Anúncio de que Canoas terá um segundo restaurante popular me dá a oportunidade de contra a história de uma família anônima que começou uma virada na vida depois que pode dar o que comer para as boquinhas que tinha fome
Provavelmente, você e eu que estamos dividindo este post nunca passamos fome, no sentido mais literal do termo. Uma coisa é ficar algumas horas a mais sem comer, sabendo que o ronco da barriga logo, logo será saciado. Outra coisa é passar fome.
Conheci dois alunos da rede pública em Canoas que chegavam na escola na segunda-feira varados de fome. Não tinham quase nada em casa para dividir entre si e outros oito irmãos, os pais e um casal de avós em idade avançada e doentes – os únicos com renda fixa naquela família desassitida de sorte. O pai, ex-dependente químico, em sua luta diária contra o vício, nunca soube se o seu maior inimigo era a droga ou o preconceito. Sem trabalho, catava latinhas na rua para trazer pão ou biscoitos para casa à noite. Um dia, provavelmente por falta de coragem, sumiu no mundo.
A mãe me disse que nem de droga precisou para arruinar a própria vida. Largou a escola logo que achou que sabia o que fazer do próprio nariz. Era mais divertido na rua onde a juventude tinha graça. Hoje, perto dos 40 anos, não é qualquer toada que lhe arranca o riso. Não era preciso que me dissesse que sabe que a vida que leva é fruto das escolhas que fez no passado e das oportunidades que deixou pelo caminho. Mas algo a mantinha firme: a fé. Não essa que recomenda entregar temência a Deus, mas aquela em que um ser humano acredita que pode tocar o outro e mudar um destino. Aquela mãe que cria oito filhos sozinha enquanto cuida dos pais doentes disse ‘não!’: sua prole, uma dia, não passaria tanto trabalho como ela.
Do mais novo ao mais velho, a moradora da Comtel os leva à escola onde sabe que terão o lanche que em casa não pode oferecer – não sem antes ouvir um vaticínio pelo caminho.
– É melhor vocês estudarem direitinho para trabalhar naquelas firmas ali porque na Pecan eu não visito ninguém – apontando primeiro para as empresas do PCI e depois para a penitenciária na vizinhança.
Na quarta-feira, 29, quando a Prefeitura de Canoas anunciou que daqui a uns 20 dias, abre um novo Restaurante Popular no Mathias Velho. Por lá, pretendem servir 300 refeições por dia a R$ 1 – e quem se cadastrar e não puder pagar, come de graça. O restaurante ainda vai dividir espaço com a Economia Solidária na Avenida Rio Grande do Sul, 3462 – o que garante, ainda, uma economia de aluguel.
Porque misturo um assunto com o outro? Por que a família que retrato na abertura deste post e a qual preservo as identidades só conseguiu garantir comida para todos quando abriu o Restaurante Popular da Boqueirão, em meados do ano passado. É de lá que vem a marmita que completam com feijão, arroz e massa que dá para comprar com o soldo de aposentado do avô.
Lembrei de contar essa história porque o momento é apropriado: já faz um ano que os filhos dessa família chegam à escola sem dor na barriga – a ‘dor do oco’, que é como o sertanejo nordestino brinca com a própria fome. Será que nós, que compartilhamos esse post, conseguimos entender o que seja isso?
Com fome não se brinca.
Para terminar esse pequeno post que já virou um textão, a mãe em questão está fazendo bico de faxineira durante o dia – à noite, cuida da limpeza de uma lancheria no Guajuviras. A comida que ela um dia levou de graça do Restaurante Popular alimentou o corpo, mas também o espírito e aquela fé diferente que o sustenta – e me chamou a atenção para conhecer um pouco mais dessa história de vida em particular.
Sem fome, a vida dela e a dos filhos parece estar mudando; o vaticínio, não: nada de Pecan, gurizada!