outro cara, depois de todo o tempo que a gente se conhece? Depois de tudo que eu fiz pra ti? Depois de me dedicar tanto pra ti, tu vai e te atira no primeiro babaca que te faz um agrado?

Foi então que ela começou a ficar realmente assustada com ele. Ela já havia visto Pedro, em outras ocasiões, nervoso ou irritado com alguma coisa, mas ele nunca ficara daquele jeito, muito menos com ela.

— Eu achei que tu fosse meu amigo, Pedro — ela disse, já um pouco trêmula.

— Sim, e pra acabar sendo tratado desse jeito — ele disse, bufando e suspirando. — Olha… Rosa, olha, eu não quero ficar brabo contigo, mas…

— Pedro — ela balbuciou —, eu não quero mais falar sobre isso.

— Tu sabe muito bem que eu sempre fui verdadeiro contigo, Rosa — ele disse. — Eu vou te tratar bem. Eu nunca vou te decepcionar.

— Tu já me decepcionou, Pedro — ela disse, com uma aparente calma, mesmo à beira do abismo. — Não precisa mais falar comigo. Não, melhor: eu quero que tu nunca mais fale comigo. Não tenta me dirigir a palavra. Não tenta pedir desculpa. Só me esquece, tá bom? Me esquece.

Pedro sentiu a frieza no olhar dela, e soube que ela falava sério. — Rosa, eu…

Ela apenas virou-lhe as costas e saiu do quarto, passou pela sala e saiu de casa, correu em direção ao hotel e chorou. Não era um pranto catártico, de quem se liberta de um grande peso, mas um pranto ácido, humilhado, derrotado. Naquela hora, não havia a quem recorrer. Ou melhor, havia: Carlos. Mas ela não podia desabar sobre ele e esperar que ele a consolasse. Não seria justo. Não era porque eles ficaram tão próximos que ele seria obrigado a recebê-la de braços abertos em uma situação tão desoladora.

Mesmo assim, ela sentia que precisava vê-lo; mas ela não fazia ideia de como encontrá-lo. A solução foi ir até a sala da sinuca no hotel. Ela apenas torcia para não esbarrar em Gabriela.

Ela encontrou alguns rapazes jogando ali.

— Com licença? — ela disse em voz alta, sem sequer perceber que seu rosto estava manchado de lágrimas. — Algum de vocês conhece o Carlos?

Alguns dos rapazes olharam para ela, sem dar muita atenção.

— O Carlos é um rapaz que costuma jogar por aqui… Ele tava aqui ontem… Vocês não sabem onde eu posso encontrar ele?

— Se for quem eu tô pensando, ele tá numa casa aqui perto — um dos rapazes que estava assistindo ao jogo disse.

— É, isso — ela disse.

— É um magrão meio loiro, de cabelo curto?

— É, é ele mesmo!

— Ele deve tá em casa a essa hora — ele disse. — Eu conheço ele. Ele me convidou pra jogar videogame na casa dele hoje.

— Foi tu a mina que saiu com ele ontem? — disse um segundo rapaz, que estava sentado ao lado do primeiro.

Rosa congelou de vergonha. — Eu acho que sim.

Ele acenou com a cabeça, com certa admiração.

— Onde é que ele mora? — Rosa disse.

O primeiro rapaz levantou-se, meio desconfiado. — Tu precisa falar com ele? Se tu quiser, eu posso te levar lá.

— Só se não for te incomodar — ela disse.

— Não, não, vâmo lá — ele disse, voltando-se então para o segundo rapaz. — Ô, Chico, vamo indo lá?

O outro deu de ombros, levantando-se. — Tá, pode ser.

Os dois então dirigiram-se para a saída do hotel, e Rosa foi atrás. — A gente já tava indo pra lá, mesmo. Tava aqui só fazendo hora.

Os três seguiram para a direita ao saírem do hotel. A rua terminava em outra rua que, à esquerda, terminava no calçadão da beira da praia. Os postes iluminavam um pouco do gramado que ficava na frente do hotel.

— Tu tá bem? — o primeiro rapaz disse de repente.

— Mais ou menos — ela respondeu. — Quer dizer, sim. — Os dois fizeram uma pausa.

— Desculpa, como é que é o teu nome? A gente nem se apresentou. Eu sou o Eduardo, ele é o Chico.

— Prazer — ela disse, um pouco desajeitada. — Meu nome é Rosa.

— Ah, beleza, Rosa. Prazer. Tu… tu é amiga do Carlos, então?

Rosa gaguejou um pouco. — É, a gente… ficou amigo depois de ontem.

— Ah, bom. Eu já conheço ele faz um tempinho. A gente vem pra cá todo ano.

— Tu tem certeza que tu tá bem? — Chico disse, então.

— Sim, tá tudo bem — ela respondeu, sem convicção. Ela respirava pesado, tentando segurar-se.

Depois de virarem à direita, duas quadras adiante, os dois chegaram à casa onde Carlos estava. A casa era cercada por um murinho baixo, com um portão para a garagem e outro para a porta da frente. Eduardo abriu o portão e bateu à porta.

— Tá cheio de gente na casa dele — ele cochichou.

Rosa estava ainda mais ansiosa agora que estava ali. Alguns segundos depois, Carlos surgiu na porta.

— Ô, já chegaram? — ele disse, só depois enxergando Rosa, que estava para o lado, meio afastada. — Rosa! — ele disse sorrindo.

Ela apenas olhou para ele com olhos vidrados.

— Ela disse que queria falar contigo, e não sabia qual era a tua casa — Eduardo disse. — A gente só trouxe ela até aqui.

— Claro, valeu, guris. Querem entrar? — Carlos disse saindo da casa. — Podem ir lá que eu já vou.

Os dois rapazes entraram, e Carlos puxou a porta sem fechá-la. — E aí? Não conseguiu esperar até amanhã? — Carlos disse, sorrindo, e só então percebeu a expressão de angústia no rosto dela. — Aconteceu alguma coisa?

Ela acenou com a cabeça, trêmula, já começando a soluçar. — O Pedro. Aquele meu amigo.

Carlos sentiu uma ponta de pânico no fundo do estômago, e fechou a porta. Rosa virou-se e foi afastando-se. Ele rapidamente foi até ela. — Ele te fez alguma coisa?

— Não, ele não fez nada — ela disse, com a voz lacrimosa. — Ele só mostrou quem ele realmente é.

Ele queria consolá-la, mas ainda tinha receio de chegar perto demais. Por enquanto, ele só queria ouvi-la.

— O quê que aconteceu?

— Ele foi falar comigo — ela disse, esfregando os olhos. — Ele começou a falar sobre o fato de eu ter saído contigo, e começou a dizer umas coisas que eu não entendia direito. Ele falava que me respeitava, que era meu amigo, que gostava de mim, e não sei o quê. Ele dizia que eu podia me decepcionar contigo, que rapazes como tu não mereciam confiança… — Rosa olhou para cima, tentando afogar o pranto e criando coragem para continuar falando. — Eu perguntei, então, se ele não tava falando isso tudo… se não era porque ele queria ser mais do que meu amigo, porque eu acho que seria melhor que ele simplesmente me dissesse.

— Claro — ele disse.

— Mas daí… daí ele disse que ele não podia falar isso, que eu é que tinha que falar… eu tinha que ter essa iniciativa, porque aí eu não ia poder reclamar depois… — Ela pausou, para limpar o rosto que insistia em ficar manchado de lágrimas. — E que ele merecia isso, porque ele foi meu amigo por tanto tempo, e fez coisas por mim, e que não era justo que eu não quisesse ficar com ele. — Ela virou-se para Carlos, soluçando. — É como se eu fosse um produto, entende? Pra ele, ser meu amigo significa que… que ele ia poder me comprar depois…

Ele percebeu que estava ficando cada vez mais difícil para ela falar. Ele pôs o braço ao redor dela, e ela começou a chorar, com o rosto apoiado contra o peito dele. Carlos apenas ficou ali, em silêncio, afagando-a. O pranto dela ainda era triste e derrotado, mas ao menos com um pouco de conforto. Não era o pranto inútil e solitário de antes. Agora ela tinha alguém para ouvi-lo.

— Eu pensei que ele fosse meu amigo de verdade — ela disse, virando o rosto para o lado para poder falar. — Eu nunca imaginei que alguém pudesse fazer isso, achar que poderia me manipular assim… E ele ainda me disse… que eu era inteligente, e deveria entender. Como se eu tivesse que achar certo o jeito que ele tava me tratando.

— Tu tem certeza que ele quis dizer isso mesmo?

— Eu não tenho por que duvidar — ela disse. — Ele foi bem claro. Ele não tava… confuso, perdido, nem nada assim, ele tava totalmente ciente do que ele tava dizendo. E ele parecia que… que não se conformar que eu não aceitava o que ele queria, ele… começou a ficar nervoso, irritado, como se… Eu fiquei… Eu fiquei com medo que ele…

— Rosa, ele não pode te fazer nada — Carlos disse. — Tá tudo bem agora. Tu não precisa se preocupar mais com ele.

— E se ele tentar…?

— Tu tem quem te defenda — ele disse. — Ele não seria louco de fazer nada.

— Eu não quero ficar sozinha, Carlos!

— Olha só, fica calma — ele disse —, não te desespera. Quem é que tá lá na tua casa, junto contigo?

— O Pedro, a Gabriela e os pais dela.

— Tá. E a Gabriela ou os pais dela sabem de alguma coisa?

— Não — ela disse. — Eu saí de casa e não contei nada pra ninguém.

— Então conversa com os pais dela — ele disse.

— Eu não posso!

— Pode sim, Rosa — ele insistiu, gentilmente segurando-a pelos ombros e olhando para ela. — Confia em mim. Se tu não contar isso pra ninguém, vai ser pior. Eu vou te ajudar, é óbvio, mas eu sozinho não posso fazer muita coisa.

— Eu não posso contar pra eles — ela disse, com as palavras cortadas pelos soluços. — Eles não vão acreditar em mim.

Carlos não soube o que dizer. — Eu aposto que vão sim. Tu vai ter que ter coragem e dizer pra eles exatamente o que aconteceu. Eu sei que tu consegue.

— Eu tô com medo — ela disse.

— Tudo bem, é normal ter medo. Mas concentra esse medo pra te dar força pra fazer o que é certo — ele disse, lembrando que ele tentava repetir esse conselho para si mesmo, sem sucesso. — Fica calma, não te desespera, e faz o que for preciso. Eu vou tá aqui pra te ajudar, tudo bem? Mas tu precisa ter a iniciativa.

— Eu vou tentar — ela respondeu, acenando com a cabeça.

— Beleza — ele disse. — Agora eu tenho que te levar pra casa, pro teu pessoal não ficar preocupado contigo, certo? Eu te convidaria pra entrar, mas acho que vai ser pior. Mas eu te levo lá na tua casa, tudo bem?

— Sim — ela disse.

— Certo. — Ele foi até a porta e abriu-a, colocando a cabeça para dentro. — Eu já venho aí, tá? Avisa o Dudu e o Chico que daqui a pouco eu tô aí.

Alguém falou alguma coisa lá dentro que Rosa não ouviu.

— Não, é rapidinho, mas eu tenho que ir — ele continuou. — Eu já venho. — Ele fechou a porta enfim, e olhou para ela com um olhar meio preocupado. — Vâmo lá então.

Ele ofereceu a mão para Rosa, mas ela pôs o braço ao redor dele, apoiando o rosto em seu ombro. — Tu vai mesmo me ajudar?

— Claro que sim, Rosa — ele disse. — Tu sabe que tu pode contar comigo.

Os dois foram andando assim, um abraçado ao outro, pelas ruas mal iluminadas. O som dos grilos e o distante chiado do mar eram sua única—e suficiente—companhia. Nenhum dos dois falou sequer uma sílaba. Os soluços de Rosa iam lentamente cessando, e cada vez mais ela sentia o conforto e a segurança que ele parecia providenciar; mas, ao mesmo tempo, cada vez mais próxima ela estava de casa, mais próxima ela estava de Pedro. Só de saber que ela teria que olhar para ele e ouvir a sua voz, ela ficava com vontade de nunca mais entrar naquela casa.

Ela avisou que estavam diante da casa de Gabriela, e os dois pararam.

— Rosa, promete pra mim que tu não vai deixar ficar assim — ele disse, parando diante dela. — Não fica em silêncio.

— Eu vou tentar — ela disse, baixinho, limpando o rosto com as mangas.

— É a tua iniciativa, lembra? Depende só de ti. Eu sei que tu tem essa capacidade.

— Tudo bem.

— Agora não chora mais e não te desespera — ele disse. — Vai ficar tudo bem.

— Eu não quero entrar lá — ela disse.

— Não diz isso. Eu sei que tu é forte e consegue encarar isso. Eu confio em ti.

— Mas eu não confio.

Carlos suspirou. Ele a entendia bem.

— Não desanima agora, ok? Faz isso por ti e por mim também.

— Tá bom — ela disse, vagarosamente andando até a porta. — A gente vai se ver amanhã, não vai?

— Exatamente como combinado.

— Obrigada, Carlos.

— Não por isso, Rosa — ele disse. — Fica bem.

— Tá.

Aos poucos, ele foi afastando-se. Quando ela percebeu que não havia mais volta, ela abriu a porta e entrou.

Gabriela estava com os pais na sala. Pedro não estava lá. Rosa lentamente foi até uma poltrona e sentou-se, e logo percebeu que a coragem para falar poderia estar em qualquer lugar, menos dentro dela. O estranho é que nem a curiosidade habitual de Gabriela manifestou-se. Os três ficaram em silêncio. Rosa não entendeu por quê.

Passaram-se uns 15 minutos até que a novela acabasse, e então Gabriela se pronunciou.

— O quê que aconteceu, Rosa?

O instinto imediato dela foi de negar tudo. — Nada.

— Nada? Então por que é que o Pedro tá daquele jeito?

Ela gelou. — De que jeito?

— Tá trancado no quarto, não quis conversar com ninguém, e disse que precisa falar contigo.

A realidade desabou sobre Rosa. Tudo estava bem pior do que ela imaginou que estaria: agora ela era obrigada a falar com Pedro. A menos, é claro, que ela contasse a sua versão dos fatos, mesmo sem saber o que quer que Pedro tivesse contado. Mas se ela contasse alguma coisa, era capaz de ser pior.

— Eu não tenho nada pra falar com ele — ela disse.

— É, mas ele não quer saber de outra coisa. Eu só queria saber o que aconteceu — Gabriela disse.

— A gente se desentendeu — Rosa disse —, mas não foi nada de mais.

— Mas foi o suficiente pra ele se trancar no quarto e tu sair sem avisar ninguém.

Era evidente que Rosa teria culpa de alguma coisa. Já não era a primeira vez.

— Eu não quero mais falar com o Pedro.

— É, mas vocês vão ter que se acertar. A gente não pode deixar as coisas assim.

Obviamente não haveria alternativa. Ela bufou pesadamente e foi até a porta do quarto.

— Pedro — ela disse junto à porta. — Sou eu, Pedro.

Houve alguns segundos de silêncio.

— Eu achei que tu não queria mais que eu falasse contigo — ele disse, com um sarcasmo que ela era incapaz de perceber.

— Eu preciso que tu fale comigo agora. Abre a porta.

— Só se for pra falar a sós comigo — ele disse. Rosa sentiu as pernas amolecerem. Gabriela estava ali perto, de braços cruzados. Rosa olhou para ela, como se ela fosse ajudar.

— Eu prefiro que tu venha conversar aqui fora, comigo e com a Gabriela.

— Não — ele disse.

Rosa afastou-se da porta e olhou de novo para Gabriela, como se pedisse socorro, sacudindo a cabeça.

— Pedro, não te faz — Gabriela disse enfim. — Abre aí e vâmo conversar nós três.

— Tu não tem nada a ver com isso — Pedro disse.

Gabriela apenas abriu os braços. — Ele tem razão — ela cochichou. Rosa viu-se perdida.

— Pedro, se eu entrar aí, tu só vai conversar, né?

Gabriela franziu a testa.

— Sim — ele disse.

Rosa suspirou. — Abre então.

Alguns segundos passaram-se e finalmente ouviu-se o ruído da chave girando. A porta mal  abriu, e Rosa entrou, receosa. Gabriela ficou ali olhando.

Pedro fechou a porta, e antes que ele sequer pudesse reagir, Rosa arrancou a chave da fechadura e guardou-a em sua mão cerrada, afastando-se dele em um salto.

— O que é isso, Rosa? — ele disse, levemente sarcástico.

— Eu tô me defendendo — ela respondeu. — Eu sei que ninguém vai acreditar se eu contar o que realmente aconteceu, porque eu já passei por coisas parecidas antes e eu sei que eles pensam que eu sou uma louca e uma mentirosa, e se tem coisa que eu não sou, é louca ou mentirosa. Mas se tu tentar fazer alguma coisa pra mim, eu vou gritar, e aí eles vão ver.

— Rosa, eu já te disse que eu jamais faria qualquer coisa contra a tua vontade — ele disse. — Eu não sou que nem os outros caras.

— Não importa — ela disse. — Eu não quero saber o que tu tem a dizer. Eu só quero que tu pare com essa briga e me deixe em paz. Se tu quiser que eu continue falando contigo, tudo bem, mas me deixa.

— Bom, isso não me basta — ele respondeu. — Eu vou querer algo de ti também.

— O quê? — ela disse.

— Que tu pare de ver aquele cara.

— O nome dele é Carlos — ela disse.

— Não me interessa o nome dele. Eu só não quero que tu veja mais ele.

— Tu não pode pedir isso de mim. Tu não pode me impedir.

— Rosa, entende que eu me preocupo demais contigo — ele disse. — Eu não quero que tu caia na conversa desses caras.

— A escolha é minha — ela disse, subitamente encaminhando-se para a porta. — Eu é que decido.

Pedro então pulou diante da porta para impedir a passagem dela. — Rosa, me ouve…

— Me deixa passar, Pedro.

De repente, com medo que ela gritasse, ele saiu da frente. Rosa abriu a porta e saiu.

— Me dá a chave, Rosa!

Sem titubear, ela foi até a mãe de Gabriela e entregou-lhe a chave do quarto.

— Eu não tenho mais nada pra falar com ele — Rosa disse. — Eu já fiz a minha parte, e agora eu quero dormir.

 

 

“Mãe? Mãe!? Sabia que a tabela periódica tem mais de cem elementos?”

“Sei sim.”

“E que os elementos são ordenados de acordo com o número atômico, que é igual ao número de prótons no núcleo do átomo? Isso significa que não existem dois elementos diferentes com o mesmo número de prótons.”

“Sim, sim, agora come a tua comida.”

“O que pode acontecer é dois átomos com o mesmo número atômico terem diferentes números de elétrons. Eles continuam sendo o mesmo elemento, mas são considerados isótopos. O urânio é encontrado na natureza em três isótopos: o urânio-238, o urânio-235 e o urânio-234.”

“Tá, bom, já chega! Agora fica quieta e come.”

“Mas mãe…”

“Eu disse come.”

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