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CANOAS | A emboscada que pôs a Fazenda Gravataí no epicentro da Revolução Farroupilha; os ‘vintes’ de setembro do Coronel Vicente Ferrer

Carga de cavalaria Farroupilha, de Guilherme Litran, pintura do acervo do Museu Júlio de Castilhos/Reprodução

Episódio histórico da morte do Coronel Vicente, às margens do Rio Gravataí, é considerada a primeira morte política da Revolução de 1835-1845

Já passava da metade do mês de janeiro de 1836 quando o capitão Rocha recebeu ordens para intimar o Coronel Vicente Ferrer da Silva Freire, militar sobre o qual repousavam severas reservas por parte das lideranças farroupilhas. Era preciso levá-lo a Porto Alegre a fim de acertar-se com a revolução. Se necessário, preso. Em 20 de setembro do ano anterior, estancieiros da província revoltados com a concorrência desleal com que disputavam mercado com o charque e do couro que vinha da Argentina e do Uruguai amotinaram-se em insurreição contra o Império. Estavam às ordens de Bento Gonçalves e de um grupo de líderes militares que a esta altura já enxergavam no movimento a oportunidade perfeita para tirar o Brasil meridional das rédeas da Regência – Dom Pedro II, só em 1840 assumiu de fato o trono no episódio conhecido como Golpe da Maioridade. A República do Piratini ainda nasceria ao longo daquele histórico 1836, de modo que Rocha sequer podia ser chamado oficialmente de capitão; sua patente, afinal, viria com o surgimento do exército farrapo e não com o motim incipiente que chegara a Porto Alegre, mas que ainda não tomava conta do Rio Grande como viria a acontecer até o início de 1845.

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À missão, Rocha chamou um curto grupo de soldados. Os revoltosos estavam convencidos de que o Coronel Vicente se mantinha firme e fiel ao Império e foram bater à porta de sua casa, a famosa Chácara da Brigadeira, propriedade semi-rural que ficava entre as atuais avenidas Independência e Voluntários da Pátria, no Centro da Capital. Deu em nada. O coronel havia saído. Logo imaginaram que o destino de Vicente Ferrer poderia ser a Fazenda Gravataí, uma antiga sesmaria concedida ainda no Século XVIII à família Pinto Bandeira que compreendia toda a extensão da margem direita do Rio Gravataí em terras que hoje pertencem às cidades de Canoas, Cachoeirinha e Gravataí.

A Fazenda Gravataí era o temor dos revoltosos de primeira hora da intentona farroupilha. Temiam que o local servisse de abrigo à resistência imperial ligada ao presidente da Província, Antônio Fernandes Braga. Ficava a poucos quilômetros da capital o que, à época, era distância segura para conspirações de qualquer motivação. Braga estava refugiado em Rio Grande, que viria a ser a base imperialista durante praticamente todo o conflito farroupilha, mas a tensão naquele janeiro de 1836 ofuscava qualquer certeza farrapa. Se o Coronel Vicente estivesse na fazenda, era preciso capturá-lo e colocá-lo diante do comando revolucionário.

Coronel Vicente Ferrer da Silva Freire e sua esposa, Rafaela Pinto Bandeira, em imagem extraída de um recorte de jornal. Reprodução Redes Sociais

A escolta de Rocha atravessou a várzea do Gravataí muito provavelmente na altura de onde hoje fica o município de Cachoeirinha, de barco, e protegeu-se um pouco além sob os capões de mato que desenhavam a paisagem de onde hoje ficam os bairros Niterói e Rio Branco. Os meses de verão, quando não são chuvosos, são propícios para essa travessia também por balsas. A primeira ponte a facilitar a mobilidade entre Porto Alegre e o que viria a ser Cachoeirinha só foi erguida por volta de 1845, nove anos depois, sob ordens do juiz de paz, político e empreiteiro João Baptista Soares da Silveira e Souza, o Comendador Baptista. Em janeiro de 1836, Rocha e seus asseclas podiam ver com bastante profundidade a vasta extensão das terras do Coronel Vicente, mas a prudência recomendou ao grupo que se mantivesse atento. Era poucos para meterem-se em um conflito em campo aberto. Além do mais, havia a informação de que o coronel podia estar ‘entrincheirado’ e pronto para atacar Porto Alegre rodeado de aliados imperialistas.

A sede da Fazenda Gravataí, a residência conhecida como a Casa da Brigadeira, está em pé até hoje. Fica nos fundos da Refinaria Alberto Pasqualini e que está prestes a se tornar um parque ambiental aberto ao público. Naquele ano de 1836, a distância entre o rio e a casa não era percorrida em menos de 12 horas. Era um trecho longo e inseguro demais para que Rocha se metesse a valente.

Demorou não mais do que um ou dois dias para que os homens a procura do coronel avistassem um escravo atravessando o campo e, ao segui-lo à distância, identificassem o Coronel Vicente e seu filho Diogo, então com 23 anos, protegidos eles também por um capão de mato. Não havia o temido Exército Imperial com eles. As informações disponíveis não são precisas quanto ao local exato do encontro, mas é bem provável que seja em algum ponto onde hoje está o bairro Niterói. Ali, a 26 de janeiro de 1836, o Coronel Vicente Ferrer da Silva Freire tombou em um controversa emboscada e pôs a Fazenda Gravataí no epicentro da revolução que consumiria a próxima década da História gaúcha.

As ordens eram para prender, não matar

A ideia da emboscada não teria partido do ordenança farroupilha e, sim, de um de seus homens. Escondidos no mato, teriam aguardado a saída do escravo que viera trazer mantimentos ao senhor para surpreender o coronel pelas costas. Como resistiu à intimação, teria sido declarado preso – mas restou imediatamente assassinado pela escolta que acompanhava Rocha. Consta que houve, inclusive, a profanação do corpo de Vicente Ferrer, de quem teria sido arrancada a orelha, artefato que acabou parando lá pelas bandas de São Leopoldo, mais tarde. Do filho, também morto naquele dia, teriam arrancado um dos dedos da mão.

A morte do Coronel Vicente precisa ser entendida no contexto da Revolução Farroupilha, uma guerra que derramou pouco sangue entre as elites. A tomada de Porto Alegre, a 20 de setembro de 1835, foi precedida na noite anterior de uma rápida batalha na altura da avenida Azenha. Os revoltosos José Gomes Jardim e Onofre Pires puseram para correr uma guarnição de polícia do Estado e impelindo o presidente da Província, Antônio Rodrigues Braga, a recuar antes que o golpe fosse inevitável. Partiu para Rio Grande pelo Guaíba nas primeiras horas da manhã de 20 de setembro, impondo ao calendário o que mais tarde ficaria conhecido como o Dia do Gaúcho. O episódio encheu de valentia os adeptos da intentona que se diziam dispostos a matar e morrer pela revolução – e, se era verdade, não seria o Coronel Vicente que se poria diante deles para mudar-lhes as convicções.

A morte do coronel, no entanto, precipitou a reação bélica do Império. Vicente Ferrer da Silva Freire, baiano de nascimento, era prócer do Exército. Estava no Rio de Janeiro em um outro 20 de setembro, o de 1807, quando o Rei Dom João VI, lá de Portugal, mandou criar a Capitania-Geral de São Pedro do Rio Grande para dar conta dos negócios e da administração do Estado. Dois anos depois, o Brigadeiro Dom Diogo de Souza é nomeado para o cargo e escolhe Vicente Ferrer para acompanhá-lo, já sob a patente de Coronel de 2ª Linha. Em Porto Alegre, conheceu Rafaela Pinto Bandeira, filha do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira e Josefa Eulália de Azevedo, a viúva que ficou conhecida como ‘brigadeira’ e deu nome tanto à chácara em que Vicente e Rafaela moravam em Porto Alegre quanto à região onde hoje está a casa-sede da antiga Fazenda Gravataí. Rafaela era neta do lagunista Francisco Pinto Bandeira, o desbravador que a 8 de abril de 1763 acampou também em uma várzea do rio com cerca de mil índios e iniciou a povoação da Aldeia dos Anjos, atual cidade de Gravataí, e recebeu do Rei a sesmaria das terras do lado direito do rio que formam toda a região em que essa História acontece.

Depois da guerra de posições, a Paz de Ponche Verde

Ao saber da morte do Coronel Vicente, o governo regencial comandado então pelo padre Diogo Antônio Feijó ampliou as tropas à disposição de Braga na Província, mas a revolução seguiu tomando vantagem em um ambiente dominado pelos estancieiros. Bento Gonçalves foi preso em outubro de 1836 no que ficou conhecida como a Batalha do Fanfa, ilha de mesmo nome na altura do município de Triunfo, no leito do Rio Jacuí. Levado à Bahia natal de Vicente Ferrer, fugiu da prisão quanto teve oportunidade, mas só regressou ao Sul em 1839.

A distância e a reclusão não impediram que em 11 novembro 1836 Bento Gonçalves fosse declarado Presidente da República Rio-Grandense, com sede na cidade de Piratini. Sob avanços e recuos, a Guerra dos Farrapos foi a mais longa revolta do período imperial e manteve-se pouco sangrenta até o fim. A estimativa oficial é de houveram em torno de 3 mil mortes em 10 anos de conflito. A Cabanagem, em cinco anos, matou mais de 30 mil homens entre 1835 e 1840 na região do atual Pará. A morte do Coronel Vicente Ferrer mostra que a Revolução Farroupilha não esteve isenta de crueldade e a batalha do Cerro dos Porongos, onde um batalhão de lanceiros negros foram vilmente assassinados comprova isso.

O conflito dos farrapos só tomaria rumo definitivo a partir de 1840, quando Dom Pedro II assume o trono aos 14 anos e envia Luís Alves de Lima e Silva, o Barão de Caxias, para liderar as tropas do Império contra os revoltosos. Caxias teve uma educação militar primorosa, estratégica, e tinha sido professor de esgrima do futuro imperador, na juventude. Com sucessivos cercos aos revolucionários, Lima e Silva foi debelando a imposição farroupilha, que já vinha desgastada pela dificuldade econômica vivida em solo gaúcho como um contrapeso da guerra.

Lima e Silva foi pessoalmente encarregado por Dom Pedro II para avançar nas tratativas de Paz que levaram ao Tratado do Ponche Verde, documento assinado por ele e pelos revoltosos em 1º de março de 1845 em uma coxilha no interior da cidade de Dom Pedrito. O tratado anistiava os revoltosos, preservava propriedades privadas e incorporava ao Exército Brasileiro os combatentes farroupilhas em patentes equivalentes – à exceção dos generais, que seriam anistiados, mas não incorporados.

A Revolução Farroupilha estava encerrada.

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