a coluna do fernie

Caça ao Tesouro – 3º dia, parte 1

Rosa perdeu o sono quando estava recém amanhecendo. A cabeça dela pesava e os olhos doíam. Fora uma noite ruim. Pedro e Gabriela ainda dormiam. Ela quis levantar-se, mas não queria fazer barulho. Ela poderia ficar na cama, mas já estava cansada de ficar deitada.

Ela se sentou, pôs música para tocar nos fones de ouvido, apanhou seu caderno de desenho para esboçar alguma coisa—mas nada lhe vinha à mente. Ela teve vontade de desenhar Carlos, mas ela não conseguia remontar sua fisionomia; além disso, ela nunca fora boa em desenhar rostos. Sempre que ela tentava, eles saíam errado. Então, quando ela desenhava seres humanos, seus rostos eram borrões brancos, como algo saído da capa de algum disco do Boards of Canada.

Sem ideias para criar nada de novo, ela se pôs a continuar um de seus desenhos inacabados. Mesmo assim, o ânimo de desenhar não vinha. Ela espiava Pedro e torcia para que ele não acordasse. Rosa pensou em sair de casa e caminhar na praia, mas teve receio do que poderia acontecer se eles não a encontrassem na cama. Ainda faltava muito para a hora do almoço, quando ela poderia encontrar-se com Carlos. Aquela manhã prometia ser longa.

Enfim, ela teve a ideia de deixar um bilhete escrito sobre sua cama, e sair. Fazendo o mínimo ruído que ela conseguia, ela pegou uma muda de roupas de dentro da mala e foi até o banheiro. Ela se lavou, trocou de roupa e saiu, com o caderno sob o braço, sem que ninguém ouvisse.

Rosa foi direto para a beira da praia, onde sentou-se para desenhar. Dessa vez ela decidiu desenhar o que estava bem diante dela: o próprio mar, que, aquele dia, tinha uma aparência levemente turva e cinzenta. O sol ficou totalmente encoberto por nuvens aquele dia, o que deixava o mar ainda mais escuro. O desenho foi fluindo, e ela perdeu a noção do tempo. Depois de desenhar, ela saiu para caminhar na beira da praia, observando a paisagem bucólica, de poucas casas e extensa vegetação, e só voltou quando cansou. A praia, mesmo com o tempo ruim, ficou movimentada.

Ao chegar ao hotel, ela viu que ainda era um pouco cedo, mas a fome já começava a bater. Ela pensou em voltar para casa para comer, mas a possibilidade de deparar-se com Pedro fazia-a preferir passar fome. Ela se esquecera de levar algum dinheiro para lanchar, e preferiu ficar ali mesmo, tentando desenhar mais um pouco.

Em um dado momento, ela reparou, ao longe, Gabriela e Pedro entrando no hotel. Ela estava em um dos bancos perto da pracinha, e tentou cobrir-se ao máximo para que os dois não a vissem. Felizmente eles passaram sem vê-la. Rosa temeu que eles estivessem procurando por ela, e decidiu sair dali. Dessa vez, ela preferiu caminhar um pouco pelas ruas. Ela foi até a lagoa que servia para banho, porém não estava disposta a caminhar pelas dunas daquela areia fofa e grudenta, e foi para outro lado, vendo as casas de muros baixos, as ruas de terra e grama, e os córregos de água escura que corriam rumo ao mar.

Depois, ela voltou ao hotel, quando achou que já era mais seguro. Os hóspedes estavam almoçando, e ela perambulou por lá, na esperança de encontrar Carlos. Ainda demorou um pouco até que ela o visse sentado ao longe, no calçadão da beira da praia. Ela estranhou que ele estivesse tão distante, mas foi até lá.

Rosa sentou-se ao lado dele, sem falar nada, imaginando que ele perceberia sua presença. Ela não soube se ele não percebeu, ou se não quis dizer nada. Ele estava silencioso, com a expressão fechada, olhando para baixo, encolhido entre seus joelhos. Não parecia o mesmo Carlos de sempre.

— Oi — ela disse, enfim.

— Oi, Rosa — ele disse em um suspiro. A voz dele estava mais pesarosa do que de costume. — Eu não sabia se tu vinha.

— Mas eu te falei que eu vinha — ela respondeu.

— Eu sei — ele disse. Ele levantou a cabeça, tentando não deixar que ela olhasse para o seu rosto—mesmo que ela não costumasse fazer isso. — E aí? Conversou com os pais da tua amiga ontem?

Rosa nem havia pensado nesse assunto, e de fato ela não queria lembrar.

— Eu não consegui.

— Por que não?

— Quando eu cheguei lá, o Pedro tava trancado no quarto, como se eu tivesse feito alguma coisa pra ele. Eles me cobraram que eu conversasse com ele e resolvesse a briga.

— Tá brincando?!

— Claro que não, Carlos — ela retrucou. — Eu já tinha te dito que eles não iam acreditar em mim. Eles sempre acreditam no que os outros falam, mas nunca em mim.

— Mas por que, Rosa? Por que eles fariam isso?

— Acho que eu não inspiro muita confiança. Talvez seja mais fácil acreditar no Pedro, e na Gabriela, que é filha deles. Ou talvez eles sejam mais convincentes, ou mais persuasivos do que eu. Mesmo que eu fale sempre a verdade do jeito mais claro, parece que eles nunca me levam a sério.

— Eles já fizeram alguma coisa parecida contigo antes?

— Mais ou menos. A Gabriela costumava fazer umas coisas escondidas dos pais dela, e eu sempre tinha que mentir e esconder o que ela fazia. A Gabriela dizia que eles iriam me achar uma louca se eu contasse a verdade, porque é isso que eles pensavam de mim. Eles iam achar que eu tava mentindo, porque pra eles a Gabriela sempre falava a verdade, e eu não. E eu acho que por isso eles não me levam a sério.

— Mas, Rosa! — ele disse. — Se a Gabriela faz isso contigo, ela não é tua amiga!

— Ela é uma das únicas pessoas que ainda conversa comigo e me convida pra fazer coisas.

— Mas ela tá te usando, Rosa — ele protestou, virando o rosto para ela, e rapidamente desviou o rosto para o outro lado. Felizmente ela não o vira. — Tu não pode aceitar isso. Esses dois não são teus amigos.

— O Pedro não é mais meu amigo. Mas a Gabriela, até agora, eu sempre considerei que fosse. Talvez o que ela fazia não era muito certo, mas se eu largar ela também, eu não vou ter nenhum amigo além de ti.

— Mas o que importa é ter bons amigos, Rosa — ele disse. — Não adianta tu ficar com certas pessoas que só te fazem mal.

— Pode ser — ela disse. — Tu pode ter razão.

— Eu só quero que tu te cuide, tá?

— Tudo bem. — Os dois ficaram em silêncio por um momento. — Posso te dar um beijo?

Carlos deu um sorriso triste. — Claro, Rosa.

— Na boca?

Ele sentiu um calafrio, e quis chorar. — Não dessa vez.

— Por quê?

— É melhor não, Rosa.

— Tudo bem, mas eu só queria saber por quê.

Ela olhou para Carlos, e ele virou o rosto de novo.

— Tu não olhou pra mim em nenhum momento hoje — ela disse.

— Eu acho que tu tá me contagiando — ele disse, forçando um riso fraco.

— Mas tu não é assim — ela insistiu. — Não é por minha causa que tu passaria a ser. Por que tu não olha pra mim? Eu quero ver o teu rosto de novo.

— Rosa…

Ele suspirou, e enfim virou o rosto para ela. O olho direito de Carlos estava roxo.

— Carlos? — ela disse, com um súbito tom de espanto. — Quem te fez isso?

Em vez de responder, ele desabou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos. Rosa sentiu o chão fugir de baixo dela. Carlos estava chorando? Ela não sabia o que fazer diante disso. Parte dela quis se afastar, assustada, como se a presença dela fosse tóxica para ele. Por outro lado, seria ruim se ela fosse embora assim. Ela se lembrou de que, na noite anterior, os papéis estavam invertidos; e quando ela chorou, Carlos apenas acolheu-a em seus braços e afagou seus cabelos. Se ela tentasse fazer o mesmo, talvez tivesse algum efeito?

Ela tentou, do jeito que pôde, abraçá-lo. Seu abraço era estranho, difícil, e ela tinha a insistente impressão de que não significava nada. Se ele estava chorando, o melhor seria, talvez, deixá-lo chorar em paz. Mas de repente, ele se voltou para ela e caiu em seu colo, com os braços caídos. Rosa tentou apoiá-lo, e ao perceber que ele estava refugiando-se nela, resolveu ficar assim.

Mesmo que aquilo parecesse incorreto para ela, ele estava acalmando-se. Como aquilo era possível? Ela não estava fazendo nada de útil, e era exatamente isso que estava deixando-o mais calmo. Emoções pareciam para ela algo impossível de entender.

— Foi o meu pai, Rosa — Carlos disse, enfim, entre soluços. — Foi o meu pai. Meu pai.

— Por que ele te bateu? — ela disse, sem entender.

Ele se levantou e limpou o rosto, ainda soluçando. — Ele brigou comigo, eu nem lembro por quê. Acho que foi porque eu tinha saído contigo de noite e demorei pra voltar. Eu só sei que… Eu só sei que ele tinha bebido. Quando ele bebe ele fica assim. Qualquer coisa que eu fale dá motivo pra ele brigar comigo. E dessa vez ele me bateu.

— Isso não é certo — ela disse.

— Não, não é certo, Rosa. Não é certo. — Ele apoiou o rosto no ombro de Rosa. — Ainda se fosse só quando ele bebe… mas mesmo sóbrio ele vive reclamando de mim. Qualquer coisa é motivo pra ele me chamar de vagabundo, dizer que eu não faço nada direito, que eu nunca faço nada que ele quer, que eu não me interesso por nada e nunca vou ser nada na minha vida. — Carlos suspirou. — É por isso que eu não quis te levar lá em casa. — Ele fechou os olhos, trêmulo por causa do pranto que começava a voltar. — Se ele soubesse de ti, aí sim ele não me deixava mais em paz.

— Por quê?

— Ele ia me infernizar dizendo que eu só dou atenção pra mulher, que é só isso que eu quero, em vez de dar jeito na minha vida. Claro, não adianta eu estar na faculdade e ter conseguido um estágio, não. Isso pra ele não significa nada. E o pior é que ele ainda ia te encher de defeito, e isso eu não ia aguentar ouvir.

Rosa pausou por um momento, sem saber o que dizer. — Que ruim.

Ele acenou com a cabeça.

— Por que tu não te defende?

Carlos levantou a cabeça. — Me defender? Como?

— Diz pra ele que o que ele diz não é verdade.

— Eu já fui burro de argumentar com ele — ele disse. — Só piorou. Ele não aceita ser contrariado, nunca. Às vezes eu acho que é isso mesmo que ele quer: que eu responda, pra dar mais motivo pra ele me bater.

— E tu não consegue te defender disso?

— Bah, nem fala isso — ele disse. — Se eu tentasse brigar com ele, eu ia parar no hospital. Isso já quase aconteceu.

— E tu nunca ligou pra polícia?

Carlos respondeu, por instinto, com uma risada de descrédito, sacudindo a cabeça. — O que tu acha que eles poderiam fazer?

— Eles podem te ajudar — ela disse.

— Não é assim que funciona, Rosa. Eles não podem fazer nada. E se meu pai descobre, aí sim eu tô morto.

— E por que tu não foge de casa?

Carlos ergueu as sobrancelhas. — Fugir? Pra onde?

— Pra algum lugar onde ele não possa te bater — ela disse.

— Se eu pudesse, eu já teria feito isso há muito tempo — ele respondeu. — Mas eu dependo deles, Rosa. Por enquanto, eu não posso me sustentar sozinho.

— Entendi — ela disse.

— Algum dia — ele disse, depois de uma pausa —, algum dia eu consigo mudar isso. Eu arranjo um emprego legal, com um salário decente, alugo um apartamento bem longe da minha casa. Aí eu me mudo de vez e nunca mais eu volto a ver a minha família. Nunca mais. Um dia eu vou conseguir isso.

— Eu quero te ajudar — ela disse.

— Me ajudar como?

— Do jeito que eu puder. Alguma coisa eu devo ser capaz de fazer por ti.

Carlos sorriu, triste. — Só a tua companhia já significa muito pra mim.

— Pode ser, mas isso não me basta — ela disse, decidida. — Eu queria poder te ajudar de verdade.

— Não te preocupa demais com isso, Rosa — ele disse, olhando para ela, já sem medo de mostrar seu olho roxo. — A gente nem sempre consegue aquilo que quer, e o importante é tu continuar fazendo o que tu sabe fazer melhor por mim.

Foi então que ele reparou no caderno que estava ao lado dela, mas ele preferiu não perguntar nada por enquanto.

— E o que tu sabe fazer de melhor — ele prosseguiu —, é ser a guria mais incrível do mundo.

Rosa quis, por instinto, dizer que não era verdade; mas ela se lembrou de quando ela olhara nos olhos dele pela primeira vez, e sentira-se capaz de acreditar nele por completo. Por algum motivo, ao ouvi-lo dizer aquilo, ela se sentia realmente a guria mais incrível do mundo. Obviamente ela não era, mas, se Carlos tinha esse poder, por que não entregar-se a essa sensação? Não poderia haver nada de errado.

— Posso te dar um beijo agora? — ela disse.

Carlos sorriu, sem tristeza dessa vez, e deixou que ela o beijasse. Aquela coisa de beijar, para ela, parecia tão insensata, mas dava-lhe uma sensação física inigualável, e ela pensava que poderia fazer aquilo o dia inteiro. Estar junto de Carlos parecia torná-la uma pessoa mais completa—o que quer que isso signifique—e até a fome ela já havia esquecido.

— Eu te adoro, Carlos — ela disse, sussurrando, no ouvido dele. Ele se arrepiou, e abraçou-a.

— Tu me faz esquecer tudo — ele disse —, tudo que acontece de ruim, tu me faz esquecer tudo. Nada mais importa quando eu tô contigo.

Rosa não sabia se isso era bom ou ruim. Afinal, ela não conseguia esquecer. O tormento que Pedro causara—e ainda poderia causar—não saía de seus pensamentos, e o problema com o pai de Carlos também não.

Em seu íntimo, Rosa não conseguia entender o que exatamente ela devia fazer em relação ao problema de Carlos. Mais especificamente, ela não sabia como sentir-se. Ela só conseguia pensar que era uma grande injustiça que Carlos, justo seu melhor amigo, tinha que passar por aquilo. Ao vê-lo chorar em seu colo, ela não conseguia fazer mais do que ficar ali, mas ao menos sentia-se útil por oferecer-lhe algum tipo de conforto. Era possível chamar aquilo de conforto? Carinho, talvez? Quem sabe. O fato é, era estranho para ela. Mas Rosa queria ajudá-lo. Ele merecia toda e qualquer ajuda que ela poderia oferecer, e se aqueles estranhos momentos fossem a maior ajuda que ela poderia oferecer, por mais ilógico que parecesse, então que fosse.

O que ela ainda tinha medo de pensar a respeito era por que ela queria ajudá-lo daquele jeito. O que havia nele, afinal, que a motivava a agir assim? Não parecia haver lógica nesse seu comportamento, mas isso não a preocupava. A companhia de Carlos era boa para ela, assim como a ideia de fazer companhia a ele. Não parecia haver problema ou risco nisso; mas, ainda assim, não fazia muito sentido.

— Eu quero ficar contigo pra sempre — ela disse.

Carlos suspirou ao ouvido dela. — Quer ser minha namorada?

— Quero! — ela exclamou em um impulso, abraçando-se a ele. O pranto tomou-a de arrasto. Algo incontrolável fervilhava e pulsava dentro dela. — Eu te amo!

Ele ficou abraçado a ela não se sabe por quanto tempo. Ela já nem se importava com o horário, ou qualquer coisa assim. Naquele momento, para ela, o tempo poderia simplesmente parar de passar. Estar com Carlos era o suficiente.

Depois daquilo, eles ainda ficaram sentados em silêncio, um ao lado do outro.

— Rosa, eu preciso te dizer — ele disse. — Eu vou embora pra Porto Alegre amanhã.

Ela sentiu um vazio no estômago. — Não…

— Eu ficaria contigo se eu pudesse. Mas acredita em mim, eu tenho que ir.

Rosa apenas sacudiu a cabeça.

— Tu volta pra casa quando?

— No sábado — ela disse.

— Mas então vai ser rápido! Logo, logo, a gente vai poder se ver de novo. E tu vai poder aproveitar a praia um pouquinho mais — ele disse, sorrindo.

— Eu queria ficar contigo.

— Eu sei, Rosa, eu sei — ele disse, abraçando-a. — Rosa. Meu amorzinho. Eu posso te chamar assim?

— Pode sim — ela disse, um pouco incerta, mas sem sentir-se incomodada com a ideia.

Ouvir sobre a partida de Carlos trouxera-lhe de volta alguns dos sentimentos ruins que a presença dele ajudava a afastar. A fome voltava a apertar no estômago.

— Carlos, eu tô com fome.

— Sério? Não tem problema — ele disse, levantando-se. — A gente pode comer alguma coisa ali no Ondas Bar.

Ele ofereceu a mão para Rosa, mas ela se levantou sozinha.

— Mas eu não trouxe dinheiro — ela disse.

— Mas é lógico que eu vou pagar pra ti, né? — Carlos se pôs a caminhar, e ela teve que segui-lo.

— Eu não queria que tu fizesse isso. Não tem sentido.

— Rosa, eu tô te convidando — ele disse. — Eu faço questão que tu venha comigo.

Ela se conformou, e foi andando ao lado dele. Carlos reparou de novo naquele caderno que ela agora carregava sob o braço. De repente, ela pôs o outro braço ao redor da cintura dele. Um pouco desajeitado, ele fez o mesmo com ela.

Os dois chegaram ao bar, que ficava ao lado do hotel. Era um lugar grande, com várias mesas, e algumas mesas de sinuca e pingue-pongue no fundo. As caixas de som espalhadas pelo interior tocavam o som de alguma rádio. O locutor anunciava a música de uma atração do festival de música que aconteceria alguns dias depois.

— Quer alguma coisa em especial? — ele perguntou, debruçado no balcão.

Rosa examinou o quadro com o cardápio, e não tinha certeza. — Não sei. Pra mim, pode ser qualquer coisa.

— Se tu tiver com muita fome, pede um xis.

Ela reparou que o preço era um pouco alto, mas ficou constrangida de falar alguma coisa.

— Já sei, vamo dividir um — ele disse.

Carlos fez o pedido e pagou, e os dois foram até uma mesa. Rosa pôs o caderno no colo e ficou em silêncio. Carlos apoiou os cotovelos na mesa, e também ficou calado. Ela achava estranho encarar aquele olho roxo. Ela tinha a constante vontade de curá-lo de alguma forma, como um toque mágico ou algo assim. Mas nada que ela pudesse fazer seria útil.

— Fiquei curioso em saber o que tem nesse caderno — ele disse.

— Não é nada demais — ela respondeu.

— Eu posso olhar, ou é algo pessoal?

— Não tem problema — ela disse, alcançando-lhe o caderno.

Carlos se surpreendeu ao abri-lo e ver, na primeira página, desenhos intricados de árvores e plantas, feitos totalmente a lápis. Virando a folha, de um lado havia alguns rabiscos avulsos de objetos, frutas, bichos de pelúcia e pessoas sem rosto; do outro lado, reproduções de capas de discos do Yes e do King Crimson.

— Tu é muito boa nisso — ele disse, olhando as outras páginas. — Caramba, tu tem talento!

— Isso não é talento — ela respondeu. — É prática.

— Quer dizer que, se eu praticasse, eu poderia desenhar desse jeito? Eu duvido — ele disse.

— Tu já tentou?

— Bom, não, nunca.

— Então tu não tem como saber — ela disse.

— É provável — ele respondeu. — Mas tu não acha que tu tá desmerecendo o teu trabalho dizendo que basta praticar pra fazer igual?

— Claro que não — ela disse. — Cada um se dedica àquilo que gosta, e eu gosto de desenhar. É isso.

— Bom, mesmo assim, teus desenhos são muito bonitos — Carlos disse, analisando algumas das paisagens desenhadas.

— Obrigada — ela disse.

Carlos largou o caderno sobre a mesa, e olhou diretamente para ela. — Mas, sabe, Rosa… eu não consigo deixar de pensar que tu deveria resolver o teu problema com esse tal de Pedro. Tu não pode deixar que fique assim.

— Então o que tu sugere que eu faça?

— Eu ainda acho que tu devia perder o medo e contar pros pais da tua amiga — ele disse. — Tu não pode ficar pensando que eles não vão acreditar em ti.

— Mas é verdade — Rosa disse. — Eu sei como a Gabriela é.

— Mas a Gabriela não tem nada a ver com isso — ele respondeu. — É com os pais dela que tu deveria conversar.

— Eles vão conversar com a Gabriela — Rosa disse —, e ela vai dizer que eu tô inventando história. Ela é assim.

Carlos calou-se, sem saber como prosseguir.

— Uma vez — ela disse —, eu saí com a Gabriela pra conhecer uns amigos dela. A gente foi pra um lugar e ficou conversando. — Rosa parecia olhar para um ponto fixo na parede, batendo com os dedos na mesa. — Um dos guris começou a se aproximar de mim. Ele tentava me agarrar, e dizia que queria fazer coisas comigo. — A respiração dela começava a ficar pesada, e ela batia com a mão na mesa, com os dedos dobrados. — Eu dizia que eu não queria nada, mas ele me mandava ficar quieta. Os outros guris estavam com a Gabriela, e nem ela nem eles viam nada. Esse guri começou a me apertar, e queria me beijar a força.

Carlos estava com os olhos fixos nela, em choque. Ela batia a mão na mesa com cada vez mais força, como se aquele fosse um crescendo para algo realmente climático.

— Eu só me lembro dele me dizendo pra ficar quieta… Ele me agarrava cada vez mais forte, e por mais que eu tentasse sair, ele não deixava. E ele queria me beijar. — A respiração dela estava agressivamente forte, e de repente a mão dela se transformou em um punho cerrado e avançou pelo ar. — Aí eu dei um soco nele!

A mão dela caiu sobre a mesa, e ela olhou para baixo. — Ele saiu me xingando, dizendo que eu era uma puta. A Gabriela veio me perguntar o que aconteceu, e eu contei pra ela. Ela me disse que eu tava inventando, e que eu tava ficando louca. Ela disse que era melhor eu não falar isso pra ninguém, senão eles iam me internar.

Carlos apoiou o rosto nas mãos, apavorado.

— Rosa, e tu ainda anda junto dessas pessoas? Tu acha que eles são teus amigos?

— Mas, Carlos, e se eu estiver ficando louca mesmo? — ela disse. — Eu não quero ficar louca. Eu não quero. Eu não quero.

— Rosa — ele disse, esticando as mãos para segurar as dela. Bem nessa hora uma atendente do bar lhes trouxe um xis dividido em duas metades, em um prato para cada um. Carlos tirou as mãos da mesa, e aguardou que eles fossem servidos e que a atendente fosse embora.

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