a coluna do fernie

Caça ao Tesouro – parte 2

A lotação chegou à praia de Arroio do Sal, e os passageiros todos desembarcaram. Rosa ficou esperando para que lado eles iriam. Carlos apenas começou a caminhar, e ela foi atrás. A praia era claramente mais movimentada que a praia de Rondinha, onde eles estavam veraneando, com pessoas passeando pelas calçadas, carros disputando espaço nas ruas, bares e restaurantes diversos, e uma grande praça com uma pequena pista de skate. Os dois foram caminhando em direção ao que parecia ser a avenida principal, com bastante comércio.

— Então, o que tu sugere pra começar o passeio? — ela disse.

— Pessoalmente, eu ia sugerir que a gente experimentasse uma das sorveterias daqui.

— Começar com sorvete? — ela disse. — Pode ser.

— Hm, tem algum problema com isso? — ele disse, meio preocupado.

— Não, de maneira nenhuma.

— Bom, então vamo — ele disse, apertando o passo. — Eu vou te levar na que eu, pessoalmente, mais gosto. Eu sempre ouço todo mundo falar da tal “sorveteria da figueira”, mas apesar de gostar dela também, eu tenho outra preferência.

— Parece um guia turístico.

O coração de Carlos doeu um pouco. — Putz, eu tô sendo tão chato assim?

— Não foi isso que eu disse! — ela respondeu, desajeitada. — Pode continuar.

Carlos não teve certeza se ela fora sincera, e decidiu ter mais cautela. — Bom, melhor do que ficar falando, é deixar tu tirar a tua própria conclusão, né?

— Pode ser. Mas se tu quiser emitir as tuas opiniões, não há problema — ela disse.

— Ok — ele respondeu. Os dois chegavam à avenida principal, que à esquerda terminava na beira do mar, e à direita parecia estender-se indefinidamente na direção da longínqua serra.

Rosa nunca estivera em um lugar tão diferente. Era uma cidade pequena e modesta, mas com um número desproporcionalmente grande de pessoas passeando de chinelos de dedo e frequentando sorveterias. Ela queria conhecer melhor aquele lugar, explorá-lo e ver que coisas mais ela encontraria. Por um momento ela se esqueceu de que estava acompanhada de Carlos.

— Por aqui! — ele disse, apontando o caminho. Ela demorou um pouco para perceber, mas logo foi atrás dele.

Os dois entraram em uma sorveteria em uma esquina da avenida principal. Tratava-se de uma espécie de buffet, com vários sabores diferentes e várias coberturas.

— Pode te servir à vontade, que é por minha conta — ele disse.

Rosa incomodou-se um pouco, pois ela tinha como pagar; mas preferiu não dizer nada. O pote dele estava bem mais pesado que o dela. Rosa gostava de sorvete, mas não tanto assim. Eles se sentaram a uma das mesas perto das janelas, com vista da avenida. Carlos logo começou a puxar algum assunto, pausando brevemente para comer. Rosa apenas olhava atentamente para o pote, como se estudasse seu conteúdo, comendo lenta e pausadamente. Vez ou outra ela largava o pote na mesa e observava a paisagem lá fora, enquanto batia um dos dedos na mesa em ritmos constantes. Ela queria sair e conhecer melhor aquelas ruas e aquelas casas. Não que a cidade fosse tão exótica ou misteriosa, mas era um lugar novo, e ela queria conhecê-lo. 

Enquanto isso ela ia ouvindo o que Carlos dizia—algo sobre as outras vezes em que ele estivera ali naquela praia, e de como as coisas foram mudando.

— Hoje a gente tem o parque ecológico — ele disse, pausando para mais uma colherada. — Antigamente aquilo era um matagal horrível, parecia um pântano. Chegava a dar medo. Agora tá legal.

Então, de súbito, ele parou de falar e ficou apenas olhando para ela. Foi então que ele notou que Rosa nunca olhava para ele. Não dava para saber se era por constrangimento, por desprezo, ou apenas porque isso parecia não fazer diferença para ela. O rosto dela era quase inexpressivo, e deixava transparecer apenas algum sentimento vago e longínquo de sabe-selá-o-quê. Parecia haver um mundo de ideias por trás daqueles olhos castanhos escuros, mas ela não deixava passar nada. Ele pensou que os olhos de Rosa poderiam ser como guardiões de uma floresta densa e misteriosa, porém fascinante—mas não, isso era pretensioso demais. Ele também tinha receio de mistificá-la e idealizá-la, para depois perceber que, no fundo, ela era apenas uma moça normal que ele não compreendia direito. Mas, afinal de contas, que tipo de moça normal calcula reações químicas de cabeça, e falava de maneira ao mesmo tempo tão eloquente e tão sem emoção? 

De repente, Rosa percebeu que Carlos não tirava os olhos dela.

— Por que tu tá me olhando? — ela perguntou, como quem pergunta as horas.

Ele deu de ombros. — Sei lá. Eu gosto de te olhar.

Rosa sentiu algo estranho. Mesmo acostumada a sequer ser percebida pelas pessoas ao seu redor, ela sentia falta às vezes de alguém que lhe desse alguma atenção; mas, ao receber atenção daquele rapaz, o que ela sentiu foi um estranho desconforto—como se “olhar para ela” não fosse uma atividade da qual as pessoas poderiam, ou deveriam, gostar.

— Eu não sou uma peça de museu — ela respondeu.

Carlos não conteve o riso. Em vez de uma reclamação irritada, essa frase no tom de Rosa parecia apenas uma constatação mundana. E a graça é que, na verdade, ele não sabia se ela apenas não conseguia soar irritada, ou se de fato fora apenas uma constatação mundana. Coisas como essa deveriam torná-la uma figura inequivocamente esquisita, difícil demais para se interagir e conhecer, mas ele ficava cada vez mais curioso e fascinado por ela. Ele quis dar uma resposta galanteadora para o comentário dela, mas rapidamente vetou a ideia. O personagem galanteador de antes já havia caído faz tempo, e agora era hora de ser espontâneo. Mas, afinal, se ele desse aquela resposta, ele estaria sendo espontâneo—silenciar fora exatamente o contrário disso. Então ele estava sendo o quê? Falso? Cauteloso?

— Desculpa se isso te incomoda — ele disse enfim. — Mas eu gosto de ti.

Rosa apenas acenou com a cabeça. Não houve resposta.

— Tu não gosta de mim? — Carlos disse.

— Ainda não sei — ela respondeu.

Ele se encolheu em sua cadeira, transtornado. — Essa doeu.

— Por quê? — ela disse.

— Puxa, eu achei que, pelo menos um pouquinho, tu gostasse de mim.

— Mas eu ainda não te conheço direito — ela explicou. — Além disso, eu não disse que eu não gosto. Eu disse que eu ainda não sei.

Confuso, Carlos decidiu apenas deixar para lá. Vai saber, talvez realmente fosse cedo demais. Ainda assim, ele sabia que gostava dela. Isso era certo. Os dois terminaram de comer e saíram da sorveteria. Antes que Carlos pudesse perguntar para onde eles iriam depois, Rosa já estava caminhando pela rua que atravessava a avenida principal.

— Ei! Vai aonde? — ele disse.

— Nessa direção — ela respondeu, apontando.

— Mas por quê?

— Eu quero conhecer a praia — ela disse, virando-se para ele, e logo dando-lhe as costas de novo.

Carlos deu uns passos apressados para alcançá-la. — Não quer ir pra nenhum lugar específico?

— Por enquanto não — ela disse. — Eu só quero ver como é aqui.

— Bom, tudo bem. Não é grande coisa.

— Na verdade, é bem diferente — ela disse, olhando as casas com muros baixos, grandes quintais com carros estacionados, paredes feitas de tijolos à vista e com grandes janelas. — Mesmo sendo uma cidade, não parece uma. E não parece nem uma cidade pequena, parece… uma grande colônia de férias.

— Bom, muitas das casas aqui são só pra férias mesmo.

— Sabe se tem gente que mora aqui?

— Tem sim — ele respondeu. — A cidade não fica deserta. Claro que diminui o comércio, mas ainda existe. Tem colégio, tem posto de saúde, tem tudo.

— Que bom. Seria interessante vir aqui no inverno, pra ver como é — ela disse.

— Tu acha? — ele disse. — Mas fica vazio, e não tem nada pra fazer.

— Isso não importa pra mim. Ficar num lugar diferente assim já valeria a pena.

— Ah, bom. Eu já não conseguiria fazer isso — ele disse.

Os dois seguiram caminhando por um bom tempo. Rosa não disse mais nada. Carlos tentou puxar algum assunto, mas nada lhe vinha à mente. Parecia que qualquer fala seria uma quebra desnecessária do momento. Em vez disso, ele tentou apenas experimentar o silêncio, e até que deu certo. Rosa não parecia desconfortável com a ideia de não falar nada, e isso era diferente. Há pessoas que equacionam silêncio com indiferença, ou desprezo. Rosa, ao contrário, parecia tratar o silêncio como algo sagrado, algo valioso. Carlos respeitou isso. 

Enquanto isso, ela apenas ia vendo as casas, reparando no basalto que formava o pavimento da rua, na areia amontoada junto aos paralelepípedos, a grama que servia de calçada, e a tranquilidade daquelas ruas afastadas das avenidas movimentadas e cheias de comércio. O tumulto e o burburinho não lhe interessavam. Rosa sentia-se anônima, invisível, misturada à multidão. Isso por si só não era um problema, mas ficava ruim quando ela se sentia invisível diante de si mesma, quando a identidade dela se diluía no meio do tumulto, quando o ruído das vozes era mais alto do que o som de seus próprios pensamentos. Isso era ainda pior ao estar acompanhada, pois o sagrado silêncio traduzia-se em distanciamento, em uma barreira intransponível, que transformava a companhia em ausência, a proximidade em solidão. 

Carlos acabou caminhando por lugares onde nunca estivera, e aos poucos começava a achar que era hora de sugerir algo diferente.

— Quer ir passear na beira da praia?

Rosa acenou com a cabeça. — Sim.

Ele estranhou a resposta tão rápida e sem convicção.

— Não vai te importar?

Ela sacudiu a cabeça. — Não.

Carlos sorriu, um pouco enviesado. — Não vai te incomodar?

Ela sacudiu a cabeça. — Não.

De fato, não dava para decifrá-la; se ela estava sendo sincera ou não, sua entonação não era suficiente para reforçar nenhuma das duas possibilidades. Carlos optou por acreditar que ela estava sendo sincera. Então, na próxima esquina, ele a conduziu na direção do mar. Eles foram caminhando por uma rua que terminava nas dunas que separavam a beira da praia do resto da cidade. A rua terminava sem muita cerimônia, em um gramado simples, e uma pequena trilha no meio das dunas conduzia à praia. 

Carlos rapidamente tirou os chinelos e segurou-os com a mão. Rosa ficou um pouco desconfortável de fazer o mesmo, mas logo percebeu que a areia começaria a entrar na sua sapatilha e machucar os pés. Ela discretamente descalçou-se e apertou o passo para ficar junto a Carlos. Ela reparou que a beira da praia ali era praticamente idêntica à de Rondinha. De fato, o litoral todo era quase uma linha reta. Rosa lembrava-se de como as praias se formam, e tentava entender como poderia haver uma praia tão reta e longa assim; provavelmente algum processo geológico que ela não conhecia.

Mesmo que Geografia não fosse o seu forte, ela se lembrava ainda de alguns conteúdos da época do vestibular. Ela teve imediatamente a vontade de correr aos livros para entender a formação daquele litoral. Mas dali, de onde ela estava, isso não seria possível. Portanto, ela concluiu, era melhor aproveitar o passeio. 

Na verdade, a caminhada dentro da cidade estava mais interessante, por causa do ambiente diferente. A beira da praia era igual para todos os lados. Já Carlos era quem adorava esse passeio. Ele não se importava nem um pouco com a monotonia do cenário, pois aquele era o seu chão, aquele era o seu mar. A praia carregava um significado profundo para ele, e caminhar por lá sempre fazia-o sentir conectado a algo maior. Talvez aquela linha eternamente móvel que separa o mar da areia fazia-o perceber que ele era pequeno perante o mundo, e isso fazia bem.

Rosa aos poucos foi tentando adaptar-se à paisagem e à areia sob os pés. Gradualmente eles se aproximaram do mar, até o ponto em que a água avançava sobre os pés deles. A água estava fria, e ela sentiu um pequeno choque ao primeiro contato. Mas no segundo contato, ela já estava acostumando-se à temperatura, e a água já não incomodava mais.

— Tá gostando do passeio? — ele disse, enfim.

— Sim — ela respondeu, com um breve aceno.

Ele pausou, inseguro de continuar falando. — Às vezes eu não sei se tu tá aproveitando, ou se tu tá morrendo de tédio.

— Eu não sou muito de sentir tédio — ela disse.

— Tu disse que hoje de manhã tava “um pouco entediada” — ele disse.

— Há exceções.

— Eu queria ser assim — ele disse.

— Não sei se isso é bom. Eu sempre tô pensando em alguma coisa, e às vezes eu até tenho vontade de só parar e absorver o momento. Mas eu me sinto incapaz. É claro que é impossível parar completamente o pensamento; afinal, o cérebro nunca pode se desligar, pois isso pararia com todas as funções vitais do corpo humano, e nós morreríamos. O cérebro é totalmente responsável pelo movimento de todos os músculos involuntários e pelo funcionamento de todos os órgãos vitais. Mas se fosse possível desligar um pouco a parte consciente do cérebro, talvez fosse bom, mas não dá.

— Em compensação, é difícil te fazer falar — ele disse, ousando dizer algo que pudesse ofendê-la.

— Eu não tenho muito pra falar.

— Bom, tu podia contar um pouco sobre como é a tua vida.

— Por quê?

— Ora, porque eu quero te conhecer — ele disse.

— Mas tu tá me conhecendo agora — ela respondeu. — Tu tá vendo como é a minha vida. Se eu te contar, eu vou te dar uma visão distorcida de como eu sou. A mente humana tem a tendência de distorcer memórias e filtrar os fatos de acordo com a cultura e a personalidade da pessoa, e isso tende a criar uma visão incompleta e imperfeita da realidade. Portanto, o que eu te disser a meu respeito vai ser falho. É melhor que tu veja e presencie por ti mesmo.

Carlos deu de ombros, um pouco perplexo. — É que eu gostaria de te ouvir falar mais.

— Mas eu não gosto de falar só por falar — ela disse.

— Devia tentar. Tu não disse que gostaria de não pensar em nada às vezes? Talvez falar sobre nada ajude.

— Mas eu preciso pensar pra falar — ela respondeu. — Isso não adianta.

— Sei lá. Foi só uma ideia.

Ele mordeu o lábio inferior, com vontade de fazer outro elogio, mas com medo da resposta.

— Eu gosto do som da tua voz.

Pela primeira vez, Rosa achou que ele estava sendo falso. A sua voz e sua fala eram justamente o que ela mais detestava em si mesma, e um dos grandes motivos pelos quais ela procurava falar apenas o necessário. O que ele disse, para ela, fora quase uma ofensa. Após o choque inicial, ela tentou cogitar se ele estava sendo sincero, mas isso lhe parecia tão remoto que não valia a pena sequer imaginar.

— Não diz isso — ela disse, ressentida. Carlos surpreendeu-se ao ouvir alguma emoção tangível em sua voz.

— Por quê?

— Porque não é verdade — ela respondeu, em um tom desnecessariamente alto.

— Êpa! Como assim? Tu acha que eu tô mentindo?

— Eu acho que tu só tá querendo me agradar — ela disse —, e tá dizendo coisas que não são verdade só pra parecer amigável. Nesses casos, é melhor que tu não diga nada.

— Mas eu tô sendo sincero! — ele protestou. — Por que tu pensa isso?

Rosa ia responder, mas de súbito sentiu um nó no próprio cérebro. Por algum motivo, ela não conseguia confrontá-lo e continuar dizendo que ele estava sendo falso, pois ele parecia convicto do que dizia. Sim, talvez ele estivesse sendo sincero. Não era falsidade: apenas confusão. Ele achava que gostava da voz dela, mas talvez estivesse projetando a voz de outra pessoa sobre ela e fazendo-a parecer mais agradável do que ela realmente era.

— Eu não sei falar direito — ela disse. — Tu não precisa tentar me convencer do contrário.

— Se tu não soubesse falar direito, eu não conseguiria entender o que tu diz. Só que eu consigo. Ou seja, tu sabe sim falar direito.

Rosa, pela primeira vez, não sabia mais o que falar.

— Esquece isso.

Carlos sentia-se um pouco machucado. — Pôxa, eu não quero que tu me interprete mal.

— Então não tenta me agradar — ela disse.

— Eu só disse o que eu sinto — ele protestou.

— Eu prefiro que tu diga o que tu pensa. O que a gente sente muitas vezes nos engana.

— Então tu não se importa com o que tu sente?

— Na maioria das vezes, não — ela disse. De fato, ela justamente havia se importado ao sentir-se ofendida pelo comentário sobre sua voz; isso justificava o “na maioria das vezes”.

— Então o que é que tu pensa de mim?

Ela deu de ombros. — Não muito.

Carlos recebeu a resposta como uma bofetada. — Tipo o quê?

— Tipo que tu tenta demais me agradar — ela disse, repetindo o “tipo” como que por imposição —, coisa que tu não precisa fazer.

— Mas o propósito desse passeio foi justamente de te agradar — ele disse. — Qual o problema por eu querer fazer algo legal por ti?

— Tu não tem motivo de fazer isso — ela disse. — Tu tá te forçando a isso sem necessidade.

Ele queria responder, mas estava cada vez mais difícil. De repente, todo o mistério que ele via em Rosa voltava-se contra ele. Ela já não parecia mais tão fascinante, e agora parecia um abismo que queria devorá-lo vivo.

— Mas eu gosto de ti — ele disse. — Isso é verdade.

— Tu mal me conhece.

— E daí? Isso é o que eu sinto. Ao contrário de ti, eu me importo sim com o que eu sinto, porque isso faz parte de mim. E eu sinto que eu gosto de ti. Isso significa muito pra mim.

— Eu não consigo gostar de ti sem te conhecer bem — ela disse.

Carlos suspirou, derrotado. Discretamente, ele se localizou na praia, e viu que ele já estava próximo da parada de ônibus. Ele se virou em direção à cidade e apertou o passo.

— Eu vou pra casa.

— Ei, me espera — ela disse.

Perplexo, ele olhou pra ela. — Ué? Tu ainda me quer por perto?

— Eu não sei voltar pra casa sozinha — ela disse.

Carlos sentiu-se burro. É óbvio: ele ainda era necessário para levá-la de volta.

— Ah, claro — ele disse.

Ele voltou a apertar o passo, e ela teve que se esforçar para segui-lo. Os dois já estavam caminhando pelas ruas, e ela tinha que prestar atenção nele, pois ele dobrava as esquinas como se quisesse desaparecer.

— Pode ir mais devagar?

— Posso — ele disse, seco.

— Parece que, de repente, tu tá tentando fugir de mim.

Carlos estendeu os braços, frustrado. — Do jeito que tu vem me tratando, tu queria que eu fizesse o quê?

Rosa não soube o que dizer.

— Pôxa, a única coisa que eu queria é que tu demonstrasse algum sinal de carinho. Não precisava me adorar e me achar o máximo, mas, tipo, que tu pelo menos gostasse do que a gente fez hoje. Mas parece que nada adianta.

— Bom, tu fez tanto esforço pra fazer aquele jogo só pra me convidar pra sair contigo — ela disse —, eu não pensei que tu desistiria tão fácil. Eu achei que tu poderia continuar se esforçando.

Carlos parou e virou-se para ela. — Tu acha que eu deveria fazer mais? Tipo, isso é um teste de resistência, ou o quê?

— Não, não é isso — ela disse. Carlos lentamente voltou a caminhar, e ela o seguiu em silêncio. — Eu só acho que…

Ele ficou aguardando o fim da frase, mas ela não falou nada. Não dava pra saber se ela parou porque não conseguia continuar, ou porque achou que não valia a pena.

— É que… não é que eu não goste de ti — ela disse, enfim. — É que eu ainda não sei o que pensar sobre tudo isso.

— Sobre tudo isso o que, exatamente?

— Sobre essa decisão de te acompanhar, sem saber quem tu é, e vir pra cá fazer uma porção de coisas que, pra mim, pelo menos, foram bem diferentes. Foi um passeio bom. Eu só não quero sair dizendo que eu “gosto de ti”, considerando todas as implicações disso. E eu também acho que tu não precisava dizer isso de mim, e agora ficar frustrado.

Carlos ia responder, mas esbarrou em outra coisa. — Que “implicações”?

— Eu não sei.

— Como não sabe? — ele disse. — Se tu tem medo das implicações, tu deve ter alguma noção do que seria.

— É verdade, eu não sei — ela respondeu. — Eu não sei direito como… como isso funciona.

De repente, Rosa deixava de ser uma nuvem carregada sobre ele, e voltava a ser um profundo mistério. — Eu juro que eu não tô te entendendo.

— Eu não sei por que tu gosta de mim — ela disse. — Eu achei isso tudo muito rápido. Não é pra ser assim.

Carlos, de súbito, viu-se diante de três quebra-cabeças aparentemente impossíveis de se resolver. Ele não sabia nem por onde começar a responder isso. Por questões de sanidade, ele preferiu responder a última frase primeiro.

— Então era pra ser como?

— Eu não sei — ela repetiu.

Carlos reparou na falta de expressão corporal de Rosa; quando ela repetia uma frase, ela repetia sempre do mesmo jeito. Foi então que ele percebeu que, talvez, isso não era uma mera ação automática: quando ela dizia que não sabia, ela realmente não sabia. Aquilo tudo, que para ele era tão simples, era um mistério para ela.

— Tudo aquilo que tu me disse na viagem pra cá — ela continuou. — Eu não sei o que fazer. Tu insiste em saber se eu “gosto” de ti. Eu não sei o que isso significa. Eu não… Eu não tô acostumada a isso. Eu não sei como reagir.

— Basta ser natural — ele disse, em um tom mais baixo.

— Mas eu tô fazendo isso, e tu agora tá dizendo essas coisas negativas — ela respondeu. — Tu ficou ofendido por eu dizer a verdade. Eu não posso fazer nada quanto a isso.

— Tem razão, é verdade — Carlos disse, subitamente resignado. — Eu posso ter exagerado. Eu só não entendo por que tu parece achar que esse simples fato de a gente ter passeado junto foi uma coisa gigante, enorme, cheia de implicações. E, tipo, como assim tu não sabe por que eu gosto de ti? Eu não preciso de muitos motivos pra isso.

— Claro que precisa — ela respondeu, sem pensar muito.

A essa altura, os dois já estavam na parada da lotação. Carlos apoiou-se com o ombro contra um poste.

— Ora, eu te vi algumas vezes lá no hotel, te achei bacana, e pensei que tu fosse uma pessoa legal com quem eu gostaria de passar uma tarde. Eu já expliquei isso. É simples.

— Não é assim que funciona — ela disse.

Ele se irritou um pouco. — Como é que tu pode achar que sabe como eu gosto das pessoas?

— Não, eu não tô falando de ti — ela respondeu. — Não é assim que funciona comigo. Ninguém simplesmente me acha “legal”.

— Ué, eu achei.

— Por isso é que eu acho isso estranho — ela disse. — Ninguém gosta de mim.

— Êpa! — ele disse, desapoiando-se do poste e aproximando-se dela um pouco. — Como assim, ninguém? Tu não tem aqueles teus amigos? Eles não gostam de ti, por acaso?

— Eles são os únicos que me aturam.

— Não diz isso! — ele disse. — Eles não sairiam contigo se eles só te “aturassem”. Eles certamente gostam de ti.

— Tu tá dizendo isso sem saber — ela respondeu. — Eu acho que, só porque tu passou algumas horas comigo, tu já sabe tudo da minha vida. Tu não sabe. Tu não pode dizer isso.

— Até pode ser — ele disse. — Mas eu já te vi com aqueles teus amigos lá pela praia não foi nem uma, nem duas, nem três vezes. Tu acha que eles ficariam contigo esse tempo todo se eles não gostassem de ti? Se não é por serem teus amigos, é por que, então?

Rosa deu de ombros. Ela sempre exagerava esse gesto. — Sei lá. Por pena, talvez.

— Duvido — ele retrucou.

— Olha, por que tu não para de falar sobre isso? Eu não quero mais ouvir sobre isso. Eu sei muito bem o que as pessoas pensam de mim. Minha vida inteira eu fui a guria antissocial, a guria que fala estranho, que não olha pras pessoas e não consegue se integrar em lugar algum. Eu já vi mais do que eu precisava ver. E tu pode continuar achando que gosta de mim, mas isso não é verdade. Seria melhor se tu desistisse.

Carlos suspirou, e viu a lotação aproximando-se. — Ah, tá, agora é tu que acha que sabe de mim, né?

Ela pensou no que ia responder, mas não conseguiu dizer nada. A lotação parou diante deles e abriu as portas. Os dois subiram, em silêncio, e Carlos pagou as passagens novamente. Ela se sentou em um assento da janela perto do fundo, e ele se sentou ao lado dela. A lotação arrancou e foi seguindo seu caminho.

— Eu só não queria prolongar isso, entendeu? — ela disse, após uma longa pausa. — Eu não vou conseguir ser tua amiga. Eu não quero ser um problema pra ti, então não fica insistindo.

Carlos esfregou os olhos. — Eu não entendo como tu pode pensar isso.

— Viu? É isso — ela disse. — Não precisa tentar entender. Tu não vai entender. Tu não é que nem eu.

— E quem disse que eu preciso ser? — ele protestou. — Para com isso. Não pensa uma coisa dessas.

— Não me diz o que pensar.

Carlos respirou pesadamente. — Tudo bem. Deixa pra lá. Não tá mais aqui quem falou.

Rosa respirou um pouco aliviada que finalmente aquela tribulação parecia ter acabado.

— Quer saber? Se isso for te fazer melhor, então literalmente não tá mais aqui quem falou — ele disse, levantando-se. — Não vou te deixar incomodada.

Carlos se sentou em outro assento, do outro lado e mais à frente, na janela. Rosa ficou surpresa com o ato repentino dele, mas ao menos agora ela estava sozinha, do jeito que ela estava acostumada. Ela não soube dizer com que propósito ele fizera aquilo: se era para tentar ofendê-la, ou se realmente era para deixá-la menos desconfortável, ou talvez ainda se foi por ele ter ficado magoado. Será? Em uma situação dessas, normalmente ela ficaria perplexa por um tempo, mas logo passaria. Porém, por algum motivo, a perplexidade não passava. A possibilidade de ela tê-lo magoado deixava-a inquieta; afinal, essa nunca fora a sua intenção. De toda forma, o melhor seria deixar as coisas do jeito que estavam. Se ela tentasse se explicar, certamente pioraria tudo. 

A viagem de volta parecia muito mais longa do que a de ida. Carlos desceu da lotação pouco antes do hotel, e ela tentou ao máximo evitar olhar para ele, por pura vergonha. Ela desceu algumas quadras depois e foi para casa. Não estava nem anoitecendo quando ela chegou. Pedro e Gabriela estavam em casa, vendo TV. Os pais de Gabriela tinham ido ao supermercado.

— Como é que foi lá? — Gabriela perguntou. Pedro olhava para Rosa com interesse. O olhar dela era neutro e inexpressivo, como de costume. Talvez um pouco murcho.

Rosa se sentou em uma poltrona. — Nada de mais.

— Como assim? — a outra disse, inconformada. — Vocês não conversaram? Não se conheceram?

Rosa não gostava nem um pouco de dar detalhes do que ela fazia. Conversas casuais não eram a atividade favorita dela, mas ela já havia aprendido a dar algumas respostas vagas, porém concisas o suficiente para preencherem o vazio. Dessa vez, porém, ela não fazia ideia do que ia dizer. Nenhuma dessas respostas seria sincera, e ela acabaria deixando ainda mais dúvidas; e a curiosidade de Gabriela não conhecia limites.

— Sei lá — ela disse, depois de lutar com as palavras. — Não deu pra gente se conhecer direito.

Imediatamente ela percebeu que havia tornado-se a presa perfeita para a curiosidade voraz de Gabriela.

— Mas como? Vocês passaram a tarde inteira juntos!

Pedro sentiu um calafrio ao ouvir essas palavras. Gabriela havia dado uma conotação óbvia demais à frase “passar a tarde inteira juntos”, e apenas a ideia disso causava-lhe um misto de pânico e raiva.

— Eu não me senti muito bem — Rosa disse. Pedro ficou um pouco aliviado. — A gente até conversou um pouco. Mas foi só.

— Tá, não precisa ser nada mais do que conversar — Gabriela respondeu. — Mas tu não te sentiu bem por quê? Ele não é legal?

— Não é isso — Rosa disse. — Eu só não consegui me sentir bem.

Gabriela pausou, e decidiu mudar a abordagem. — O que vocês fizeram?

— Nós primeiro fomos a uma sorveteria — Rosa disse, em uma narrativa lenta e pausada. — Eu não gosto muito de sorvete, pois a mistura de açúcar com leite não me agrada tanto. Desde criança eu fui meio avessa ao leite, apesar de não deixar de bebê-lo por isso, mas essa nunca foi a minha preferência. Depois disso, nós caminhamos um pouco pela praia, e depois fomos até a beira do mar. E em seguida voltamos para casa.

Gabriela já conhecia muito bem as explicações longas e desnecessárias de Rosa, e já estava acostumada a aturá-las sem dar muita atenção. Na realidade ela não sabia por que era obrigada a aturar isso, mas enfim, era inevitável.

— E o que não te fez bem?

Rosa passou a mão pelo rosto, como se algo a atormentasse. — Eu não sei. Eu não sabia o que fazer.

Pedro não conseguia conter-se, e sentia como se quisesse pular para fora do corpo. — Tudo bem, Rosa. Se tu não te sentiu bem, não tem problema. Não precisa ficar se preocupando com isso. Deixa pra lá.

— Não, espera aí — Gabriela disse. — O que tu quis dizer com isso, Rosa? O que foi que ele te fez?

— Ele não me fez nada — Rosa disse. — Ele só dizia que me achava legal, e gostava de mim, e eu… — Ela fez um movimento exaltado, quase desesperado. — Eu me senti mal com isso.

— Por quê? — Gabriela disse. Pedro já queria mandá-la calar a boca. — Se foi só isso que ele disse, não foi nada de mais.

— É, só que ele nem sabe que eu sou. Ele dizia aquelas coisas sem nem me conhecer direito.

— Pois é, tem caras que são assim mesmo — Pedro disse, mas Gabriela imediatamente interrompeu-o.

— Não tem nada a ver, Pedro. Ele pode ter muito bem gostado de ti sim, Rosa. Não quer dizer que ele te ache a melhor pessoa do mundo, mas pra dar uma volta e bater um papo, não precisa disso. Se ele disse que te achou legal, é porque ele te achou legal mesmo. Não tem nada de mal nisso. Tu não achou ele legal, por acaso?

— Ele não parece mau — Rosa disse. — Mas eu não sei o que fazer, e achei melhor que a gente esquecesse isso.

Gabriela ficou congelada. Pedro esforçou-se ao máximo para esconder sua euforia.

— O que tu disse pra ele? — Gabriela disse.

— Nem lembro — Rosa respondeu. — Eu disse que ele não precisava ficar achando que gosta de mim. Assim é mais fácil. Foi isso.

— E ele, o que ele disse?

— Ele disse que tudo bem, e daí a gente não conversou mais.

— Puxa, Rosa, não precisava ter dito isso — Gabriela disse. Pedro queria cortá-la e dizer para Rosa tudo o que realmente devia ser dito, mas ele se sentia incapaz. Era impossível fazê-la parar de falar. — Qual o problema em ele gostar de ti? O que poderia acontecer de ruim?

Ela ficou sem saber o que responder. — Eu não sei.

— Pois é — Gabriela disse. — Tu não precisa reagir assim. Não tem nada de mais, se alguém tiver a fim de passar um tempo contigo. Tu não vai formar uma amizade em uma tarde. Essas coisas acontecem aos poucos, e o melhor é deixar acontecer naturalmente, sem forçar nada.

— Tu não ouviu ela dizer que não se sentiu bem? — Pedro interrompeu. — Se não fez bem pra ela, então ela fez certo. Esquece aquele cara e fica tranquila. Tu não tem que dar explicação pra ninguém.

— Não fala bobagem, Pedro! Desde quando é saudável uma pessoa se sentir mal só por ter a companhia de uma pessoa nova? Isso não faz bem pra ninguém.

— Ah, tá, agora tu vai obrigar ela a sair com aquele cara?

— Tá, para, Pedro! — Gabriela disse, levantando-se, e indo para a cozinha. — Para de falar besteira. Tu sabe muito bem que não é isso que eu tô falando.

— Nossa, que mau humor — ele respondeu, sarcástico. Gabriela saiu da sala, e ele olhou para Rosa, timidamente. Ela estava olhando para o chão, absorta em seus pensamentos, com aquele olhar incerto. Ele pensou no que dizer, já que estava a sós com ela, mas nada parecia adequado. — Olha, Rosa, não fica assim. Se tu não gostou daquele cara, esquece ele. Ele teve a chance dele contigo, e se não deu certo, deixa.

Rosa apenas suspirou. Naquela altura, nada parecia fazer sentido para ela. As coisas que ela sentiu, disse e fez naquela tarde não pareciam ter nenhuma justificativa. Mesmo assim, havia de ter uma explicação. Ela já conhecia muito bem sua dificuldade em lidar com as pessoas, mas ela nunca imaginou que ela diria aquelas coisas a alguém. Gabriela provavelmente tinha razão: Carlos não fez nada de errado, e se os sentimentos dele eram verdadeiros, não houve motivo para ela agir daquela forma. E o que Pedro dizia não tinha relevância: não foi questão de não gostar dele. Ainda era difícil para Rosa decifrar seus próprios sentimentos por ele, mas não gostar certamente estava fora de cogitação.

Ela foi dormir aquela noite sem conseguir tirar esses pensamentos da cabeça. Talvez era hora de reconhecer, de uma vez por todas, que ela precisava mudar. Mas como? E por que, exatamente? Mudar apenas para agradar os outros não parecia correto. Se ela faria esforço para mudar, seria apenas para agradar a si mesmo, e tudo que ela queria era poder tomar suas decisões sem sentir-se em conflito com seus próprios sentimentos. Ela não poderia mais fugir do que lhe fazia bem. Talvez o que ela precisava era, de fato, alguém para passar algum tempo. Alguém como Carlos. Talvez até o próprio Carlos. Mas agora, tudo parecia perdido.

 

— Rosa, não vai contar pra mãe onde eu tô indo!

— Tu quer que eu minta, é isso?

— Não precisa mentir: tu só não vai contar essa parte. Se te perguntarem, a gente passou a noite aqui, e é só.

— Isso é mentir, Gabriela.

— Tu sabe que os meus pais sempre vão acreditar em mim primeiro, né?

— Sim, mas…

— Eu tô pedindo isso pro teu próprio bem. Eu não quero ter que dizer pros meus pais que tu é uma louca que vive inventando história. Tu sabe que eu não gosto disso.

— Sei.

— Então vê se fica quieta, tá? Eu tô indo!

— Vê se não demora.

Gabriela apenas riu.

 

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