6º dia
Carlos acordou quando a luz do sol já entrava pelas frestas da veneziana. Do lado de fora do quarto, ouvia-se barulhos de sua mãe na cozinha e o som abafado da TV. Estava um pouco quente, e ele viu que o ventilador, que ele deixara ligado antes de dormir, estava desligado. Poderia ter sido Rosa, mas o mais certo é que sua mãe entrara no quarto e decidira desligar, por achar que não estava tão quente.
Com cuidado, ele se virou de lado o máximo que pode, para olhar para o rosto de Rosa. Ela estava dormindo ainda, deitada de lado, virada para ele, com a boca levemente aberta, com as pernas encolhidas. Por algum motivo, aquela era a visão mais doce e singela que ele havia visto desde sempre. Ele se sentia em paz ao ver Rosa ali do lado, dormindo, como se nada de errado estivesse acontecendo no mundo, como se ninguém estivesse sofrendo, como se sua família sequer existisse, como se aquele acidente houvesse acontecido não há dois dias, mas há dois séculos.
Carlos tinha dificuldade em ajeitar-se na cama, por causa do peso sobre o braço. Alguns minutos depois, Rosa começou a mexer-se na cama. Ela esfregou os olhos, passou a mão no rosto, abriu os olhos como se suas pálpebras fizessem força para fechar de novo, lentamente olhou para cima e viu Carlos, olhando para ela, com um sorriso bobo.
– Bom dia, amorzinho – ele murmurou.
– Bom dia – ela disse, com uma voz arranhada, fruto de grande esforço. – Carlos, foi sem querer, mas eu molhei o teu travesseiro. Me desculpa.
Carlos começou a rir. Ele já imaginava isso quando viu-a dormindo de boca aberta, mas não conseguia conter o riso.
– Por que tu tá rindo? – ela disse, claramente irritada.
– Ah, Rosa – ele disse –, é que mesmo dizendo isso tu fica tão linda!
Ela fechou a cara. – As pessoas riem de mim porque me acham estranha, ou porque eu pareço uma louca.
– Rosa, jamais eu vou fazer isso! – ele disse, esticando a mão para tentar tocar-lhe o rosto. – Eu nunca vou rir de ti por te achar estranha, muito menos louca. Eu prometo. Tá bom?
– Não promete nada – ela disse. – Tu não sabe se tu vai cumprir.
Ele pensou em insistir, mas ela parecia tão irredutível que ele achou melhor obedecer. – Tá bom. Isso não é promessa, é lei. Artigo nº 1 da Constituição Federal de Rosa e Carlos, de 2001.
Ela olhou para ele, em silêncio, por um instante. – Às vezes tu parece tão estranho quanto eu.
Carlos riu de novo, e com muito esforço, foi saindo da cama para deitar-se no chão ao lado dela. – Ah, amorzinho! – Ele deitou, virado para cima, olhando para ela. – Nós dois somos normais. Os outros é que são loucos. – Ele sorriu. – Esse é o Artigo nº 2.
Aos poucos, ela pareceu concordar com ele, e deu-lhe outro daqueles beijos repentinos e longos, mas não demorou-se tanto dessa vez. – Puxa. Esqueci que eu não escovei os dentes.
Carlos cobriu a boca, tentando não rir, mas não resistiu, e desatou em gargalhadas.
– Para, Carlos!
Ele fazia força para parar de rir, respirando fundo. – Ah, Rosa, não faz isso!
– Fazer o quê? – ela disse, incrédula. – É tu que tá rindo de mim.
– Tu te preocupa com umas coisas tão pequenas – ele disse –, e tu leva isso tão a sério.
– Isso não é coisa pequena – ela disse. – Eu não quero enfiar o meu bafo na tua cara.
– Rosa, para com isso – ele disse. – O bafo é o de menos. O que me importa é o teu carinho.
– Eu posso expressar o meu carinho sem te beijar – ela disse –, principalmente antes de escovar os dentes. E além disso, tu acabou de violar a tua própria lei. Artigo nº 1, lembra?
– Mas eu não ri por te achar estranha!– ele protestou.
– Ah, não? – ela retrucou. Ele não sabia como, mas mesmo quase sem entonação, ela parecia petulante. – Então tava rindo por quê?
– É por causa do jeito sério que tu fala. Não é que seja estranho, mas é que me pega de surpresa, e eu não sei como reagir. Aí eu dou risada. Mas não é por maldade, eu juro.
– Pra mim, sempre que riem de mim é com maldade.
– E tu acha que esse é o meu caso também? – ele disse. – Mesmo quando eu digo que não?
– Sei lá – ela disse, virando-se para cima. – Eu me acostumei com isso. Eu não me acostumei ainda a muitas coisas. Tu parece às vezes que já entende tudo sobre como é namorar alguém, e faz isso com uma naturalidade que eu não consigo entender. A gente começou tão rápido, tão de repente, e há tão pouco tempo, que isso tudo ainda é muito novo. Eu não me acostumei, por exemplo, a tu me dizer que eu sou linda. Eu não consigo processar isso, sabe? Não é que eu pense que tu esteja mentindo, mas é que, pra mim, isso soa errado. Eu sinto como se tu ainda não me conhecesse de verdade, e só estivesse dizendo isso porque tu não descobriu quem eu realmente sou por dentro. Ou isso, ou é por pura pena. E aí, quando tu ri desse jeito, não me parece outra coisa se não deboche. Tu pode dizer que não, mas é isso que parece pra mim.
Carlos suspirou. – É, eu vou ter que me adaptar a isso. Mas tu precisa confiar em mim, Rosa.
– Eu tento – ela disse. – Mas nem sempre eu consigo me convencer tão fácil assim das coisas que eu acho.
– Tudo bem – ele disse. – Pode ser só uma questão de tempo.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, até que decidiram levantar-se. Carlos convidou Rosa para tomar café na cozinha, e conversar sobre coisas banais. A mãe dele estava na sala, com a TV ligada, trabalhando nos bordados que ela fazia para vender.
– Eu sempre pensei como é ter irmãos – Carlos disse –, dividir a casa com outras pessoas, conviver com elas todo o dia. Eu tenho curiosidade, às vezes.
– Eu não sei como é não ter irmãos, então eu acho que eu não posso dizer – ela disse.
– Tu gosta deles?
– Gosto – ela respondeu. – Na maioria das vezes.
– Eles te incomodam?
– Sim, com frequência.
– E tu acha que vale a pena a companhia deles?
– Não sei – ela disse. – Nunca pensei nisso.
Carlos ponderou por uns instantes. – Pois é. Às vezes eu tento imaginar se a companhia de um irmão não me faria bem. Sei lá, às vezes eu me pego pensando nessas coisas.
– Talvez isso não te faça bem – ela disse.
Ele franziu a testa. – O que, exatamente?
– Não te faz bem ficar pensando se te faria bem ter um irmão – ela disse –, porque tu não tem. Não é uma coisa que tu possa escolher. Tu não tem controle sobre isso, então eu acho que, nessas situações, o melhor é aceitar o que tu tem.
– Tu deve ter razão – ele respondeu. – Mas isso é uma coisa que eu penso sem perceber, entende? É quase inconsciente às vezes.
– Não sei se eu entendo. É muito estranho essa coisa de não ter controle sobre o que a gente pensa.
– Isso nunca te acontece?
– Na verdade acontece sim – ela disse –, mas mesmo assim eu não entendo.
– A nossa mente nos confunde às vezes, né?
– É, verdade.
– Talvez isso seja bom – ele disse.
– Por quê?
– Porque eu acho que é assim que surgem as melhores ideias.
– Não sei se eu concordo.
– Tu nunca teve essa impressão?
– Não – ela disse.
– Bom, eu sei lá. Mas eu acho que, se a gente tivesse controle sobre os nossos pensamentos 100% do tempo, talvez a gente seria bem mais limitado.
– Pode ser – ela disse.
– Por exemplo, quando a gente se apaixonou – ele disse. – Não foi exatamente uma coisa controlada, foi?
Ela pensou por alguns instantes. – Bom, eu nem mesmo sei como aconteceu.
– Pois é – ele disse. – E mesmo assim, olha a gente aqui.
– É mesmo.
A conversa meio que parou, como se os dois tivessem chegado ao fim da linha. Depois disso, Carlos a levou até o seu quarto para mostrar alguns dos jogos que ele tinha em seu computador.
– Incrível isso de tu ter um computador dentro do teu quarto – ela disse, enquanto o computador ligava.
– Por quê? Vocês não têm?
– A gente tem, só que fica na sala, pra todo mundo poder usar.
– Nossa, que saco!
– É, pra mim não é tão ruim. Eu não uso tanto assim.
– Vocês têm Internet?
– Sim, a gente tem – ela disse. – Mas meus pais só deixam usar nos fins de semana. Dizem que é mais barato.
– É, isso é verdade.
– Às vezes os meus irmãos ficam de madrugada usando. Eu não sei o que eles tanto fazem.
Carlos teve uma vaga ideia do que seria. Assim que o computador ligou, ele começou a mostrar seu jogos. Em sua maioria eram jogos de estratégia, com algumas exceções.
– Eu tenho mais jogos que eu baixei e gravei em CD, mas no momento, os que eu tenho instalado são esses.
O mais recente que ele tinha era um jogo de tiro em 1ª pessoa chamado Deus Ex. Ele ofereceu para Rosa experimentar o jogo, mas ela preferiu nem tentar, por falta de prática.
– Bom, esse eu acho que não vou conseguir jogar – ele disse –, porque eu preciso usar o teclado e o mouse ao mesmo tempo. E, bom, desse jeito vai ser difícil.
Ele decidiu abrir um jogo de estratégia de guerra, chamado Red Alert, que ele podia jogar apenas com o mouse. Ela ficou assistindo ele jogar por um tempo; ele era razoavelmente habilidoso, e havia algo de empolgante em assisti-lo. Uns dez minutos depois, porém, ele começou a achar que estava deixando-a entediada, e resolveu parar. Então ele abriu o jogo Civilization 2, mais antigo, e ofereceu para ela jogar também.
– Mas eu disse que eu não sei jogar, Carlos – ela disse.
– Eu sei, mas esse não precisa de habilidade. Só precisa de raciocínio. E se a gente perder, não tem problema.
– Tá bom, mas então me explica como funciona.
Ele criou um novo jogo, na configuração mais fácil e rápida, e logo começou a explicar as regras mais básicas. Antes que eles pudessem fundar sua primeira cidade, a mãe dele entrou no quarto.
– Carlos, eu tô indo pro hospital agora. – Carlos virou-se para olhar para ela, e ela fez uma pequena pausa. – Tu não vai então?
– Não, hoje não – ele disse. Sua mãe estava com uma clara expressão de desgosto; não só por ele não ir junto, mas provavelmente porque ele ficaria sozinho com Rosa.
– Tá, mas vê se vai algum dia desses. Eu tô levando o celular. Qualquer coisa, me liga.
– Pode deixar, mãe.
Ela então virou as costas e foi embora. Os dois ouviram o barulho da porta da frente fechando, e voltaram para o jogo. Rosa ficou extremamente tensa, porém: ficar sozinha com Carlos, no quarto dele, não era algo que deixava ela à vontade.
– Carlos, eu não sei se eu quero ficar aqui – ela disse, com uma voz trêmula, nada característica dela, batendo com os dedos na perna.
– Por que, Rosa? – ele disse, espantado.
– A gente tá sozinho, aqui. Eu não me sinto bem.
– Rosa – ele disse, virando-se para ela. – Eu te disse que eu jamais iria te forçar a qualquer coisa. É lei, não lembra?
– Eu sei disso. Mas ainda assim…
– Tu não acredita em mim?
– Não é isso – ela disse, frustrada consigo mesma. – É que isso… me lembra de certas coisas.
– Que coisas?
Rosa bufou. – Eu não sei se eu devia falar sobre isso.
– Eu acho que deve – ele disse. – Não é bom ficar com coisas ruins guardadas assim. E tu sabe que, pra mim, tu pode falar qualquer coisa.
Ela pareceu concentrar-se, batendo com os dedos sempre em ritmos constantes, olhando para um ponto fixo. – Lembra daquela vez que eu te contei… sobre um cara que tentou me beijar a força?
– Lembro sim.
– Essa não foi a última vez que ele me viu – ela disse. – A Gabriela me levou pra casa do irmão dele uma vez, quando os pais dele não estavam em casa. Eu não sabia que eles eram irmãos. Tinha um monte de gente lá, eu acho que os pais desses caras iam passar o fim de semana viajando, ou algo assim. A Gabriela me levou, eu não sabia exatamente como ia ser. Eu comecei a me incomodar com o barulho e o movimento, e entrei no quarto dos pais dele. Eu só tava olhando as lombadas dos livros que eles tinham em uma prateleira, e aquele cara entrou. Eu tava sozinha, eu não sabia o que ele ia fazer. Ele veio pra cima e agarrou os meus braços, e tentava me beijar, e eu não deixava. Ele dizia “Me bate agora! Me bate agora! Quero ver se tu consegue”, agarrando os meus braços. Eu tava com muito medo, eu pensei em gritar, mas fiquei com medo que ele me batesse. Então ele me jogou na cama, e deitou por cima de mim. Ele era muito forte, e eu não conseguia me defender. Eu não lembro mais o que eu fez, mas eu sei que, de repente, todo mundo entrou no quarto, gritando, falando, dando risada. O cara saiu de cima de mim, e eu consegui sair junto com todo mundo. Aí eu liguei pra minha casa e pedi pros meus pais irem me buscar. Eles me xingaram quando eu cheguei em casa.
Uma raiva quente subia do estômago de Carlos, ainda mais por ele saber que não podia fazer nada. – Rosa, isso é horrível – ele disse.
– Eu não tô dizendo que tu vá fazer a mesma coisa. É que o medo que eu sinto é quase o mesmo que eu senti daquela vez. É como se, a qualquer momento, tu poderia me agarrar que nem ele, e eu não conseguiria fazer nada.
– Eu jamais vou fazer isso, Rosa – ele disse. – E isso sim eu prometo. Tu pode achar que eu não devia, mas eu prometo mesmo assim.
– Carlos, tu não entende – ela respondeu. – Eu não quero sentir esse medo! Tu realmente acha que eu penso racionalmente que tu poderia fazer isso comigo? É claro que não. Eu não sou assim.
Ele suspirou, sem mais saber como reagir àquela situação. – Então tu vai embora?
Rosa apoiou o queixo nas mãos, pensando. – Eu quero ficar contigo, Carlos.
– Então quem sabe a gente não se concentra no jogo?
Ela ergueu a cabeça e olhou para o monitor do computador. – Eu posso tentar.
– Então senta aqui que eu vou te mostrar – ele disse, prontamente levantando-se da cadeira.
Rosa sentou-se diante do computador, e Carlos ao lado dela. Com toda paciência, ele foi explicando para que serviam os settlers, qual era o melhor terreno para fundar a primeira cidade, como eram feitas as construções e treinadas as unidades, e todo o resto. Rosa operava o computador com profissionalismo, e aos poucos ia perguntando o significado dos botões e dos menus, e em seguida já ia praticamente jogando sozinha. Carlos ficou apenas assistindo, e ele falava cada vez menos.
O tempo passou rapidamente. Rosa decidiu iniciar um novo jogo, pois aquele estava indo de mal a pior—dessa vez, ela decidiu jogar com os Mongóis ao invés dos Romanos. A mãe de Carlos chegou em casa, cumprimentou os dois, e logo foi fazer suas atividades. Só então Rosa percebera como o seu medo havia cessado completamente.
– Eu acho que tá ficando meio tarde – ela disse, a certa altura do jogo. – É melhor eu ir pra casa.
– Tem certeza? – ele disse, consultando o relógio do computador. – São 4 horas.
– É, mas os meus pais não estão acostumados a eu ficar fora de casa tanto tempo.
– Ah, bom, eu te entendo.
Ela se levantou para pegar a sua bolsa, e Carlos saiu com ela para acompanhá-la até a parada de ônibus. Ele foi explicando o ônibus que ela devia pegar para voltar, e onde ela devia descer. Ela rapidamente entendeu.
– Se tu puder, me liga hoje de noite, só pra eu saber que tu tá bem – ele disse.
– Tudo bem.
Sem titubear, ela o beijou. Prontamente ele a abraçou, afagando seus cabelos. O beijo foi ficando mais intenso, e ela sentiu como se suas pernas amolecessem, e ela fosse queimar por dentro. Algumas pessoas que passavam por ali lançavam olhares de reprovação, mas nenhum dos dois conseguia se importar.
Ela ficou abraçada a ele até o momento em que o ônibus chegou. Os dois fizeram sinal, e ela subiu, sem dar tempo para que eles se despedissem direito.
Rosa desceu do ônibus seguindo as instruções dele, e logo pegou o ônibus que a levaria para casa. Ela entrou no prédio onde morava, e enquanto subia as escadas, ainda sentia como se estivesse no céu.
Bastou entrar em casa para que o sentimento cessasse um pouco. Sem falar nada, ela tentou entrar em seu quarto o mais rápido que podia, mas logo sua mãe a deteve.
– Rosa, que história é essa de sair pra dormir na casa dos outros sem me avisar? – ela disse, parada no marco da porta do quarto de Rosa.
– Eu não saí pra isso – Rosa respondeu, com a voz apagada, como se tivesse acabado de acordar em uma ressaca. – Eu tive que ficar lá porque ficou tarde, e eu fiquei com medo de voltar sozinha.
– Eu não quero mais saber disso, hein? – a mãe dela respondeu, como se Rosa não houvesse dito nada. – Da próxima vez, vê se me avisa antes.
– Mãe, eu só fui acompanhar o Carlos pra casa – Rosa disse, notando que seu pai estava ali por perto, ouvindo a conversa sem interferir. – Ele tava no hospital. Ele sofreu um acidente e se machucou, e eu só fui com ele pra casa pra ele não ir sozinho. Foi só pra isso que eu saí.
– Tu não ouviu o que eu disse? Não precisa dar explicação. Eu não quero que isso se repita, e pronto. Aí depois, a cada semana tá dormindo na casa de um, e eu sem saber de nada
Rosa não conseguiu esconder o quanto ela se irritou com essa frase. – Mãe, o Carlos é o meu namorado.
A mãe dela teve um leve sobressalto.
– Êpa, eu ouvi isso direito? – o pai dela disse, entrando no quarto, enfiando-se entre a mãe dela e o marco da porta. – Quer dizer que agora tu arranja namorado sem a gente saber de nada, e já sai pra dormir na casa dele? Desde quando tu foi criada assim?
Rosa sempre tinha receio de enfrentar o pai, mas não podia suportar ser injustiçada. – Eu já expliquei, não foi pra isso que eu fui lá.
– Tu não ouviu a tua mãe? – ele retrucou. – Isso não é pra se repetir, nem que tu ligue pra eu te buscar, ou que tu pegue um táxi então. E quanto a esse fulano, eu não quero mais saber de tu indo na casa dele até que ele venha aqui e eu possa conhecer exatamente quem ele é, entendeu?
Ela teve vontade de lembrar seu pai que o nome dele era Carlos, mas aí já seria demais. Os pais dela saíram do quarto, resmungando sobre o ocorrido. Desencantada, Rosa fechou a porta do quarto e caiu sobre a cama, sem conseguir esboçar reação.
A porta do quarto se abriu; era a mãe dela. – E não bate a pota. – Ela saiu, deixando a porta aberta.
Rosa sentia vergonha de sair de seu quarto. Ela não conseguia conformar-se com a atitude de seus pais, que pareciam transformar aquele gesto singelo e verdadeiro em uma transgressão, um pecado. Ela não conseguia ver nada de errado em ter dormido na casa de Carlos. Não houve crime algum. Mesmo assim, ela se sentia envergonhada por isso. Era difícil agora recorrer às lembranças boas daquelas últimas horas sem sentir-se suja, contaminada por algo indiscernível, algo feio, amorfo e invisível, que merecia ser condenado.
Ela se lembrava de conversas de seus irmãos, de vezes em que eles haviam passado a noite sabe-se lá onde, com quem e fazendo o quê. Eles nunca foram repreendidos. Talvez eles apenas foram espertos de nunca terem deixado seus pais saberem, ou então eles tinham carta branca para fazer isso. No caso deles, tudo bem. Ela quase conseguia sentir em seu corpo, em sua pele, em suas roupas, algo de errado e ruim; só não dava para entender o quê.
Mais tarde, perto do horário do jantar, ela ligou para a casa dele. Ele atendeu, e ela se identificou.
– Oi, meu amorzinho! – ele disse, animado. – Tá tudo bem contigo?
– É, tudo – ela disse. Era difícil e estranho para ela mentir.
– Chegou bem em casa?
– Cheguei. Olha só, Carlos, eu posso te pedir uma coisa?
– Claro, Rosa.
– Tu pode vir aqui amanhã? Os meus pais querem falar contigo.
– Por quê? – ele disse, surpreso. – Aconteceu algum problema?
Ela não soube o que dizer. – Não… Não é nada. Mas mesmo assim, tu poderia fazer isso?
– Claro que sim. Eu só preciso do teu endereço. Deixa eu pegar alguma coisa aqui pra anotar.
Rosa deu-lhe seu endereço, o ônibus que ele devia pegar, e pontos de referência para ele não se perder. Carlos anotou tudo. Ele se despediu com carinho, mas ela não conseguia sentir-se à vontade.
“Rosa, tu não pode viver sozinha o tempo todo. Tu precisa fazer amizade, se enturmar.”
“Eu tento, professora, mas eu não consigo.”
“Mas tu tem que te esforçar mais, Rosa. Se tu só ficar quieta no teu canto o tempo todo, tu não vai conseguir. Tem que dar uma chance pra eles.”
“Mas eles vivem rindo e debochando de mim, não importa o que eu faça.”
“Não dá bola pra isso, ignora.”
“Por que é que eu tenho que ignorar? Por que é que eles não param?”
“Eles são assim mesmo, Rosa.”
7º dia
O dia passou com um certo marasmo para Rosa. Seus pais ainda comentavam sobre o dia anterior, principalmente sabendo que Carlos deveria ir lá à tarde. Rosa estava ansiosa com isso, e temia pelas possíveis consequências. Ela não conseguia manter-se otimista.
Quando o interfone tocou, a mãe de Rosa foi atender. Era ele.
Carlos subiu as escadas sem qualquer pressentimento ruim. Para ele, era apenas uma visita. Ao entrar na casa dela, a hostilidade parecia pairar no ambiente. O pai dela estava de pé no meio da sala, e os irmãos dela sentados no sofá. A mãe, que abrira a porta, sentou-se também.
Apenas Rosa não estava lá.
– Então tu é o Carlos? – o pai dela disse.
– Sim, sou eu – ele respondeu, pensando em como cumprimentá-los.
– Que idade tu tem?
– Eu tenho 20.
– O que tu faz da vida?
Ele pausou um pouco, imaginando se aquilo seria uma espécie de interrogatório. – Eu tô cursando a faculdade de Engenharia de Produção, e fazendo uma bolsa de iniciação científica. Só que no momento eu tô de férias.
– Tá todo machucado por quê? Te meteu em briga?
– Não – Carlos disse, tentando não sentir-se ofendido. – O olho roxo foi o meu pai. O resto foi no acidente, também graças ao meu pai. Quando ele bebe, eu nunca sei o que vai me acontecer. Felizmente ele me deu todos os exemplos de como não ser uma boa pessoa.
O pai dela ficou meio sem saber o que dizer. Carlos queria perguntar onde estava Rosa, mas achava melhor aguardar. Enquanto isso, Rosa tentava ouvir a conversa, com a orelha colada na porta do quarto. As ordens de seu pai foram explícitas: “não sai daí”.
– Então, o que tu quer com a minha filha?
Carlos, já cansado daquilo, pensou um pouco. – Eu não diria que eu quero alguma coisa com a Rosa. O que eu quero é ser motivo de felicidade pra ela, assim como ela é pra mim; ser alguém de quem ela possa se orgulhar em chamar de namorado, assim como eu me orgulho dela. Eu quero ser alguém que compreenda ela, que ajude ela, que não julgue nem condene ela, que esteja junto com ela sempre que ela precisar. Eu só quero dar pra ela tudo que eu posso oferecer de melhor, que é o mínimo que ela merece. É só isso.
O pai ainda ficou encarando-o por alguns instantes. – Tu tá disposto a assumir um compromisso com a minha filha?
– O meu namoro com ela já é um compromisso – Carlos disse.
– Não, não me vem com esse papo aí, que tu não sabe o que é comprometimento. Tu tem a recém 20 anos e tá só namorando. Tu não sabe o que é isso.
– Pode ser, mas o que eu quero dizer é que eu levo isso muito a sério. Eu não tô brincando com a sua filha, e eu não vou largar ela de uma hora pra outra, sem dar satisfação, por qualquer motivo que seja.
– Se tu te casasse com a minha filha – o pai disse –, tu teria condições de sustentar ela?
Carlos coçou a cabeça, perplexo. – Eu não vejo por que ela não poderia trabalhar também, e nós nos sustentarmos juntos.
– Eu tô perguntando – o pai interrompeu –, de onde tu vai tirar o teu sustento.
– Bom, eu tô cursando a faculdade justamente pra isso.
– Tu sabe que hoje em dia um diploma não significa nada, né?
Carlos olhou de relance para os irmãos de Rosa, que o encaravam sem esboçar emoção. – Na verdade, em um concurso público, um diploma significa tudo.
O pai deu-lhe um olhar enviesado, e Carlos percebeu que talvez ele fora longe demais; mas ele tentou não mostrar-se intimidado. – Mas eu tô lá também pelo aprendizado – Carlos prosseguiu. – Eu vou trabalhar nessa área, que é o que eu gosto, e o que me importa mesmo é adquirir conhecimento, fazer a minha bolsa e ganhar prática.
– Eu quero deixar uma coisa bem clara aqui. Tudo que a Rosa faz, ela tem que dar satisfação pra mim e pra mãe dela. Nessa casa, quem dá a última palavra em tudo somos nós. E qualquer coisa que tu fizer com ela, tu também vai dar satisfação pra nós. Não vai pensando que a Rosa é independente e que ela faz o que quer da vida. Entendeu?
Carlos, por qualquer motivo, tinha vontade de rir, mas continha-se. – Entendi sim.
Rosa ouvia a tudo aquilo sem entender. Seu irmão mais velho já havia levado algumas meninas para casa antes, e seu pai nunca fizera nada parecido com aquilo.
– Rosa, vem cá – o pai dela disse.
A porta do quarto abriu-se devagar, e ela saiu do quarto como uma criança perplexa e amedrontada. Ela foi até a sala, pé ante pé, sem olhar para ninguém em particular. Carlos estaqueado diante da porta parecia um invasor alienígena, com todos ao redor dele, encarando-o—exceto pelo pai dela, que olhava para ela.
– Rosa, o que tu vê nesse cara?
– O nome dele é Carlos – Rosa disse, sem pensar.
– Não importa. O que tu vê nele?
Rosa sempre ficava confusa com perguntas feitas nesse tom, pois não conseguia saber exatamente o que esperavam que ela respondesse. O que ela via nele? O que isso sequer significa?
– O meu namorado.
– Isso eu já sei – o pai dela disse rudemente –, eu quero saber o que tu vê de bom nele.
Essa era outra coisa que sempre frustrava Rosa: sempre fazia-se uma pergunta vaga e mal formulada, só para que ela recebesse uma réplica grosseira e a mesma pergunta, porém formulada claramente. Por que não fazer a pergunta claramente logo de primeira?
– Tudo – ela disse.
– Não pode ser um pouco mais específica?
– Eu teria muita coisa pra falar.
– Não pode dar nem um exemplo? – o pai dela retrucou, já impaciente.
Ela pensou por um momento. – Ele me acolheu quando eu tava me sentindo mal, e me ofereceu ajuda quando eu precisei, e ele não esperou nada em troca. E ele não se sentiu no direito de me cobrar nada, só porque ele é homem, e achar que eu devo alguma coisa a ele.
– Tá, tá bom, não precisa dizer mais nada – o pai dela disse, sem mais paciência. – Se tu acha que ele é tudo isso, então vai com ele. Mas fica bem avisada que não adianta vir correndo pra mim ou pra tua mãe quando alguma coisa der errada. A escolha foi tua, então assume.
– Pode deixar, pai. Eu vou fazer exatamente isso – ela disse, já sabendo como seria inútil correr para eles caso algo desse errado. Ela foi até Carlos, devagar, como se ainda não fosse totalmente seguro fazê-lo.
– Ah, e outra coisa – o pai dela disse. – Eu não quero vocês de porta fechada no quarto, ouviram? E se tu quiser dormir aqui, é no sofá, entendeu?
– Claro – Carlos disse.
O teatro foi dissipando-se. A mãe de Rosa levantou-se e foi fazer alguma coisa, e os irmãos dela logo viraram-se para a TV, ignorando a ela e Carlos.
– Vem – Rosa disse para Carlos, levando-o ao seu quarto.
O quarto dela era impecavelmente bem arrumado, sem qualquer sinal de bagunça. A cama era bem feita, com as cobertas esticadas. Algumas dezenas de livros estavam todos dispostos em prateleiras o lado da cabeceira da cama. Também ao lado da cama havia um criado-mudo com um pequeno aparelho de som, e ao lado, uma torre com uma porção de CDs. Na parede ao lado da janela, uma escrivaninha de madeira amarela clara, e ao lado um pequeno roupeiro de cor escura.
– Desculpa por isso – Rosa disse. – Eu não imaginava que meu pai ia falar tanto.
– Foi por isso que tu me chamou?
– É, foi – ela disse, olhando para baixo, como se tivesse vergonha de encará-lo de frente. – Meu pai disse que não era pra eu ir na tua casa de novo até que tu viesse aqui pra eles te conhecerem. Mas eu achei que eles só queriam conversar contigo.
– Eles nunca fizeram nada parecido antes? – ele disse. – Eu sei que contigo não, porque tu nunca teve namorado. Mas com os teus irmãos, não?
– Não, nunca.
– Puxa – ele disse, sentando-se na cadeira da escrivaninha. – Sei lá, pra mim, parecia uma coisa ensaiada. Parecia que, toda vez que chegava alguém novo, eles preparavam o DOI-CODI e saíam perguntando. Mas tudo bem, o importante é que acabou bem.
– Eu fiquei com medo – ela disse, sentando-se na beirada da cama.
– Por que, Rosa?
– Eu achei que eles iam proibir a gente de se ver.
Carlos deu uma olhada pela porta, por instinto, e foi sentar-se ao lado dela. – Tu acha que eles fariam isso?
– Eu não sei. Mas eu tive medo.
– Rosa, eu não quero que os teus pais interfiram no nosso namoro! – ele disse em voz baixa. – Não é justo que eles queiram nos separar, sem entender o que a gente sente um pelo outro.
– Mas o que a gente pode fazer, Carlos? – ela disse. – Esquece isso. É só a gente não querer enfrentar os meus pais, que tá tudo bem.
– Tu acha?
– Acho sim, Carlos.
– Tá bom – ele disse. – Eu vou parar de pensar nisso.
Os dois ficaram em um silêncio desconfortável por um momento.
– Que tal tu me mostrar um pouco do que tu gosta? – ele disse, reparando nos seus CDs. – Tu gosta de música também?
– É, eu gosto sim – ela disse. – Pode pegar pra olhar.
Carlos reparou que, além dos CDs originais, ela ainda tinha alguns estojos cheios de CDs gravados no computador, com seus títulos escritos com pincel atômico.
– Caramba, quantos CDs tu tem aqui!
– É – ela disse. – A maioria é rock progressivo.
– Eu não sei o que é isso – ele disse, olhando os títulos e os nomes dos artistas escritos nos CDs.
– Deixa eu te mostrar – ela disse, pondo-se de pé para pegar outro estojo. Depois de procurar por algum tempo, ela tirou um dos CDs e colocou no aparelho de som, e logo pôs para tocar.
Alguns segundos depois, a música começou. Carlos não fazia ideia de que música era aquela, mas ficou ouvindo com atenção.
– Quem é que tá tocando?
– É o Genesis – ela disse. – O nome do disco é Foxtrot. É um dos que eu mais gosto.
– Eu não conhecia – Carlos disse. Durante mais de um minuto a música ficava quase estática, como se estivesse parada no tempo, o que o incomodava um pouco. Com o tempo, aquele som parecia estar vindo de um outro mundo, de uma outra galáxia, de uma outra época inclusive. Quando a banda entrou plenamente na música, tudo de repente tomou um novo rumo. – De quando é essa música?
– 1972.
– Incrível como tu sabe essas coisas de cor.
– É que eu gosto de ler sobre o que eu escuto – ela disse –, e aí eu acabo me lembrando de detalhes como esse. É uma maneira de eu ampliar meu conhecimento.
Carlos e Rosa ficaram no quarto, conversando e ouvindo música, durante a tarde inteira. Rosa sentia que não precisava mais fazer esforço para manter uma conversa com ele. Ela não tinha mais medo de falar sobre o que ela sabia e o que ela gostava. Logo ela estava falando sobre química, que ela tanto adorava, e toda a sua complexidade e sutileza. Ao contrário de Pedro, porém, Carlos frequentemente intervinha no assunto, e quando ela se aprofundava demais, ele dizia que não estava entendendo. Isso forçava-a a repensar o que ela estava dizendo, e tentar abordar um outro ângulo. Carlos não ficava apenas ouvindo e balançando a cabeça. Em outras palavras, era divertido conversar com ele.
Do lado de fora do quarto, o barulho era constante. Sempre estava acontecendo alguma coisa, alguém estava falando—quase sempre em voz muito alta—e, nos poucos momentos de silêncio, a lacuna sonora era preenchida pela TV. Várias vezes ele notou o pai ou a mãe de Rosa colocar a cabeça para dentro do quarto para espiar. Ele tinha receio de falar disso, pois poderia acabar criando uma briga.
Mesmo assim, nada disso parecia capaz de atrapalhar a diversão dos dois, ali, dentro do quarto. Depois que o CD do Genesis terminou, Carlos pediu para que ela colocasse outro. Rosa escolheu outro de seus grandes favoritos: Tubular Bells, de Mike Oldfield. Carlos ficou tão impressionado e chocado com aquela música que pediu que ela lhe emprestasse o CD—coisa que ela fez com total prontidão. Depois disso, Rosa leu alguns de seus poemas, e depois eles ficaram contando histórias de suas vidas.
Antes de escurecer, Carlos decidiu ir embora. Rosa o acompanhou até a entrada do prédio, e os dois se despediram com um beijo. Rosa subiu as escadas e entrou em casa sentindo que, agora sim, nada poderia acabar com o seu humor.
Ela fechou-se em seu quarto, saiu apenas para jantar, e foi direto para cama, ouvindo Foxtrot novamente.
“Tu tem que ficar de olho nessa tua filha, Bete. Fica em cima. Tu sabe o que acontece com esse tipo de criança, não sabe? Aí depois tu tem que internar ela, e aí não tem mais volta. Não deixa ela ficar assim.”