a coluna do fernie

Caça ao Tesouro – parte 1

1º dia

A mesa de sinuca estava movimentada naquela tarde. Ainda era a época na qual as pessoas de fora do hotel podiam jogar, apesar de ela ser reservada para os hóspedes. De fato, ali, naquela hora, o que menos havia era hóspede; mais especificamente, apenas três estavam hospedados. Outros quatro também estavam jogando, revezando-se em duplas na mesa, e mais uma meia dúzia estava ali apenas olhando. Eram todos jovens; alguns adolescentes, outros já em idade universitária. O vozerio era constante, misturado ao barulho das bolas chocando-se entre si, e vez ou outra o tremor oco das bolas rolando das caçapas até a gaveta. Naquele ambiente, poucos destacavam-se. Dentre os que não se destacavam, estavam três jovens, com seus quase vinte de idade, que apenas assistiam ao jogo e conversavam entre si. Eles não conheciam ninguém ali, e apenas Gabriela já conhecia aquele hotel e aquela praia; seus pais haviam terminado de construir sua casa de veraneio no ano anterior, e ela passara as férias de verão anteriores lá. Já naquele ano, em fevereiro, ela convidara sua melhor amiga, Rosa, e um amigo em comum, Pedro. Esses eram os três que estavam ali, sentados, assistindo ao jogo de sinuca. Era domingo, terceiro dia de veraneio, e eles não tinham muito que fazer.

Ambos Rosa e Pedro já estavam na faculdade. Os dois se conheciam de longa data; praticamente criaram-se juntos, tendo vivido na mesma rua a vida inteira. Ela estava no segundo ano do curso de Química, enquanto ele era calouro no curso de Ciência da Computação. Gabriela, a mais nova do trio, ainda não tinha entrado na faculdade. Por sorte, seus pais podiam bancar um curso pré-vestibular, portanto ela não estava tão preocupada com isso—apesar de sentir-se um pouco deslocada no meio dos amigos universitários. Para ela, entrar em uma faculdade seria um triunfo, uma vitória plena que ela ainda havia de conquistar. Tudo era uma questão de tempo; apenas tempo.

Além disso, ela conseguia compensar essa diferença. Gabriela dava-se muito melhor com os rapazes, e atraía muito mais atenção; cada olhar que ela recebia era como um troféu. Ela não era assim tão bonita, mas sabia usar seu visual de forma eficaz. Por outro lado, a beleza de Rosa—de cabelos e olhos castanhos, bem escuros—escondia-se sob sua falta de sociabilidade. Ela estava acostumada a ser sozinha, nunca atrair atenção (exceto pelo tipo indesejado de atenção, inevitável para uma mulher), e andar sempre com os olhos baixos, de quem se sente uma presença não requisitada.

Ao menos ela se confortava em ter alguns amigos (mais precisamente, dois) que não se importavam de tê-la por perto. Gabriela sabia conversar e aceitava a excentricidade de Rosa— talvez porque isso a fizesse sentir-se mais confiante em suas próprias habilidades. Pedro estava com ela em quase todos os momentos em que ela precisava, e nunca parecia notar sua beleza física. Ele era talvez a única pessoa que Rosa conseguia chamar de amigo; ao contrário dos outros, ele parecia até gostar do jeito dela, e era uma companhia quase sempre disponível. Afinal, isso era o mínimo que Pedro deveria fazer para concretizar seu desejo. Rosa não sabia, mas Pedro desejava-a. Em pouco tempo, seu plano deveria dar resultado. Era apenas questão de persistência.

Pedro, assim como Rosa, também não tinha muitas amizades, e ele se sentia bastante desconfortável em ambientes abertos e com muitas pessoas—como ali, naquela sala de sinuca. Para ele, era como se cada uma daquelas pessoas, principalmente os outros rapazes, tentassem roubar o espaço dele no mundo. Eles, tão extrovertidos, tão falantes e tão desinibidos, queriam apenas apagar sua presença. Em compensação, jamais Pedro poderia levantar-se e entrar na fila para jogar; isso seria render-se, entregar-se ao mundo deles. Pedro era único, especial. Os outros jamais entenderiam.

Volta e meia, Rosa e Gabriela trocavam algumas palavras, em voz baixa. Nenhuma das duas gostava muito de sinuca, mas estava ali mesmo assim. Rosa tentava acompanhar, pois sempre diziam que ela devia distrair-se dos seus estudos, de sua ciência e de sua química, achar algum outro interesse, alguma diversão. Ela não entendia a necessidade de distrair-se, pois ela estava muito bem com seus próprios interesses; mas, de tanto ouvir seus pais e sua família insistindo, ela tentava interessar-se em alguma outra coisa. Além do mais, ninguém parecia ficar interessado nas suas longas e apaixonadas explicações sobre moléculas, ligações covalentes e funções orgânicas, e ninguém parecia tão interessado no fato, por exemplo, do carbono ser o elemento mais fértil existente na natureza. Acabava sendo mais produtivo conversar sobre filmes, sobre seriados de TV, ou de veraneios na praia, mesmo que isso não lhe parecesse útil. Pedro era o único que dava atenção aos seus assuntos de química, mas ele não entendia bulhufas do que ela falava; e, quando ele falava sobre informática, ele mal conseguia explicar-se, e acabava apenas repetindo-se e enrolando-se.

Dentre os que jogavam, dois rapazes eram particularmente entusiasmados. Um deles era um moreno alto, com músculos bem definidos, que jogava bem e gostava de anunciar as jogadas que ia fazer. Quando ele acertava, fazia chacota e provocava os outros; e, quando ele errava, levava na esportiva e fazia piada. No mais, ele era compenetrado no jogo, e conversava pouco sobre outras coisas. O outro rapaz era mais alerta e atento a tudo, embora não jogasse tão bem. Em vez de concentrar-se muito no jogo, fazia piada sempre que podia, puxava conversa com os outros, e de repente ficava meio recolhido no seu canto, observando algo que só ele sabia. Volta e meia ele espiava o relógio que estava pendurado na parede, virado para a parte larga da mesa. No lado oposto não havia parede, e sim uma mureta sem janelas, que dava vista ao gramado interno do hotel. Alguns espectadores ficavam sentados naquela mureta, ao passo que Gabriela e seus amigos ficavam em um banco na parede lateral, ao lado dos sanitários.

Rosa, em particular, não notava muito a presença de ninguém. Para ela, aqueles caras jogando não tinham nada de muito especial. Gabriela fazia observações sobre alguns rapazes que ela chamava de bonitos, mas Rosa não dava tanta bola. Não que ela não visse beleza em alguns daqueles rapazes, mas para ela, não fazia diferença.

Quando a partida acabou, a dupla que perdeu começou a passar os tacos para os próximos jogadores. Um dos perdedores era o rapaz que ficava consultando o relógio. Depois de sair da mesa, olhou o relógio mais uma vez, e falou que estava indo embora.

—E tu —ele disse, de súbito, de frente para Rosa — se quiser passar um tempo comigo, segue as pistas!

Ele apontou para o relógio, e ficou ali até ter certeza de que ela olhou. Quase todos que estavam ali no momento olharam também; eram onze horas. Ele então foi afastando-se, deu as costas e foi embora.

— O que é que foi isso? — Gabriela falou, em alto e bom tom. Os outros rapidamente ignoraram o assunto, mas Rosa ficou olhando para o relógio, com a testa franzida. Por algum motivo, aquilo deixou-lhe bastante curiosa. Ela poderia ignorar, afinal, ela nem o conhecia. Mas o que poderiam ser as “pistas”? Que pistas poderia haver?

Gabriela e Pedro ficaram falando alguma coisa, mas Rosa nem ouviu. Ela se levantou e foi até o relógio. Eram onze horas, sim, mas poderia ser essa a pista? Não, ela suspeitou, deve haver algo mais. Então, ela tirou o relógio da parede, e, ao segurá-lo, sentiu algo colado atrás dele. Era um pedaço de papel, com algo escrito a caneta: “Na parada de ônibus. Vire!”

— Larga isso aí, Rosa, ele tá te tirando.

— Me tirando o quê?

Gabriela virou os olhos. — Ele tá debochando de ti, Rosa.

— Tu acha que ele faria isso só pra debochar de mim? — Rosa disse, com seu jeito peculiar de falar, sílaba por sílaba, como um processador que mastiga cada letra minuciosamente antes de pronunciá-la, e ainda assim erra nos cálculos de vez em quando—sempre olhando para baixo, ou para os lados, mas nunca nos olhos do interlocutor.

— Ai, tu nunca viu essa piadinha de ter um papel escrito “vire” dos dois lados? — Gabriela falou.

Rosa ainda achava que poderia haver algo mais naquilo. O que significaria “vire” que não fosse virar o papel?

Ela, então, deu as costas para a parede do relógio. Diante dela estava a mesa de sinuca. As duplas já estavam começando a jogar a próxima partida. Ela se agachou diante da mesa, examinando-a por baixo, e—ainda um pouco incrédula—encontrou outro pedaço de papel.

Rosa pegou o papel e levantou-se. Gabriela e Pedro olhavam, ainda sem acreditar. “Na frente do parque ecológico. Não dorme!”

Desta vez, não havia nada no verso do papel. Rosa, por um, momento acreditou ter chegado a um beco sem saída nessa pista; afinal, ela estava em um hotel, e uma pista sobre “dormir” poderia significar qualquer coisa.

— Não pode ser — Gabriela disse. — Esse cara tá de brincadeira?

Rosa não entendeu por que Gabriela insistia tanto com sua negatividade. Pedro não havia dito nada. Era cedo demais para emitir opiniões, ele pensava.

Mas Rosa ainda não tinha desistido. Com o papel na mão, ela começou a caminhar, saindo da sala da sinuca até a sala adjacente, onde alguns hóspedes assistiam TV.

— Rosa, esquece isso! — Gabriela disse. — Tu não vai dar trela pra esse cara, né?

— Eu só quero ver até onde isso vai — Rosa respondeu, mesmo sem ter certeza de que era realmente só isso.

— Eu acho que tu tá perdendo tempo — Gabriela disse.

— Se tu acha isso, então não precisa vir atrás de mim — Rosa disse, com uma calma que não condizia com a petulância da frase. — Eu quero continuar.

Aquela conversa estava distraindo-a demais. Era importante agora raciocinar e pensar a que ele se referia com “dormir”. Aquilo era um hotel! Era um prédio feito para dormir! Poderia haver pista mais vaga que essa?

— Eu só acho que tu não deveria te preocupar com esse cara. Ele deve tá te engambelando, só isso!

Rosa estava ficando um pouco incomodada, e Pedro percebeu que era hora de intervir. Não que ele discordasse de Gabriela; não, pelo contrário. Aquele cara com certeza era um babaca, e estava apelando para uma forma horrível de iludir Rosa e dar-lhe falsas esperanças. Por outro lado, isso significava que aquele cara não representava perigo nenhum, e era mais importante que Pedro apoiasse Rosa e desse-lhe incentivo; afinal, isso é que um verdadeiro amigo faria.

— Que nada, Rosa, vai fundo! — ele disse, enfim. — Se é isso que tu quer, então corre atrás.

— Pedro, não te mete! — Gabriela respondeu.

— Mas e tu, então? — ele disse. — Tá te metendo por quê?

— Eu sou guria, eu entendo desse assunto!

Rosa já queria mandar os dois se calarem para que ela pudesse concentrar-se. Foi aí que ela percebeu o que podia ser a próxima pista: o cafezinho. Em um dos cantos da sala, havia uma mesinha com garrafas térmicas com café e chá, disponíveis para os hóspedes. Ela foi até lá, levantou a garrafa de café e, de fato, lá estava mais uma pista.

“Hoje mesmo. Mas não balança!”

Rosa riu sozinha. Como em um estalo, ela fez uma conexão imediata com aquela pista: ele só poderia estar falando dos balanços que ficavam perto do playground na frente do hotel. Sem pestanejar, ela correu para lá, deixando os outros dois sozinhos, quietos, olhando pela porta do hotel. Demorou um tempo até que eles atinassem a sair atrás dela.

Ao chegarem à porta, Rosa já havia atravessado a rua, em disparada. Havia dos balanços, pendurados em uma armação alta de madeira. Rosa correu até um deles e examinou a tábua que servia de assento. Nada. Então foi até o outro, e, sem surpresa, encontrou outra pista: “Três horas depois. Me encontra lá. Fim!”

Ela suspirou, sem muito motivo. “Três horas depois” só poderia referir-se ao horário que marcava o relógio—ou seja, seria às duas horas da tarde. Ela havia guardado os outros bilhetes com as dicas, e leu-os de novo, para conferir: às duas horas, hoje mesmo, na parada de ônibus diante do parque ecológico. Parecia justo. Os outros dois finalmente alcançaram-na.

— E aí? — Gabriela disse.

— Eu vou me encontrar com ele — Rosa respondeu, sem muita entonação, como era de costume. — Às duas horas.

Gabriela apenas deu de ombros. — Bom, se tu acha que deve…

— Vai sim, Rosa — Pedro disse. — Faz o que tu acha certo.

Ela apenas acenou com a cabeça. Gabriela sugeriu que eles fossem para casa esperar o almoço, e foi o que eles fizeram. Ela e Pedro foram conversando, e Rosa ia em silêncio, absorta em pensamentos. Ela reparava que, vez ou outra, eles mencionavam o tal jogo das pistas, mas ela nem dava bola. Ela só ficou imaginando qual o processo que ele usara para montar o jogo: teria ele preparado isso de antemão? Se fosse esse o caso, então o jogo devia servir para qualquer uma, e não só para ela. Ou então ele preparou as duas pistas da sala da sinuca ali, de improviso, e fez as outras duas na sequência, discretamente, para não ser percebido. Neste caso, ela poderia sim ser seu alvo especial, a menina que o inspirou. Mas logo ela? Sim, ela já havia ouvido coisas feias e desagradáveis de alguns caras, mas esse tipo de atenção era diferente. Parecia que aquele garoto poderia até chegar a gostar dela de verdade.

O que poderia acontecer, afinal, se ela o encontrasse? Ela sabia que seria uma atitude estranha, nada característica, de sua parte. Mas por que não tentar? Poderia ser que ele se tornasse seu amigo. Caso contrário, ela não perderia muita coisa. Ela não iria com grandes expectativas, afinal de contas. O lucro era bom e o risco era mínimo. Um bom negócio.

Antes de chegar em casa, ela espiou na direção do parque ecológico, apenas por curiosidade. Se houvesse uma parada de ônibus lá, seria provavelmente uma simples plaquinha. A casa de Gabriela ficava em uma rua paralela à avenida principal, bem perto do parque ecológico. Seria fácil de ver se, perto do horário combinado, alguém estaria lá.

Pouco antes das duas, depois do almoço, Rosa espiou de novo; para a sua quase surpresa, ele estava lá. Ela foi caminhando, sem muita celebração, e ele parecia não notar—ou estava fingindo, ou realmente não estava prestando atenção. Quando Rosa chegou a alguns passos dele, ele começou a bater palmas.

— Parabéns, ganhou! — ele disse, com uma entonação de apresentador de programa de auditório. — E, como prêmio por completar a caça ao tesouro, tu tem direito a passar a tarde comigo!

Rosa parou diante dele, sem olhar para o seu rosto, com uma expressão neutra—o que não pareceu quebrar o sorriso dele.

— Não seria mais correto tu me dizer o teu nome primeiro? — ela disse.

A fala lenta e ritmada de Rosa pegou-o de surpresa. O sorriso dele se tornou mais sincero. — Ah, a gente ainda tem muito tempo pra se ocupar com esses detalhes tão banais! Rosa nem se mexeu.

— Antes disso — ele continuou — me diz de onde foi que tu tirou tanta beleza?

— Eu não sei — ela respondeu, afastando-se um pouco. — Por que tu perguntou isso?

— Ah, não é nada de mais — ele respondeu, desarmando um pouco do seu tom galanteador.

— Eu também quero saber se o que tu tem dentro da cabeça é tão bonito quanto o teu rosto. 

Rosa virou-se para o lado.

— Tu tá na faculdade?

Ele fez uma pausa, esperando que ela continuasse. Ela não continuou. — Qual?

— Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fica em Porto Alegre, a cidade onde eu moro. Eu morei lá quase toda a minha vida, sendo que eu nasci em Sapucaia. Eu não lembro muito de lá, porque eu me mudei quando eu ainda era pequena.

Ele pensou que ela podia estar debochando dele; mas, se ela estivesse, o senso de humor dela ou era muito sutil, ou meio ruim. — Eu perguntei qual o curso — ele disse.

— Química — ela respondeu.

Ele teve vontade de rir, mas segurou-se, e apenas fez um gesto de aprovação. — É mesmo? Que legal. Me diz então, qual é… a reação química… da combustão do… do etanol. Rosa olhou para cima por um segundo, e recitou pausadamente:

— C2H5OH + 3O2 → 2CO2 + 3H2O.

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreendido. Jamais ele teria imaginado que ela faria isso de cabeça, assim, quando solicitada.

— Nossa, tu entende mesmo do assunto.

— Só porque eu resolvi uma questão que cai em prova de vestibular?

Ele deu de ombros. — Bom, eu nem sabia como fazer isso. Química não é o meu negócio. E eu nem sei se a resposta tá certa, então…

— Então qual é o teu negócio? — ela disse. A palavra “negócio” parecia totalmente errada na voz dela.

— Bom, eu sempre gostei mais de matemática.

— E tu são sabe fazer um cálculo estequiométrico? — ela protestou. — É uma conta tão simples.

— Tá, mas eu esqueci como é que faz — ele disse. — Eu lembrava como era, mas agora eu já não sei mais. Mas percebe? Eu me interesso se tu é inteligente, e tu demonstrou isso, e eu tô feliz!

Rosa se virou para o lado. — Estequiometria é assunto de colégio. Isso não tem nada a ver com ser inteligente.

— Bom, mas se eu soubesse o que vocês aprendem na faculdade de Química, eu teria perguntado isso.

— Podia ter feito uma pergunta de Cálculo, então — ela disse.

— Mas eu não sabia que tinha Cálculo no currículo de Química — ele disse.

— Ainda bem — ela respondeu. — Eu não sou tão boa assim em Cálculo.

Pela primeira vez, ela sorriu; foi um sorriso desajeitado, de quem não praticava sorrisos com frequência, muito menos na presença de outros.

— Tudo bem — ele disse. — Todos os inteligentes têm algum ponto fraco.

— Tu poderia parar de me bajular?

— Tá, tá bom, desculpa! — ele disse, exagerando o tom. — Vou parar com isso. Agora, se me permite, eu posso saber o teu nome?

— Meu nome é Rosa — ela disse, um pouco irritada com a maneira extremamente indireta de fazer essa pergunta. Ela não entendia por que as pessoas faziam isso.

— Sério mesmo? — ele respondeu, com um ar fascinado.

— Claro que sim. Eu não mentiria sobre isso — ela disse.

— Não, não é isso que eu quis dizer! — ele disse. — Eu só acho lindo que tu tenha nome de flor.

— Por quê? Qual o motivo disso?

Ele pensou na resposta, mas preferiu não a bajular mais. — Nada de mais, eu só acho legal.

— Tá bom — ela disse. — E qual é o teu nome?

— Se eu te disser, promete que tu nunca vai esquecer?

— Eu não posso prometer isso. Eu não sou boa com nomes.

Ele sorriu. — Então eu não posso te dizer.

— Isso é injusto — ela disse. — Eu te disse o meu nome. É razoável que eu saiba o teu.

Ele acenou com a cabeça, sem saber se ela estava tentando irritá-lo, desdenhando suas gentis chacotas, ou se ela era assim mesmo. — Bom, é justo. Meu nome é Carlos.

— Certo — ela disse. — Então, qual é exatamente o meu prêmio?

— Bom, tu conhece as praias daqui?

— Não.

— Então, o prêmio é um passeio de graça comigo até Arroio do Sal, incluindo a viagem de retorno grátis no final da tarde. Então, o que tu acha?

— Sinceramente, eu não sei se eu quero — Rosa disse.

— Tem certeza? — ele disse, olhando a estrada, ao longe. — A lotação tá chegando.

— E daí?

— Ora, e daí que a hora de decidir é agora — ele respondeu. — Vai dizer que tu fez toda a caça ao tesouro, pra chegar no final e desistir do prêmio?

Ele acenou para a lotação parar, e ela ficou ali, pensativa. Não que Rosa estivesse em um dilema tão grande entre ir ou não ir. O fato é que, de repente, a ideia de sair assim não lhe parecia tão interessante quanto antes; e estar diante do passo definitivo que começaria o passeio fazia a perspectiva mudar um pouco. De fato, Carlos estava realmente disposto a passar aquela tarde com ela, o que significava ao menos que todo seu esforço fora genuíno. Mas ela não sabia como reagir quanto a isso, e o que fazer na presença dele. A lotação parou, e abriu a porta. Era um micro-ônibus com aparência modesta, cores opacas e empoeirado, com uma porta na frente e uma roleta. Rosa pensou que, na pior das hipóteses, ela tinha dinheiro para voltar assim que quisesse, portanto ela não dependia dele. No fim das contas, ela queria conhecer as outras praias.

— Tá bom — ela disse, e em um salto subiu as escadas da lotação, abrindo sua pequena bolsa para pegar o dinheiro da passagem.

— Ei, espera! — ele disse, subindo atônito atrás dela. — A passagem é por minha conta.

Depois que os dois passaram pela roleta, a lotação fechou a porta e arrancou, seguindo em sua lenta jornada pela estreita estrada de terra que atravessava as praias vizinhas. Rosa sentou-se em um banco na janela, e Carlos sentou-se ao seu lado. Havia um pequeno punhado de passageiros, quase todos sentados sozinhos.

— Então, o que te levou a fazer todo aquele jogo? — ela disse.

— A caça ao tesouro?

— Sim.

— Ora, eu queria te conhecer — ele disse.

— As pessoas nesse caso costumam pedir, de forma um pouco mais convencional.

— Mas da maneira que eu fiz foi mais interessante, não foi? — ele disse.

— Pode ser que sim.

— E, além do mais, desse jeito eu não precisei lidar com aqueles dois que não largavam do teu pé.

— Eles são meus amigos — ela disse.

— Mas eu não tô interessado neles! — ele disse, sorrindo.

— Por quê? O que eu tenho que te interessa mais? — ela disse. — Tu poderia ter conversado com o Pedro, ou se tu queria uma guria, a Gabriela é mais sociável e mais bonita do que eu.

— Mas tu é mais inteligente, eu tenho certeza! — ele disse, imediatamente percebendo ter insinuado que ela não era bonita.

— Eu não tenho certeza — ela respondeu.

— Mas isso não importa — ele disse, tentando remendar a besteira que ele falou. — Por que tu foi até o fim da caça ao tesouro, então? Tu não pode ter feito tudo aquilo só pra chegar em mim e me tratar com tanto desdém.

— Eu não tô te tratando com nenhum desdém — ela disse —, e, além disso, eu só queria saber que tipo de pessoa faria tudo aquilo só pra me conhecer.

— Ah, foi só por isso? — ele disse, sarcástico.

— Bom, havia outro fator — ela continuou —, e é que eu queria fazer algo diferente hoje. Meus amigos não estavam com vontade de variar, e eu já estava um pouco entediada.

Carlos resignou-se à dura realidade de Rosa, mas riu-se um pouco com o jeito quase formal que ela dissera “um pouco entediada”. — Bom, já é alguma coisa.

— Eu tenho outra pergunta — ela disse. — Tu já fez isso com outras gurias?

Ele ficou ainda mais vulnerável. — Posso ser sincero?

— Claro que sim, se é isso que eu quero!

Carlos riu um pouco. — Sim, eu já tentei. Duas vezes, no ano passado. Nenhuma deu certo.

— Por que não deram certo?

— Bom, a primeira nem me deu bola, e a segunda desistiu no meio. Acho que ela não entendeu uma das pistas, e achou que não valia a pena.

— Eu vou ser franca contigo e dizer que a pista do “não dorme” é muito vaga e confusa pra se usar em um hotel, um lugar feito especificamente com o propósito principal de oferecer às pessoas um lugar onde dormir. Eu pensei em desistir naquela hora, e na verdade eu só continuei por dois motivos: um, que a minha curiosidade era muito grande, e dois, que por casualidade eu vi a mesa do café antes que a vontade de desistir aumentasse. Foi por isso que eu acabei continuando, mas, de toda forma, eu acho que tu poderia ter escolhido uma pista um pouco menos confusa.

— Caramba, tu tem razão! — ele disse. — Que burrice a minha!

— Eu não diria que foi burrice. Talvez um pouco de falta de visão, mas ainda assim foi criativo. Mas continuando, eu não duvido de que outras pessoas teriam desistido no meio, mas eu ainda tô surpresa e confusa de que a primeira pessoa a chegar no fim acabou sendo eu.

— Exatamente! Não é uma honra?

— Eu não sei — ela disse. — Mas eu suspeitava que tu tentava isso com qualquer guria que tu visse.

— Bem capaz! — Carlos retrucou, rindo. — Tu não sabe como é cara aquela fita Durex?

— Eu não tenho ideia. Mas ainda bem que esse não é um truque barato que tu usa a toda hora.

— Não, isso não — ele disse —, eu posso te garantir. Eu só reservo isso pras gurias realmente especiais. Pelo menos a partir da segunda vez que deu errado.

— Ah, e me diz também, como é que tu conseguiu planejar e executar tudo isso? — ela disse.

— Um plano desses podia ter dado errado de tantas maneiras, que até parece que só deu certo de tão bobo que era.

Carlos riu. — Ah, não teve tanto planejamento assim — ele disse. — Eu fiz ali, na hora. Na verdade, o mais difícil foi não te deixar perceber a hora que eu colei o papel atrás do relógio. O resto veio quase que por conta própria.

Rosa acenou com a cabeça. — Bom, tu tem um belo senso de improviso.

— Obrigado — ele disse. — Eu curto bastante esse tipo de coisa.

— Agora, uma última pergunta — ela disse. — Por que eu? Por que não qualquer outra pessoa?

Um pouco tímido, ele respondeu — Amor à primeira vista, quem sabe?

— Bobagem — ela disse. — Isso não existe.

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso. — Nossa. Isso não existe. Como é que tu pode ter certeza disso?

— É simples — Rosa retrucou —, como é possível alguém amar uma pessoa que nem mesmo conhece? Quem poderia amar uma pessoa sem saber como ela pensa, o que ela acha da vida, como ela trata as pessoas, quais são as coisas que ela valoriza, e tudo mais? Tu acha que um único olhar é suficiente para começar o amor?

Ele deu de ombros. — Sinceramente, eu não sei. Mas, tipo, eu não poderia dizer que isso não existe. Eu não conseguiria provar que não existe, e, sabe-se lá, talvez isso já tenha acontecido algum dia. Como é que eu vou saber?

— Tu já sentiu isso alguma vez?

Ele sacudiu a cabeça. — Não, nunca.

— Então, empiricamente, tu não pode verificar isso.

— Provavelmente não.

— Claro, é fato que, teoricamente, é impossível provar que não existe. Mas simplesmente pela definição de amor, já há um sem número de razões válidas para desacreditar essa coisa.

— E qual é a definição de amor? — ele disse. Ela nunca olhava para ele.

— Pela minha visão — ela disse —, é um tipo especial de afeto que motiva uma pessoa a compartilhar uma grande parte de sua vida a alguém sem esperar nada em troca, sentindo-se completo apenas com isso. Pode não ser uma definição muito boa, mas eu acho razoável.

Ele ergueu as sobrancelhas de novo. — E tu já sentiu isso?

— Eu prefiro não falar disso — ela respondeu.

— Tudo bem.

— Então responde, por que tu me escolheu? Foi uma escolha aleatória?

— Eu não sei, sinceramente — ele disse, atônito. — Eu não faço ideia. Eu só achei que tu seria uma boa companhia pra mim, só isso.

— Então foi aleatório?

Ele suspirou, frustrado. — Talvez.

— Então pra que fazer isso tudo?

— Porque eu queria passar um tempo contigo — ele disse. — Eu te vi só umas poucas vezes lá pelo hotel, mas tu me pareceu legal, simpática… No mais, tu me pareceu ser uma boa companhia, e por isso eu queria te conhecer melhor. É simples. Eu só falei brincando em amor à primeira vista, foi bobagem minha. Eu só te achei legal. E, afinal, se tu não fosse legal, bem, azar o meu, eu caía fora e tentava com outra guria. É só isso.

— Certo — ela disse. — É engraçado como tu fala especificamente de gurias. Então o teu objetivo não é mera amizade?

Ele gaguejou um pouco. — Não, não é isso. Eu faço amizade com guris também, mas, amizade, eu já tenho várias. Agora, com uma guria que nem tu, bom, quem sabe? Pode ser que role alguma coisa entre nós. Sempre tem uma chance. Se acontecer, bom, seria lucro pra nós dois, não? E, se não rolar, não tem problema nenhum, a gente pode ser amigo igual. Mas, sim, eu imagino que a gente pode acabar ficando. Tem algum problema pra ti?

— Em tese, não. — Os dois ficarem em silêncio por um instante. — Eu só não sei de onde tu tirou isso de que eu sou “simpática” e “uma boa companhia”. Eu mal consigo falar com as pessoas. E não vem me bajular, que tu sabe que é verdade.

Carlos teve que ser honesto: a fala dela era mais do que apenas inusitada. Ele não ficara estudando o comportamento de Rosa—pois isso seria esquisito e bizarro demais. — Eu não tinha notado isso em ti. Tu me pareceu autêntica, é só.

— Carlos, por favor, para de dar desculpas — ela disse. — Seja honesto comigo. Eu sou uma guria. A Gabriela é muito mais bonita do que eu, e tu ficou intimidado de te aproximar dela, então tu teve que te contentar comigo, ou tu tá só me usando pra te aproximar dela depois. Isso já aconteceu comigo antes. Se tu admitir isso, eu não vou ficar irritada. Tu me acha esquisita, uma louca, e só tá falando comigo ainda por educação. Tu já pode parar com isso.

— Rosa, pelo amor de deus, não diz isso! — ele protestou. — Eu jamais te acharia uma louca nem nada assim. Tu é diferente das outras gurias, mas eu gosto disso. Tu é interessante. E, quanto a eu ficar intimidado com tua amiga, pode ter certeza que não. Eu te acho bem mais atraente do que ela.

— Tu diz isso só pra ser educado.

— Não é verdade — ele disse, mais confiante. — É sério, tu é assim com todos os guris que se interessam por ti, ou eu fiz alguma coisa de errado?

— Se houvesse algum guri que se interessasse por mim, eu poderia dizer — ela respondeu. Carlos, profundamente constrangido, calou-se.

— Eu só me sinto melhor com gente sincera em vez de bajuladora — ela continuou. — Eu prefiro pessoas que dizem as coisas do jeito que elas são, em vez daquelas que dizem uma coisa querendo dizer outra. Eu nunca entendi por que as pessoas fazem isso, quando é muito mais fácil dizer as coisas do jeito que elas devem ser ditas. Eu acho melhor assim, e ficaria melhor se tu falasse assim comigo.

— Tá bom, talvez eu tenha me excedido com os elogios. Mas, se tu quiser, eu vou ser completamente sincero.

— Sim, se tu puder.

— Tá legal — ele disse, limpando a garganta. — Eu realmente, sinceramente acho de verdade verdadeira absoluta que tu é muito bonita. Eu prefiro gurias que nem tu, e não que nem a tua amiga. Eu não tava só te bajulando. É isso que eu penso. E eu também não me importo com a maneira que tu fala, e eu não tô nem aí se alguém te acha uma louca, e se alguém pensa que tu seja esquisita. Isso não me importa. O fato é que a minha única intenção com esse passeio é me divertir um pouco contigo. É só isso. Na hipótese de que algo além disso venha a acontecer, eu vou ficar feliz, com certeza, mas não é isso que eu tenho em mente agora. A única coisa que eu quero é que tu te divirta muito hoje na minha companhia, e se isso acontecer, eu já considero o dia ganho. É isso.

Carlos fora o mais sincero que pode com ela. Ele só não sabia se estava sendo totalmente sincero consigo mesmo; afinal, a mente humana tem certos truques sujos para ocultar nossos desejos íntimos da nossa própria consciência externa. Poderia ser esse o caso? Ele não sabia, mas torcia para que não fosse. Rosa não merecia ser iludida e enganada, assim como quase todas as moças. Quase. Ele sempre ouvira que algumas mulheres gostavam disso, e nunca pensou em questionar.

— Tudo bem — ela disse, olhando pela janela — Se é isso que tu diz, eu vou acreditar em ti.

— Obrigado — ele respondeu.

Ela continuou olhando para a janela, pensando, ponderando se aquilo realmente era satisfatório. O problema não era ele fazer elogios e dizer-se atraído por ela—algo inconcebível para a mente de Rosa. O problema é que ela não sabia o que devia fazer diante disso. Como ela deveria reagir? Que coisas ela deveria dizer? Aqueles elogios, mesmo que fossem palavras bonitas e bem escolhidas, não tinham propósito nenhum. Não havia necessidade para nada daquilo. Se ele esperava que ela o elogiasse também, ela não saberia nem por onde começar, e muito menos por que fazê-lo. Era melhor falar sobre outras coisas. Mas o quê? O que havia para ser dito? Carlos respondera as dúvidas dela, e isso bastava. Ele queria conhecê-la; e para isso, bastava que eles estivessem juntos.

Rosa não conseguia entender direito por que as pessoas precisavam de tantas palavras vazias e ritualísticas, que só tomavam tempo. Ela poderia começar a falar sobre seu interesse em Química, mas já de experiência própria, ela iria certamente entediá-lo. Então era melhor ficar em silêncio.

 

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Receba nossa News

Publicidade