BLOG DO RODRIGO BECKER

CANOAS | As fakes e a tragédia dentro da tragédia; JJ, o puxão de orelhas no jornalismo e a fábula da Branca de Neve ao avesso

O que explica essa profusão de inverdades que sustenta as redes sociais nos dias mais terríveis da nossa história? Acho que sei por onde começar essa conversa incômoda

Exército que barra voluntário; mil corpos boiando no Mathias; o bebê do Rio Branco; a luz religada no Centro no alagado no sábado de resgates frenéticos; multa para caminhão de donativos; Brigada escondendo o número real de mortes na tragédia; doações desviadas; abrigos liderados por facção; bombeiros escondendo os jet skys em Nova Santa Rita; e, agora, a requisição para legalizar o ‘roubo’ dos donativos.

O que tudo isso tem em comum?

São todas fakes que ganharam as redes desde os primeiros dias da enchente e, como as águas do Rio do Sinos sobre o bairro mais populoso do Estado o Mathias Velho, foi subindo e subindo. E chegaram aos trend topics do nosso WhatsApp do mesmo jeito que o mega traficante norte-americano Franck Lucas explicou, em 1978, como perdeu toda sua fortuna: ‘primeiro aos poucos e, depois, foi tudo de uma vez’.

Mas como uma inverdade ganha tantos adeptos, se espalha tanto, chega em tanta gente em tão pouco tempo?

Na era do conhecimento disponível em meio digital, da informação de acesso fácil, parece um grande contrassenso que a gente tropece em fakes a cada atualizada no Instagram, Tik Tok e WhatsApp. Nosso costume de nos informar pelos pitacos dos outros, em meio a um tragédia que pôs 180 mil pessoas para fora de suas casas, está elevada à potência máxima. E em redes cada minuto mais inflamadas, tudo vira um barril de pólvora.

Minha filha de 11 anos esta semana me perguntou como ela poderia saber o que era fake em meio a tanta informação correndo as timelines por aí. Disse a ela o que se aprende na primeira semana da faculdade de jornalismo — e aprendi com José Carlos Hoffmann e Adriana Duval, lá na Unisinos do final dos anos 90 —: desconfie. Questione. Duvide!

Tem um vídeo da Agência Lupa que explica como não desinformar se informando. Assiste:

O lado mais forte

Em 1997, em uma viagem a Brasília, fui ao Congresso Nacional e encontrei por lá o então deputado federal Eliseu Padilha, falecido recentemente. Padilha assumiria dali a algumas semanas o Ministério dos Transportes de Fernando Henrique Cardoso e organizava a base do governo que disputaria, naquele ano, a reeleição. Era ‘o cara’ do Congresso e o foi por muito tempo, mesmo quanto não tinha mandato.

Fui falar com ele.

Usei a credencial mais manjada de todas, mas serviu: o nome de um amigo em comum me deu atenção do deputado mais disputado da Câmara Federal na época. E fiz uma pergunta única para a qual ele me deu uma aula, quase uma hora do seu tempo e mostrou anotações feitas a mão que, hoje, valeriam uma biografia. Eu queria saber como ele entendia a alma do Congresso. E pelas tantas, tivemos uma conversa mais ou menos assim.

— A Câmara dos Deputados tem uns 30 parlamentares que são ideológicos, tem postura, respeito às leis e ao republicanismo. Exemplos de estadistas. E tem, do outro lado, uns 30 que são aproveitadores, malandros, caricaturas dos políticos da pior espécie — avaliou.

— E os outros? — questionei.

— Bem, todos os outros não são uma coisa nem a outra. Eles vão com o lado que está mais forte.

O caos é o lado que está mais forte

A frase do Padilha serve para o contrato social em que vivemos.

O povo é assim. Não somos tão bons para sermos beatificados nem tão maus para arder a eternidade no inferno. O povo, essa massa de gente capaz de atos de coragem e humanidade extrema como entrar destemidamente em ruas com água a 2,5m de altura para socorrer desconhecidos e seus animais de estimação é o mesmo que hostiliza bombeiros que há uma semana fazem o mesmo que eles, todos os dias, sem descanso.

Sim, houve hostilização aos bombeiros em Canoas, no viaduto do Mathias Velho, na manhã deste sábado.

No momento em que os ‘fiscais de tudo’ pareceram mais fortes, o povo foi junto. E vivemos este estado de apontar o dedo a tudo e a todos por qualquer viral que repica nossa timeline — de preferência os que chocam mais.

Vale lembrar, a título de se fazer justiça, que Canoas conta com 53 bombeiros oficialmente lotados nas unidades do município. Estão todos de serviço, férias revogadas e folgas suspensas. No fia 4 de maio, quando as águas tomaram conta de todo o lado Oeste da cidade, tínhamos mais de mil voluntários com barcos ou jet skys, 10 mil curiosos e 30 mil pessoas saindo da área alagada e ficando às margens dela para ajudar. Em meio a tanta gente, você tem certeza de que conseguiria identificar um bombeiro por lá? Um policial militar sem farda? Ou um servidor público que seja?

A nobreza e a rápida disponibilidade dos voluntários foi essencial, mas isso não desfaz o trabalho dos bombeiros nesta hora. Nem de tantos outros profissionais que atuaram no socorro e hoje atuam no acolhimento. Eles estavam lá e seguirão. Merecem o nosso reconhecimento.

O puxão de orelha no jornalismo

Tenho acompanhado a cobertura das rádios e dos jornais sobre a tragédia no Estado por dever de ofício, mas também pelo hábito. Jornalismo é a minha paixão. E mesmo sendo um colunista de opinião, ainda me sinto como um repórter: um cara que questiona.

O jornalismo profissional acostumou a ‘apertar’ autoridades e está certo. É nosso dever fazer isso. Questionar o que está errado é obrigação. Mas temos visto uma variação dessas afirmativas que, no futuro, vai embasar novas discussões sobre a nossa profissão de um modo parecido como as pesquisas eleitorais e as abordagens que fazíamos delas também geraram debates no passado recente.

O jornalismo profissional não pode ‘embalar’ posições do público baseadas em inverdades. Se questiona a autoridade, deve esclarecer o leitor, o ouvinte ou o telespectador. Isso é missão e não uma escolha: ou se faz assim ou não faz. Às vezes incomoda muita gente, mas o certo é o certo mesmo que doa mais do que a mentira.

No sábado, ouvi a entrevista do prefeito Jairo Jorge à Rádio Gaúcha na programação especial que a emissora está fazendo sobre a enchente no Estado. Numa das perguntas, a fake de que o decreto de requisição autoriza a Prefeitura a ‘apropriar-se’ dos donativos. Mesmo com o prefeito dizendo que não, o repórter insistiu dizendo que esse era o entendimento das pessoas.

Conheço o repórter e sei que não foi mal intencionado à entrevista com o prefeito. Mas se não estava satisfeito com o que Jairo Jorge disse, precisava ir mais a fundo. Consultar outras fontes. Ver como acontece em outras cidades. Informar corretamente não é uma opção: é dever, obrigação.

O risco sobre ‘embalar o entendimento das pessoas’ é o jornalismo autorizar sem poder algum para isso todo o tipo de discrepâncias. O bandido que tentou roubar a lancha e desavisadamente abordou um barco cheio de policiais, por exemplo. Merece um ‘justiçamento’ ou merece justiça? Nas redes, o povo queria que ele fosse apedrejado, apanhasse na praça, fosse atirado no fundo do Mathias com uma pedra amarrada ao pescoço ou esfolado vivo. Ninguém ofereceu a ele a lei, que determina a prisão por tentativa de roubo, um julgamento justo e a prisão, por culpa. É pouco? Acho que é, mas é a lei.

Quando o jornalismo ‘embalou o entendimento’ de que o decreto autoriza o governo a dar de mão nas doações, esclareceu nada ao seu público — mas ficou de bem com a revolta do momento. Sim, é revolta e não razão o que espuma nas redes. Não dá para confundir uma coisa com a outra. É disso que se trata a minha cobrança — ou puxão de orelhas.

Em 14 de maio de 1987, o operário Júlio César de Melo Pinto foi preso confundido com um assaltante na Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre. Um fotógrafo da Zero Hora na época, Ronaldo Bernardi, capturou a imagem de Júlio César sendo algemado e colocado com violência dentro de uma viatura da Brigada Militar. Na rua, o povo aplaudia a ação rápida da polícia — numa época sem redes sociais, esse era o endosso para culpa presumida do rapaz. Negro e pobre na Porto Alegre dos anos 80? De alguma coisa deveria ser culpado.

O operário chegou morto, com um tiro da barriga, ao Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, uma hora depois. Sua morte ficou conhecida como o ‘Caso do Homem Errado’ e virou filme, em 2017. O jornalismo que não engoliu a história oficial não ajudou a salvar a vida de Júlio César, mas a manter a dignidade de sua história. A série de reportagens que Zero Hora fez sobre o caso não permitiu que o esquecimento deixasse tudo por isso mesmo. Constrangeu os poderosos, mas deu certo: um humilde foi exaltado.

Jornalismo bom questiona autoridades, as enfrenta. E, às vezes, questiona o público. Ou pelo menos os irascíveis com tempo e banda larga de sobra para o metralhismo apocalíptico nas redes sociais.

O que é verdade no caso do decreto

O decreto 174 e o 182 que veio depois dele autorizam as tais requisições administrativas passaram pela avaliação da Agência Lupa, conhecida em todo o país por desmentir fakes que circulam pelo ambiente online. Desmentida a tal ‘institucionalização do confisco das doações’, tudo certo?

Não.

Primeiro, o Direito. Em termos jurídicos, requisição administrativa é “uma intervenção na qual o Estado utiliza-se de bens imóveis, móveis e de serviços particulares no caso de iminente perigo público”. As palavras, por óbvio, não são minhas; são do articulista Rafael Rezende Oliveira, para o site Consultor Jurídico.

Na prática, a requisição administrativa é uma forma jurídica para que o agente público possa obter bens (cestas básicas, papel higiênico, lanternas, etc.) ou serviços (limpeza das ruas, hidrojateamento, transporte, etc.), pagando por isso sem precisar fazer uma licitação. Ela não pode ser feita por qualquer motivo. A lei brasileira prevê o caráter urgente e o interesse público como requisitos à requisição administrativa. Repare no que diz o texto da Constituição Federal:

“No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.”

Agora, opinião — haters de todos os naipes podem pular aqui e seguir adiante.

O decreto 174 era mais amplo, vá lá; o 182 redefiniu o alvo das requisições; e o 185 declarou, explicitamente, que as doações não fazem parte do do procedimento. Mas precisava? Requisição serve para amealhar donativos? Na prática, não. Isso seria confisco.

Donativos ou doações, para efeitos contábeis, são valores ou bens destinados a pessoas ou instituições sem a cobrança de valor real por eles. Como a requisição precisa ser indenizada, ela teria de ser feita na origem da doação, ou seja, com os proprietários daqueles bens e não no destino — porque os bens não pertencem aos destinatários e, portanto, eles não podem ser indenizados a eles.

É aí que surge um problema prático: doações não são específicas a uma única pessoa.

Imaginem um caminhão com 150 mil litros de leite doados aos acolhidos na Ulbra, que abriga hoje cerca de 4 mil pessoas, por um grupo de empresários sensibilizados com a situação; a requisição, lembre-se, prevê indenização ou pagamento pelo bem requerido. Quem, caro leitor, você acha que deveria ser indenizado, neste caso: a Ulbra, que não gastou um pila com o leite fictício? Os abrigados, 4 mil pessoas numa fila para receber algumas notas de 2 e outras moedas? Ou os empresários que, no fim, doaram de livre vontade o leite aos famintos e, provavelmente, sequer nota fiscal de compra tem no bolso para comprovar o ato?

Embora o decreto inicial de requisição pareça amplo, não há como a prefeitura justificar aos órgãos de controle a requisição de donativos. Ou são doados ao governo ou para entidades e distribuídos por elas. 

Fim da fake — mas vai ainda vai ter gente insistindo.

A fábula invertida

Para terminar essa longa missiva, lembro da história original que nós conhecemos como da Branca de Neve. Não a da princesa da Disney, mas a escrita pelos irmãos Grimm, publicada em alemão por volta de 1817. 

Essa é, na verdade, a história da Rainha Má.

Lembram? Ela tem um espelho mágico e pergunta para ele se há, no reino, outra mulher mais bela. O espelho responde: “não!”. E está tudo certo. O reino está feliz, a Branca de Neve em paz, a rainha tranquila. Assim também no dia seguinte e o espelho responde: “não!”. E segue tudo certo.

Até que um dia a rainha pergunta se há no reino uma mulher mais bela e o espelho responde: “sim, a Branca de Neve”.

Pronto: a rainha se transforma em bruxa, tenta envenenar a Branca de Neve, contrata um matador para dar fim da menina e põe fogo no reino.

Moral da história: em quem você se transforma quando é contrariado?

Isso explica a fúria de muitos nas redes sociais — mas, repito: revolta não é ter razão. Essa ideia de atirar ‘pedras nas Geni’ por tudo que nos enoja nas redes toma um caminho perigoso quando questionamos o papel do Estado. Imperfeito, é. Com erros, também — que devem sempre ser apontados. Mas o Estado é o que nos restará quando a solidariedade for embora. Finalizo com o tuíte do colega Leandro Demori, do ICL Notícias, site que vem fazendo uma extraordinária cobertura das enchentes no RS para o Brasil ver.

“A mentira sempre foi uma arma dos poderosos. Agora também a transformou numa brincadeira dos imbecis contra a democracia”.

Pensem mais. E cuidem-se.

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