RAFAEL MARTINELLI

Cadê as respostas sobre a porra-louquice de classificar facções como terror?

Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Associo-me ao artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna do UOL. Sigamos no texto:

“Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho.”

É Machado de Assis no Capítulo IV de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, intitulado justamente “Ideia Fixa”. A da personagem era o emplasto que nos livraria das dores de nossa “melancólica humanidade”. A ideia fixa pode levar à glória ou ao desastre — sendo este muito mais frequente do que aquela.

O projeto de lei que passa a considerar terroristas as facções criminosas é um delírio irresponsável e eleitoreiro da extrema direita. Impressiona-me que a imprensa — que noticia, mas também opina de vários modos: seja por meio da análise judiciosa, seja por meio da pauta e da edição, e não vai aqui espírito acusatório; é parte da profissão — olhe para a proposta, apegada apenas a seu mister da isenção, preocupada em garantir todos os lados do debate, mas sem alertar o seu público para as consequências de tal desatino.

Há um projeto de lei original, de autoria do deputado Danilo Forte (União-CE), e um substitutivo, um tantinho mais delirante, de, ora vejam, Alexandre Ramagem (PL-RJ) — sim, aquele… O buliçoso Nikolas Ferreira (PL-MG) é o relator na Comissão de Constituição e Justiça. Se aprovada, relatará o texto em plenário o senhor Guilherme Derrite (PP-SP), que se licenciaria da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo só para a tarefa. A estupidez conta com o entusiasmo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que tenta cavalgar a insanidade para voltar à disputa presidencial, e de Cláudio Castro (PL), o “católico” governador do Rio que um dia será distinguido no outro mundo pela eficaz produção de almas desencarnadas. Como se vê, tem-se aí a fina flor do reacionarismo mais abjeto.

A minha ideia fixa hoje é o Machado de “Memórias Póstumas”… Ele escreveu no Capítulo LXXVI que “o vício é muitas vezes o estrume da virtude.” E emendou: “O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã.” No caso, o que se tem são dejetos a produzir má consciência e propostas malsãs. Desta feita, o estrume foi malsucedido.

Ideia fixa de setores da imprensa

Já a ideia fixa de setores da imprensa passou a ser uma “resposta rápida e fulminante” ao crime organizado, o que não dispensa, como temos visto, o flerte com a execução sumária e a aplicação da pena de morte extrajudicial (afinal, inexiste tal pena no Brasil), tudo devidamente estimulado por imagens de bastidores dos “cinegrafistas da polícia”, preparadas para silenciar os críticos — e, como sabemos, qualquer restrição à barbárie, segundo o senhor Felipe Curi, secretário da Polícia Civil do Rio e pré-candidato ao governo do Estado, não passa de chororô de narcoativistas.

Há algo pior do que uma trave nos olhos desse importante ente de defesa das garantias públicas e individuais que tem de ser a imprensa. Se ela também é tomada pela “missão” de combater o crime — e tanto pior se isso ganha algumas tintas de engajamento localista —, então deixa de fazer as perguntas certas. Seria preferível um argueiro a impedir a visão ao espírito missionário que toma a cobertura.

Não é impressionante que não se tenham feito até agora algumas indagações sobre implicações decorrentes da transformação das facções em grupos terroristas? Notem: não se trata de um debate inscrito na tese burra da “polarização”, mal ainda pior do que uma farpa no olho. Vamos perguntar.

Questões

– Se as facções passam a ser grupos terroristas, então caberá à Polícia Federal combatê-las, não? Essa não é uma questão que se resolve por projeto de lei;

– os presídios, sob a influência dos comandos dessas organizações então “terroristas”, serão transferidos para o controle federal?;

– se todos os crimes derivados, então, das facções — que atos terroristas serão — passam a ser da competência da PF, qual deverá ser seu efetivo? Umas 100 mil pessoas, para começar?;

– as Polícias Militares deixarão de responder pelo enfrentamento das facções nos Estados? Ou as “organizações terroristas” serão combatidas por governadores, tão ciosos da sua autonomia, especialmente os de extrema direita, que rejeitam até a PEC da Segurança Pública? Ou cada um pretende enfrentar o terrorismo a seu modo?;

– se dar combate às as facções e aos crimes que dela derivam deixa de ser trabalho das PMs, elas vão fazer o quê? Caiar meio-fio e tronco de árvore?

– como as facções lavam dinheiro e, por óbvio, recorrem a fintechs e, por consequência, a bancos, o país correrá o risco de ter suas instituições financeiras desligadas do Sistema SWIFT por vinculação com o terrorismo?

Proposta em favor dos criminosos

São tantas e tais as dificuldades para implementar essa maluquice que a aprovação de tal proposta seria, na verdade, um presente ao crime porque desorganizaria o trabalho da PF e geraria omissões nas polícias dos Estados. E os criminosos ficariam gratos por isso. Não é questão de gosto, mas de fato.

Não, abobado! Não é a “polarização” que impede que se veja o óbvio. Até porque inexiste “polarização” entre o bom senso e a asneira. Houvesse uma porra-louquice de extrema direita, e há, para enfrentar as facções e outra de extrema esquerda, então se estaria diante de dois polos.

O projeto de lei proposto pelo governo não é manifestação de um extremo: trata-se apenas de reconhecer a real natureza do crime e de levar em consideração as competência já existentes, coordenando os esforços do governo federal com os dos Estados.

A extrema direita quer usar a palavra “terrorismo” para fazer campanha eleitoral e para, mais uma vez, jurar a sua fidelidade a Donald Trump, contra os interesses do Brasil.

Encerro

Infelizmente, a ideia fixa impede que setores importantes da imprensa vejam o óbvio e se percam, pela undécima vez, no tal “debate polarizado”. Não custa lembrar: a extrema direita é, sim, um dos polos do debate; os valores democráticos, não. Ou o meio-termo entre uma coisa é outra já não seria democracia. E, por óbvio, teria o cheiro indisfarçável do fascismo. Chegou a hora de estudar geometria política em vez de sair por aí a repetir teses de embusteiros.

É preciso abrir os olhos.

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